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A revolução democrática e o socialismo petista: Por um novo ciclo das lutas democráticas no Brasil

593692Este manifesto programático é uma conclamação aos companheiros e companheiras petistas a participarem da elaboração política e da formação em todo o Brasil da chapa da Mensagem ao Partido para o PED e o 5º Congresso do PT.
Dialogando desde já com o documento aprovado pelo Diretório Nacional, que abre a preparação para o 5º Congresso, a Mensagem ao Partido entende que, após os dez vitoriosos anos de governo do país, é inadiável que façamos um balanço a partir do ponto de vista dos valores do socialismo democrático. As impressionantes transformações históricas que conquistamos servem de estímulo ao debate para compreendermos o atual período de crise e as possibilidades que se abrem. O PT nitidamente precisa, a partir da experiência vivida, atualizar o seu programa histórico. Deve se propor a liderar um novo ciclo de lutas democráticas e cidadãs do povo brasileiro, fundamentadas nas experiências originárias, nos valores que fundaram esta trajetória, incluindo o determinante período que lideramos a coalizão que governa o país.
O processo político concreto no Brasil, em curso desde o início do governo Lula, é de reversão da integração econômica do país na globalização tutelada pelo capital financeiro global. Mudamos o modelo de desenvolvimento e promovemos a recuperação das funções públicas do Estado. Essas mudanças propõem novos desafios à esquerda, pois o que está em curso não é respondido por analogias a períodos passados: não é uma resposta nacional-desenvolvimentista nem uma retomada da socialdemocracia clássica. Também não é um período aberto de transformações diretamente socialistas.
Uma tentativa de interpretação é que enquanto no mundo exacerba-se a concentração de riqueza e poder, em vários países do sul, onde forjaram-se alternativas ao neoliberalismo, abriram-se espaços para a construção de projetos de novo tipo, chamados genericamente de pós neoliberais. Estes projetos, via de regra, produziram crescimento econômico, inclusão social, distribuição de renda, democracia eleitoral, participação popular. Isto cria uma base social e política, que se expressa periodicamente em maiorias eleitorais nacionais. Estes projetos continuam em disputa.
O que estamos promovendo, hoje, no Brasil, é a possibilidade de constituir, no âmbito de um regime democrático, as condições prévias para a retomada da utopia democrático-socialista. Mesmo que a democracia brasileira ainda deva perseguir um percurso para tornar-se republicana (de todo o povo) e portanto não passível de ser manipulada pelas elites. Daí a importância vital, no forte sentido da palavra vida, das campanhas em curso pela Reforma Política e Pela Democratização da Comunicação.
O que vai abrir ou obstruir um novo projeto socialista para o futuro serão as disputas políticas que se dão hoje, sejam no âmbito do Estado ou fora dele. Disputas no plano econômico e social, no plano do regime político e da organização republicana do estado (que tipo de democracia almejamos), da cultura, da recuperação dos valores da solidariedade. Disputa sobre que modelo de desenvolvimento e de industrialização queremos para o Brasil, neste mundo em que de forma acentuada o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo obriga à democratização do conhecimento, da ciência e da tecnologia, do que de mais avançado a humanidade produziu para romper o ciclo do subdesenvolvimento, para livrar milhões da pobreza, para que o pleno emprego seja emprego digno e de qualidade na cidade e no campo.
As três perguntas as quais devemos responder para este novo período são:
– como a dinâmica da revolução democrática que o Brasil está vivendo, em meio à crise internacional do neoliberalismo, se vincula aos valores do socialismo democrático?
– qual a plataforma programática permitirá aprofundar o processo da revolução democrática em nosso país no próximo período histórico?
– como constituir desde já um novo ciclo histórico das lutas democráticas e cidadãs do povo brasileiro em geral e, especialmente, a partir das classes trabalhadoras da cidade e do campo?
A ação estratégica do PT deve ser balizada pela atualização de categorias de análise. Isto implica num esforço de elaboração teórica para compreender o mundo em que vivemos, e um Brasil que mudou e mudou muito. Num paradoxo, talvez o mundo para pior e o Brasil para melhor. A estratégia a ser aprimorada, por óbvio,  não pode ficar limitada ao pragmatismo da governabilidade imediata, que de resto reconhecemos necessária.
Dotar o conjunto de nossas ações de um sentido estratégico significa em primeiro lugar reconhecer as importantes e cruciais mudanças promovidas até agora. Elas abriram as possibilidades, os caminhos. Um projeto de futuro, amplo e generoso com o Brasil e com seu povo precisa constituir sujeitos sociais e bases políticas capazes de garantir os avanços da Democracia e da República para um novo período de afirmação concreta de direitos e de mais e mais democracia na perspectiva da transformação socialista.
Desde a crise vivida em 2005, as razões da Mensagem ao Partido têm sido submetidas às provas da história. O manifesto inicial da Mensagem ao Partido identificou na crise de 2005 uma inadiável necessidade de mudar o que havia de anti-republicano no funcionamento do sistema de partidos e das eleições brasileiras. A defesa intransigente da ética pública e da luta contra a corrupção, em polêmica com a tese instrumental, cínica e acusatória defendida pela oposição liberal-conservadora, deveria ser combinada com um esforço de democratização do Estado brasileiro, em particular através da reforma política, da implantação do financiamento público exclusivo de campanha com o voto em lista e com a defesa da participação das mulheres e do povo na representação política. Desde o início também, a Mensagem ao Partido apoiou publicamente as reorientações da política econômica, que permitiram um novo ciclo de desenvolvimento econômico sustentável com distribuição de renda, propiciando a mais ampla inclusão social da história do país.
Momentos particularmente importantes foram aqueles em que houve a participação decisiva de lideranças da Mensagem ao Partido na conquista e na condução de governos estaduais. No 3º Congresso, em 2007, apresentamos a tese O PT e a Revolução Democrática. Aprovamos, por consenso, o código de ética do PT. Outras conquistas tivemos, todos nós petistas, naquele congresso memorável, como a reafirmação do socialismo democrático como norte utópico do nosso projeto para o Brasil e o mundo. No 4º Congresso-estatutário participamos da maioria partidária que aprovou o estatuto mais democrático da história do nosso partido, e talvez da história dos partidos socialistas em âmbito internacional. O novo Estatuto partidário permite maior democratização partidária, estimula a participação e o compromisso partidários dos filiados e filiadas, introduz a paridade das mulheres nos organismos de direção e a representação multiétnica proporcional, além da abertura à participação dos jovens.
Organizada em todos os estados do país, a Mensagem ao Partido tem atuado de modo decisivo nas direções partidárias e, como petistas, na intelectualidade de esquerda, no movimento sindical, no movimento estudantil, nas lutas agrárias, ecológicas, no movimento feminista, na luta pelos direitos da livre orientação sexual e nos movimentos negros do país.
Como movimento aberto e democrático, a Mensagem ao Partido converge com as várias correntes que formam a pluralidade da democracia petista, inclusive com a corrente majoritária, em várias questões políticas decisivas. É, neste sentido, para todos nós petistas, um grande alento e um novo sopro de esperança para a democracia brasileira a nova jornada pública de encontros promovidos pela liderança mais popular da história do país, o companheiro ex-presidente Lula.
Este manifesto é, portanto, uma grande aposta que o PT sairá do PED e do 5º Congresso mais unido, programaticamente renovado, com uma vontade política decidida para enfrentar os grandes desafios da luta de classes no próximo período, que terão um momento decisivo na reeleição da companheira Dilma Roussef à presidência do país.
Os dois princípios fundamentais que organizam a dinâmica política e social da revolução democrática são a democratização do poder do Estado e o fortalecimento das classes trabalhadoras e dos setores populares, que advém da nova macroeconomia social do desenvolvimento, da distribuição da renda e da criação de novos direitos. É o fortalecimento das classes trabalhadoras brasileira, através de suas lutas e conquistas, com sua vigorosa expansão através formalização do mercado de trabalho, da redução drástica do desemprego, da elevação do patamar histórico do salário-mínimo, somado ao historicamente inédito processo de inclusão social dos setores pauperizados da sociedade brasileira – chamado, por cientistas sociais, de subproletariado –  que fornece o núcleo da base social de uma coalizão política capaz de democratizar o Estado brasileiro e aprofundar a dinâmica da revolução democrática.
Após a histórica greve dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo em 1978, o companheiro Lula disse a frase mais importante de sua vida: “que ninguém mais ouse duvidar da capacidade de luta das classes trabalhadoras!”. Esta frase continua ressoando na memória e no futuro do país. Ela ganhou um novo reconhecimento público após ele ter se tornado o presidente mais popular da história do Brasil. “O fim da miséria é apenas o começo”, diz o slogan dos dez anos de governo do país comemorados pela presidenta Dilma Roussef.
É a esta capacidade dos trabalhadores e do povo brasileiro e a este novo futuro da revolução democrática que este manifesto se dirige.
A revolução democrática e o socialismo petista
A sociedade mundial que emergiu no ocidente, pós-“socialismo real” e posteriormente ao auge da socialdemocracia europeia, é bastante diversa daquela existente até o início dos anos 70. A classe operária industrial tradicional nos países capitalistas centrais – operários fabris das fábricas modernas – reduziu a sua potência política e econômica. Houve uma subordinação da atividade econômico-industrial pelo capital financeiro e os estados de bem-estar tiveram solapadas suas condições políticas de “bancar” os direitos sociais. A transmissão e troca generalizada da informação passou a “integrar” crises e contaminar os “ajustes”, com uma velocidade espantosa. As classes tradicionais viram sua unidade se tornar problemática em função dos novos padrões de produção, de agregação do valor, das novas tecnologias informacionais. O mundo do trabalho nos países capitalistas centrais ficou ainda mais disperso e fragmentário.
Paralelamente, e com muita intensidade em países como o Brasil, mantiveram-se e até fortaleceram-se nos últimos dez anos – dentro do atual modo de produção transfigurado (o mesmo com outra forma) – as formas tradicionais de agregação do valor, setores produtivos com baixa produtividade e com tecnologias defasadas, setores agrários tradicionais e, também, setores diversos com alta intensidade de capital e tecnologias inovadoras. Neste sentido, houve no Brasil a formação de novos setores do proletariado. Vale destacar a ampliação da participação das mulheres no mercado de trabalho, uma das características deste período, e que demanda alterações no padrão das políticas públicas e da divisão sexual do trabalho no mundo do trabalho e nas famílias. A formação de novos setores, com a ampliação estrutural do emprego, potencializa uma nova era da construção dos direitos do trabalho. Tal situação não configura apenas mera sobrevivência de modos de produção antigos, mas aspectos de uma nova totalidade que relaciona “centro” e “periferia”, tanto no plano interno como na comunidade internacional.
Em seus 33 anos de existência, no décimo ano de liderança de uma coalizão que governa o país, submetido à mais virulenta e difamatória campanha que se tem notícia na cultura política de nosso país, o PT se encontra diante da absoluta necessidade de contar para si e para o povo brasileiro a narrativa que vincule os sonhos de emancipação da sua origem à sua ação pragmática e transformadora no governo, que estabeleça o sentido da experiência vivida com os valores do socialismo democrático que formam a sua identidade.
A construção desta narrativa exige alongar nosso olhar para além da conjuntura imediata, sem por nenhum momento perder a visão da urgência de seus desafios. É necessário pensar a aventura histórica do PT em meio ao ciclo vivido pelo capitalismo internacional nos últimos quarenta anos, marcados pela ascensão e agora a crise do neoliberalismo. Ganhamos consciência nova nos últimos dez anos de que esta crise tem o sentido de uma crise de civilização, já que se encontra acoplada à graves ameaças aos povos e à ecologia do planeta.
O PT se tornou ao longo destas décadas o partido que se reivindica do socialismo democrático, que dirige uma das experiências de transformação social, pela densidade populacional e potência econômica e geopolítica do Brasil, de maior impacto na conjuntura mundial. Sobretudo se faz preciso pensar a relação do PT com os grandes ciclos da luta democrática dos trabalhadores e do povo brasileiro, contra a ditadura, com o neoliberalismo e, agora, com a nova conjuntura nacional criada desde a ascensão de Lula e, depois, Dilma, à presidência do país em 2002. O PT desfruta hoje de uma crescente consciência das suas responsabilidades latino-americanas já que, nestes continentes, as lutas populares criaram uma conjuntura nova de avanços democráticos e populares em vários países que reclamam  pela construção da unidade política latino-americana.
Como significar e dar sentido a uma experiência tão rica, dinâmica e tão complexa na tradição do socialismo democrático em construção, aquela cultura que conjuga o anti-capitalismo à construção de novas bases para a democracia?
Uma primeira tentação é compreendê-la através do recurso à imagem – típica da experiência e da imaginação do New Deal norte-americano – de um país das classes médias, das oportunidades de mercado e de consumo tornadas disponíveis ao “homem comum”. Em linguagem mercadológica, um país dominado pela classe de padrão de consumo C, em movimento e em ascensão. Ora, a ética democrática liberal desta imaginação, embora apanhe certas dimensões da realidade e possa servir como uma boa metáfora do período, além de se apresentar como sedutora para um país que vê a sua pirâmide social se transformar em um losango em uma década de mudanças (com a sua legião de pobres e miseráveis aparada na base), é muito restrita para designar uma experiência tão vasta, profunda e de horizontes abertos como esta liderada pelo PT. A distância que separa o sentido histórico da liderança de Lula-Dilma e a liderança de Roosevelt é a mesma que separa o socialismo democrático do PT do liberalismo democrático do Partido Democrata norte-americano em sua fase mais progressiva.
As conquistas sociais, econômicas e democráticas das classes trabalhadoras e de seu povo, dos negros e das mulheres brasileiras, não cabem na ocupação de um nicho subordinado em um mercado de consumo em expansão. Há aqui, na experiência que estamos vivendo no Brasil, o sentido de uma dignidade nova e de um anseio de emancipação, de justiça e de liberdade, que não se traduzem na linguagem liberal de uma sociedade competitiva de classes.
Um outro caminho, certamente mais rico porque consulta uma rica tradição do pensamento e da cultura brasileira, é pensar a experiência dos governos Lula e Dilma através de uma nova forma de desenvolvimentismo social, desta vez distributivo e inclusivo. No entanto, foi o próprio grande mestre desta tradição, Celso Furtado, que sob o grande trauma de 1964, tratou de cobrar do conceito de desenvolvimento não replicar os padrões industriais e de consumo dos países capitalistas centrais, de se relacionar com a idéia chave de sustentabilidade ambiental, de se vincular às dimensões da cultura e de civilização de um povo e, sobretudo, entender que a sua possibilidade histórica dependia cada vez mais da soberania nacional e do poder político construído pelas classes trabalhadoras. Isto é, da democratização profunda do Estado brasileiro.  O próprio Celso Furtado chegou mesmo a se perguntar se a superação do subdesenvolvimento não exigiria no horizonte a superação do próprio capitalismo.
Um terceiro caminho seria o de pensar a experiência do PT como o de uma social-democracia tardia e na periferia ou semi-periferia do sistema, o construtor de um novo pacto entre trabalhadores e industrialismo no capitalismo do século XXI. Tal imaginação tem a sedução de apresentar uma lógica pública de construção de emprego e de direitos sociais em um tempo em que a própria social-democracia européia se apresenta em um quadro regressivo e de concessões às pressões ultimatistas do neoliberalismo em crise.
Tal imaginação desconhece que o PT, desde o início da  construção de sua identidade, se apresentou como alternativa não apenas ao estalinismo mas à social-democracia, em função dos limites burocráticos, democráticos-parlamentaristas e corporativos desta tradição, da sua incapacidade de se projetar nos marcos internacionais, de sempre ceder ao grande capital o controle das finanças e da apropriação das inovações científico-tecnológicas, limites que levaram ao seu último impasse histórico desde a ascensão do neoliberalismo. Um pacto produtivista, por si só, é insuficiente sequer para gerar uma lógica de Estado do Bem-Estar em um momento em que o capitalismo internacional se distancia do ciclo longo de crescimento do pós-guerra e se encontra com a sua dinâmica minada diante dos poderes da financeirização.
Para estabelecer a narrativa de sua identidade, do presente que vivemos e do futuro que esperamos construir,  o PT tem de construir as relações entre a revolução democrática e os valores do socialismo petista.
A noção de uma revolução democrática, presente nas resoluções do PT desde 1994, visa exatamente estabelecer a coerência entre a estratégia histórica do PT e os valores do socialismo democrático que ele pretende construir. Isto é, o PT quer liderar uma ampla e plural frente político-social capaz de refundar o Estado brasileiro, em uma dinâmica de aprofundamento e radicalização dos direitos democráticos dos trabalhadores e dos setores populares, das mulheres e dos negros, em uma dinâmica de apropriação da revolução tecnológica em curso para produzir mais e melhor com sustentabilidade. Esta revolução democrática se organiza a partir da legitimidade das vontades das maiorias, em regime de soberania popular, de construção da opinião pública democrática, garantindo e ampliando as liberdades públicas, o pluralismo partidário, o respeito aos direitos das minorias, a autonomia e os direitos humanos dos cidadãos e das cidadãs. Se não se trabalha com uma teoria das etapas da revolução, separando a luta por reformas no capitalismo das lutas pelo socialismo democrático, é a democracia expandida em seus fundamentos que regula o ritmo e o próprio sentido histórico das mudanças.
Deste ponto de vista, há um conjunto de dinâmicas políticas que vinculam a revolução democrática aos valores do socialismo democrático.
A primeira delas é a crise de legitimidade dos valores neoliberais, abrindo uma vasta conjuntura histórica internacional de possibilidades de retomada dos valores da cultura socialista em marcos democráticos, no sentido de disputar alternativas de civilização àquela que se tornou dominante no mundo ocidental e planetário. No centro desta disputa está a própria noção do que é liberdade – que os neoliberais quiseram traduzir na linguagem do Estado mínimo, quanto menos Estado mais liberdade -, vinculada a novos princípios de justiça e fraternidade. Um novo principio civilizatório de  desenvolvimento e formas de vida social, de produção e consumo, deve ser construído para evitar as catástrofes ecológicas que ameaçam a vida das futuras gerações. A chamada “economia verde”, a pretensão de amarrar a ecologia aos princípios de um capitalismo apenas regulado e modificado na margem, não é capaz de reverter o ciclo predatório da acumulação de capital. É preciso também reconhecer que é preciso uma nova onda do feminismo, que leve ao centro de um novo Estado democrático, os direitos das mulheres, a começar pela igualdade de representação no poder e proposição de políticas públicas que deem sustentação à autonomia das mulheres. Se o racismo explicitamente institucionalizado foi superado enfim no direito internacional, as dinâmicas neocolonialistas e segregatórias parecem acompanhar, como uma sombra tenebrosa, as respostas neoliberais e conservadoras ao capitalismo em crise. É esta disputa de valores de civilização alternativa, de sentido socialista e democrático, que confere o sentido da construção de uma nova hegemonia política.
A segunda dinâmica que vincula a revolução democrática aos valores do socialismo petista é a democratização do poder. O sentido da autonomia do cidadão e do auto-governo marca o sentido da auto-emancipação, da construção de uma sociedade auto-regulada e consciente, que é a própria noção clássica de socialismo. Quanto mais democratizado estiver o poder do Estado, quanto mais democrático forem os arranjos entre democracia direta, semi-direta e representativa,  maiores serão as possibilidades de transformação social. Quanto mais liberdade de expressão, quanto mais voz pública, quanto mais democrático for o processo de formação da opinião pública, maior será a possibilidade de democratização do poder. Este é o princípio central da revolução democrática para uma experiência como a do PT que governa em um Estado que resultou da Constituição mais democrática da história do país mas ainda marcada pela transição conservadora e pela presença minoritária das forças de esquerda e populares, que conseguiu construir uma coalizão que sustenta a dinâmica de governo mas não foi capaz ainda de criar uma vontade soberana de fazer leis que reflitam os princípios históricos do PT. É através deste princípio de democratização do poder que o PT pode fazer a vinculação entre a pragmática necessária de governo e os movimentos sociais em luta por suas demandas históricas reprimidas por 21 anos de ditadura militar e dez anos de neoliberalismo.
Essa democratização do poder vincula-se diretamente à consolidação de uma nova natureza política do Estado brasileiro na implementação do novo modelo de desenvolvimento. Para além de reforçar as atribuições de planejamento, de financiamento e regulação, de execução de políticas sociais de transferência de renda, de progressividade tributária e taxação de grandes fortunas, o Estado deve dispor de instrumentos para conduzir um novo modelo de desenvolvimento que: reforce os centros nacionais de decisão, produção e inovação; supere desequilíbrios regionais; expanda a base produtiva de natureza cooperativa e solidária; inclua políticas de apoio às pequenas e micro empresas. Em seu conjunto, a construção de uma nova matriz produtiva nacional deve estar subordinada ao critério de sustentabilidade ambiental.
A terceira dinâmica de ligação entre a revolução democrática e o socialismo compõe-se das lutas por reformas nas estruturas de propriedade e nas relações de trabalho. Elas se traduzem nas reformas urbana e agrária, em novos direitos do trabalho, em socializações do conhecimento e das decisões no âmbito da produção social. Essa dinâmica fundamental combina-se com a construção do planejamento público democrático da economia. É a grande resposta à lógica da financeirização e da apologia do caráter virtuoso dos mercados desregulados que predominaram no período de domínio neoliberal. Nem a solução autocrática do planejamento burocrático central nem as chamadas teses do “socialismo de mercado” apresentaram uma solução histórica viável e coerente. O reconhecimento da existência do mercado em um longo período de transição possível ao socialismo, condicionado sempre pelo contexto internacional, não deve eclipsar que é o princípio do planejamento público democrático, cada vez mais consciente e expandido em sua capacidade de regulação da economia, a partir dos interesses históricos dos trabalhadores e do povo, que deve ser dinamicamente construído e reforçado em relação às dinâmicas mercantis que reproduzem a dominação, concentram renda, predam a natureza, reproduzem a discriminação da mulher e dos não brancos. É por esta via que os direitos históricos das classes trabalhadoras – desde a democracia no local de trabalho até à participação na direção da economia, desde a desmercantilização da reprodução da vida social até à democratização e controle público crescente dos meios de produção – podem encontrar o seu objetivo histórico. É também por esta via – a do crescente controle público dos investimentos e da ciência – que se pode compatibilizar novos paradigmas de desenvolvimento econômico e a resposta aos desafios ecológicos urgentes. A promoção de “sentido” ao desenvolvimento, pensado inclusive a partir de uma nova teoria da empresa pública, que combine a acumulação inerente ao sistema do capital com controle público e diretrizes socialmente justas, com a necessidade de preservação do estoque do patrimônio natural, está integrada nestes novos paradigmas.
O quarto princípio que vincula a revolução democrática ao socialismo petista é a construção dos bens e serviços públicos, universalistas e de qualidade, que estruturam a reprodução da vida social. É este o grande campo de respostas ao emparedamento dos Estados do Bem-Estar Europeus, às lógicas de austeridade e socialização das perdas que prevalecem no campo liberal, conservador e até socialdemocrata diante da crise atual do capitalismo. O direito público à saúde e a educação, à previdência e à assistência, à moradia e a uma vida ecológica saudável, à segurança e aos direitos humanos, à cultura e ao esporte devem ser objeto de políticas públicas cada vez mais universalistas e que busquem a fronteira da qualidade. Faz parte do princípio de universalização destes direitos as políticas afirmativas dos negros e das mulheres, em um país cuja história foi tão marcada pelo patriarcalismo e pela escravidão. Este amplo processo de desmercantilização da vida social, de superação das apartações e das discriminações naturalizadas na vida social brasileira, colocando no centro o valor da solidariedade entre brancos e negros, entre homens e mulheres, entre trabalhadores do campo e da cidade, entre as diferentes gerações é uma magnífica resposta socialista aos dilemas da sociabilidade postas pelo capitalismo em sua fase de crise sistêmica.
O quinto princípio que vincula a revolução democrática aos princípios do socialismo petista é a afirmação da integração soberana no mundo, invertendo os sinais da origem colonial, da semi-soberania em que o Estado nacional foi constituído, das relações de subdesenvolvimento e dependência em que o capitalismo brasileiro foi construído, em particular em relação ao imperialismo norte-americano no século XX. A crise sistêmica do capitalismo atual permite e exige – como ocorreu em 1930 – um salto de qualidade na construção da soberania nacional e na superação da dependência externa. Esta nova vontade de integração soberana no Brasil, a sua política externa de luta pela construção de um direito internacional e de instituições não marcadas pela assimetria de poder e riqueza, a sua responsabilidade reafirmada perante os povos da África, tem certamente na resposta ao desafio da unificação latino-americana o seu centro estratégico.
A combinação dessas dinâmicas de conquistas sociais, econômicas, democráticas e culturais, em processos de governos e de mobilização social, de construção programática e de correlação de forças com deslocamentos claros à esquerda, com movimentos de conquista de hegemonia, podem abrir um novo período histórico de hegemonia da revolução democrática plena com uma perspectiva socialista.
Atualização do programa histórico do PT
Como partido formado em uma identidade socialista democrática, avessa ao doutrinarismo e aos dogmatismos sectários, o PT projetou desde o início a construção do seu programa em relação com a sua experiência histórica de transformação do Brasil. Então, a pergunta: após dez anos de governo do país, qual atualização de seu programa na luta democrática?
Durante a ditadura militar, o PT vinculou a luta pelas liberdades democráticas à luta pelos direitos sociais, a luta contra a repressão às pautas emergentes dos novos movimentos sociais e sindicais. O grande ciclo grevista, com o epicentro nas greves de São Bernardo e que se prolongou nos anos oitenta, articulava a luta pela autonomia sindical, o direito de greve e as reivindicações em defesa dos salários e do emprego. Neste período, o movimento estudantil reconstruiu a UNE, os trabalhadores construíram a CUT, os movimentos sociais no campo, como o MST e a Contag, estruturaram-se, os movimentos urbanos criaram a Central de Movimentos Populares, um amplíssimo movimento sanitarista formou as bases do que viria a ser o projeto SUS, os movimentos de professores retomaram as bandeiras da educação pública, as Comunidades Eclesiais de Base formaram a sua vasta rede do cristianismo popular, os movimentos indígenas plantaram o seu programa histórico em defesa de suas terras e suas culturas, os movimentos feministas e negros construíram as suas primeiras identidades e lutas de massa. O protagonismo do PT e dos partidos de esquerda na histórica campanha pelas diretas já e, depois, no Congresso Constituinte refletia este novo patamar histórico programático dos trabalhadores e do povo brasileiro.
Nos anos 90, durante os anos de luta contra o neoliberalismo, representados pelos governos Collor e, depois, de FHC, a luta democrática do PT orientou-se no sentido de resistir às privatizações, ao desemprego e ao corte dos direitos do trabalho, à repressão aberta aos movimentos sociais, em particular no campo, ao processo de privatização e terceirização dos serviços sociais. Nestes anos, o PT acumulou no plano municipal e, de forma interrompida, no plano dos governos estaduais, a experiência de um novo modo de governar, baseado na inversão de prioridades de gastos, na criação de novos programas de políticas públicas e, principalmente, no orçamento participativo.
A campanha pelo impeachment de Collor, liderada pela esquerda, colocou no centro da luta democrática o princípio da luta contra a corrupção e em favor de uma ética pública. O MST protagonizou grandes jornadas de luta nacional, centralizando por um momento toda a luta de resistência ao neoliberalismo. A nova experiência dos Fóruns Sociais Mundiais, iniciados em Porto Alegre, veio abrir um amplo campo de novas agendas e de internacionalismo, em uma época de pressões e recuos sobre a cultura socialista. A experiência amazônica do PT, simbolicamente investida na figura memorável de Chico Mendes, projetou um novo protagonismo da consciência ecológica do PT. Neste período, as duas candidaturas de Lula à presidência, em 1994 e 1998, em aliança com o PC do B, o PSB e o PDT, expressou todo este sentimento e este sentido programático democrático de alternativa ao neoliberalismo.
A partir de 2003, com Lula na presidência do país, o centro das energias, criatividade e capacidade política acumuladas pela esquerda brasileira concentraram-se no esforço de governar o país, em um quadro de vitória da contrarrevolução neoliberal em escala global, em que suas forças eram fortemente minoritárias no Congresso Nacional, no governo dos principais estados do país, nos grandes aparatos de comunicação de massa, em um contexto de crescente crise do capitalismo internacional. Nestes últimos dez anos, pode-se afirmar que o ethos democrático do PT em grande medida se institucionalizou no esforço de reorganizar o Estado nacional brasileiro para a condução de políticas macroeconômicas e políticas públicas que servissem aos interesses dos trabalhadores e do povo brasileiro, em particular aos seus setores mais pauperizados. Sem dúvida, estas vitórias democráticas na institucionalidade estatal – a superação do monitoramento do FMI e a afirmação de um grau substantivamente maior de soberania, as novas políticas estruturantes de inclusão social, em favor da renda e do emprego dos trabalhadores, as conquistas na educação pública, a afirmação de um novo poder dos bancos públicos, os ministérios novos em defesa dos direitos da mulher e contra o racismo, as novas políticas de reforma agrária e principalmente junto à agricultura familiar e, agora, avanços importantes na chamada Justiça de Transição – respondem pelas magníficas popularidades do segundo governo Lula e do governo Dilma. A multiplicação e o adensamento das conferências nacionais setoriais foi o modo encontrado nestes anos de canalizar a energia democrática e popular para a construção das políticas públicas.
Nestes dez anos, o PT praticamente não conseguiu organizar nenhuma campanha nacional pública, de sentido democrático, que incidisse centralmente sobre a conjuntura. Os grandes momentos de mobilização combinaram-se com o esforço de reeleição de Lula e de eleição da companheira Dilma Roussef. O esforço notável pela reforma política, entendida como central, foi em grande parte circunscrita à dinâmica parlamentar do Congresso Nacional. Se a vitória nas eleições presidenciais de 2002 revelava mais acúmulo na luta institucional de oposição do que na luta democrática dos movimentos sociais, o esforço concentrado e mobilizador de governança da esquerda brasileira naturalmente acentuou este viés institucional. Nestes anos, os movimentos sociais buscaram atualizar-se politicamente, embora, talvez se possa afirmar que ainda não se deu, no seu conjunto, um grande acúmulo organizativo e programático que o novo período político permite. Um dos movimentos sociais que conseguiu realizar avanços significativos foi o LGBT.
Mais ainda, esta institucionalização do sentido democrático da esquerda foi acompanhada de um reposicionamento das forças neoliberais e conservadoras em relação à questão democrática. Ao mesmo tempo que, após sucessivas derrotas na formação da opinião pública, passaram a se acomodar às dinâmicas e programas de inclusão social, com o seu controle unificado das grandes empresas de comunicação, de fato programaticamente unificadas na oposição aos governos Lula e Dilma,  concentraram  desde 2005 a sua mensagem na denúncia de corrupção, procurando a partir daí, relegitimar em uma linguagem liberal um programa de Estado mínimo. Esta “agenda democrática”, instrumental e cínica, dos neoliberais e conservadores, se até agora esteve muito longe de minar as popularidades historicamente inéditas do segundo governo Lula e agora do governo Dilma, conseguiram de fato instalar no país um mal-estar em relação à política e neutralizaram, em alguma medida, o potencial de crescimento do PT.
A atualização de um programa histórico do PT, no sentido da revolução democrática, tem então este sentido virtuoso e de combate: estabelecer um novo horizonte de conquistas democráticas para os trabalhadores, movimentos sociais e para a cidadania ativa, de um lado, e, de outro lado, colocar em ponto morto, desmascarar o sentido regressivo da campanha neoliberal e conservadora. Ao cumprir estas metas, ele dialoga com as possibilidades de transformação do governo Dilma, criando novos parâmetros para a construção de sua governabilidade democrática.
O centro deste programa vai no sentido da democratização qualitativamente maior do Estado brasileiro.
A reforma política, com financiamento público exclusivo de campanha, voto em lista com paridade de participação das mulheres é uma prioridade que já está no centro da consciência petista. Ela agora amplia o caráter de campanha pública de mobilização, na qual o esclarecimento das nossas idéias e a capacidade de desmistificar os argumentos conservadores ganham todo o sentido. Nesse processo o PT destaca o financiamento público exclusivo, a paridade de gênero na representação parlamentar, e aponta para um momento de nova síntese entre o debate democrático na sociedade e sua representação política através de uma Constituinte voltada para a reforma política.
De outro lado, as outras instituições do Estado, como Judiciário e órgãos de fiscalização, também necessitam ser arejados pelos  ventos de democratização e deselitização. A reforma do Estado para que se torne mais ágil, mais justo, mais igualitário, na resolução das demandas da sociedade precisa também chegar lá, recolocando inclusive o seu papel de tal modo que não busquem substituir as funções daqueles que periodicamente o povo elege para governá-lo, nem coloquem entraves burocráticos e dilatórios à realização dos programas de governo aprovados pela sociedade.
A construção das condições da formação democrática da opinião pública envolve desde o desenvolvimento dos mecanismos estatais de comunicação, de forma pluralista e com participação da sociedade civil, a regulação democrática da propriedade e funcionamento das empresas privadas de comunicação, como propõe a Constituição brasileira, e a criação de uma vasta rede de comunicação democrática e popular, de televisão, rádios, impressa e virtual, que propicie a voz pública, o direito de falar e ser ouvido, dos trabalhadores, dos pobres, dos negros, das mulheres, dos sem-terra e dos favelados, enfim, de todos aqueles e aquelas que hoje são silenciados pelo quase monopólio dos meios de comunicação por grandes empresas privadas. O Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações constitui o embrião deste estratégica campanha pública.
A luta democrática pela ética pública e contra a corrupção sistêmica do Estado brasileiro é uma luta histórica do PT. Encontra-se no Congresso Nacional, um projeto de lei apresentado pelo Governo Lula, a partir dos ganhos da experiência e da inteligência do controle e prevenção sistêmica à corrupção, desenvolvidos pela CGU. O PT, injustamente difamado como mais corrupto dos partidos brasileiros, tem todo o interesse e legitimidade, como afirmou recentemente o companheiro Lula, para liderar uma campanha pública em torno desta agenda.
A institucionalização das dimensões deliberativas dos conselhos e conferências nacionais no governo central do país pode e deve ser acompanhadas por propostas de tornar mais pública e participativa a discussão do orçamento da União. A construção de um ampla democracia participativa continua como um objetivo fundamental para se alcançar uma governabilidade democrática avançada.
A atualização da luta democrática também implica na Justiça de Transição, o conhecimento da verdade, a reparação dos assassinatos, torturas, prisões, exílios, cassações e perseguições cometidas pela ditadura militar bem como a revisão da sentença do Superior Tribunal Federal, que validou a Lei de Anistia da ditadura, a qual impede a aplicação da justiça, com o devido processo jurídico, aos que cometeram crimes político durante ao regime militar. Esta luta democrática pode e deve ser vinculada à superação dos crimes contra os direitos humanos cometidos até hoje pelo aparato de segurança das Polícias Militares.
O sexto plano é o da reforma tributária para reequilibrar o desenvolvimento econômico e social do país, avançar na justiça tributária e acabar com a predatória guerra fiscal que desmantela a Federação. Cabe destacar aqui o projeto de lei da nossa bancada que taxa as grandes fortunas.
Esta centralidade da luta pela democratização do Estado deve convergir para um programa integrado e processado no tempo, da construção de um Estado da Solidariedade no Brasil que promova a oferta pública, universal e de qualidade, dos bens necessários à vida digna, a começar pela saúde e educação, passando pela segurança e pelo direito à moradia, pelo direito a uma vida ecologicamente saudável e com a Previdência pública, pelo direito à cultura e ao esporte. As principais bandeiras concretas já estão colocadas, entre elas a Consolidação das Leis Sociais, que torne permanentes os avanços na luta contra a pobreza, a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, rever a favor dos trabalhadores a legislação que criou o fator previdenciário, a garantia de 10% do PIB para a saúde e 10% do PIB para a educação.
O Brasil tem uma rica tradição de luta pelos direitos sociais, que foram amplamente dinamizados e expandidos durante os últimos dez anos. Mas esta rica tradição, que tem nos direitos do trabalho o seu centro, é ainda fortemente marcada pelas heranças corporativistas e privatistas, aprofundadas durante o regime militar e pelos anos neoliberais. Em particular na saúde pública, o projeto SUS vive impasses estruturais devido ao seu subfinanciamento estrutural, aos entraves para uma gestão pública democrática e eficiente e à enorme pressão do lobby dos planos privados, agora inclusive com uma forte presença de empresas norte-americanas.
A construção deste Estado da Solidariedade, marcado pela desmercantilização da vida social e pela oferta generosa dos bens e serviços públicos, além de responder aos anseios profundos da grande massa dos recém incluídos e das classes médias brasileiras, tem certamente um poderoso potencial de impacto virtuoso no ciclo econômico de um desenvolvimento sustentado ao gerar inovação cientifica, aumento de produtividade, emprego e renda em um novo padrão. Ele incentiva e reclama um novo patamar das políticas de afirmação dos direitos dos negros e das mulheres. A construção deste Estado da solidariedade deve ter uma atenção especial aos direitos e à autonomia dos modos de vida e da cultura das nações indígenas em um contexto de um estado multiétnico que se aspira. Apesar de terem seus direitos garantidos na Constituição, do Brasil ter superado a ameaça de extermínio de sua população indígena, ainda são fortes os vetores mercantis e de violência que ameaçam os territórios, as culturas e os direitos dos povos indígenas. É apropria construção deste Estado da solidariedade que se enriquece – com os valores ecológicos, riquezas de conhecimento e de cultura, com o aprendizado do valor dos direitos à diferença – com a incorporação dos direitos democráticos dos povos indígenas.
A luta democrática por um avanço qualitativo na legitimidade e presença do planejamento público do Estado brasileiro, conformando novos padrões de regulação macro-econômica, desenha um terceiro tripé desta revolução democrática. Ela combina maior soberania nacional, presença estruturante dos bancos públicos, avanços na construção de um sistema nacional de inovações e de uma indústria adequada ao desenvolvimento e ao pleno emprego, avanços na reforma agrária e na importância macroeconômica da agricultura familiar voltada para a produção de alimentos, uma reforma tributária progressiva, além de uma maior centralidade ao desenvolvimento das experiências de economia solidária. Este planejamento democrático deve prever passar da fase da regulação do desenvolvimento econômico com critérios ecológicos para programatizar metas ecológicas de desenvolvimento, isto é, que reorientem o próprio sentido do desenvolvimento.
A construção de um novo ciclo das lutas democráticas
Não seria correto atribuir à governabilidade atual da gestão Dilma ser fruto de um mero acordo pragmático entre diferentes partidos políticos que forma a sua extensa coalizão. O que alicerça uma tal ampla coalizão – em particular o que há de acordo pragmático entre partidos que não têm a mesma identidade ou convergência programática – é o fato do governo Dilma gozar de uma aprovação popular muito majoritária, nítida e vigorosa. Não fosse isso, as forças dispersivas e os interesses políticos corporativos  prevaleceriam sobre a unidade da base do governo.
Houve, de fato, a partir principalmente do segundo governo Lula um realinhamento à esquerda da opção de voto das dezenas de milhões que compõem os estratos da população mais explorados e mais oprimidos. Não é apenas um fenômeno eleitoral: estas camadas da população, historicamente sem experiência ou tradição de organização coletiva, passaram a se identificar com as lideranças públicas de Lula e Dilma Roussef. A consciência dos brasileiros nestes dez anos moveu-se em direção a valores afins aos do socialismo democrático: contra o clima geral de descrença no futuro do país, há hoje um novo orgulho de ser brasileiro e de esperança no seu futuro; o crescimento da renda e do emprego dos trabalhadores criou uma nova conjuntura histórica para a consciência classista; embora sejam incrementais os ganhos da consciência feminista, continua a se expandir a presença das mulheres no mundo trabalho e do acesso à educação; há um nítido avanço da consciência anti-racista, inclusive no apoio majoritário à adoção das cotas; a injusta distribuição de renda, no plano social e regional, é crescentemente questionada.
O PT, bem como outros partidos de esquerda e centro-esquerda, continuam a avançar em votos em meio ao recuo dos partidos conservadores e neoliberais.
Mas esta consciência majoritária de simpatia às lideranças públicas dos presidentes Lula e Dilma Roussef ainda não se tornou organicamente de esquerda: em certos setores, principalmente das classes medias, houve recuos na simpatia pelo PT; os partidos neoliberais e conservadores guardam uma influência muito além de suas bases de interesses corporativas; em certos temas, como a segurança pública, como os direitos à auto-determinação das mulheres na questão reprodutiva, como na questão da sexualidade e, em relação à urgência da reforma agrária ou à democratização da liberdade de expressão, prevalecem opiniões conservadoras ou sem consistência progressista; principalmente, há um importante mal-estar em relação à participação política e a à vida política dos partidos.
Estes padrões de consciência que não refletem uma clara hegemonia orgânica das forças de esquerda expressam uma correlação de forças: a governabilidade da gestão do país depende ainda fortemente do apoio de partidos que não têm certamente um programa sequer nitidamente de centro-esquerda ou progressista; o PT viveu nestes últimos dez anos um aprofundamento de suas características parlamentares e institucionais em detrimento da capacidade de mobilização de suas bases sociais reais ou potenciais; os movimentos sociais não acumularam nestes anos ganhos qualitativos de organização, continuando a agir em pautas corporativas e segmentadas.
Não se trata, como pretendem alguns profetas, do fim da função dos partidos na democracia. Mas de reconhecer que partidos institucionalizados que se organizam apenas em função das eleições e de cálculos de poder, tendem a se tornar cada vez mais estranhos ao cidadão comum, em particular em situações de crise do sistema capitalista nas quais há uma nítida disjunção entre as necessidades de reprodução do sistema e os interesses públicos. Estes partidos institucionalizados tornam-se insensíveis às novas culturas de direito, aos anseios da juventude, às legítimas reivindicações de autenticidade na política.
Só um novo ciclo de lutas democráticas, combinado com mudanças estruturais nas formas organizativas e deliberativas do nosso partido, pode apontar para um novo horizonte programático e superar dinamicamente estes impasses na construção da hegemonia. Estas lutas democráticas podem se organizar em torno a um conjunto de iniciativas populares de leis cidadãs, que façam a ponte entre o trabalho na institucionalidade e na sociedade civil.
Trata-se de construir um futuro político no qual a governabilidade se apóie em um nítido crescimento majoritário e orgânico das forças de esquerda e centro-esquerda, em que o PT realimente as linhas de força de seu diálogo e enraizamento com as novas consciências das classes trabalhadoras e setores populares, na qual os movimentos sociais ultrapassem os circuitos específicos de suas demandas. Estas três dimensões, juntas, caracterizariam uma nova correlação de forças e um novo patamar de consciência dos trabalhadores e do povo brasileiro.
Esta construção da hegemonia exige superar aquela que é a principal lacuna na organização dos trabalhadores e dos setores populares no Brasil: o pequeno acúmulo na capacidade de comunicação pública que dá aos setores neoliberais e conservadores uma vantagem estrutural na reposição permanente de suas agendas, de suas razões e preconceitos, de seu ódio de classe. Este novo ciclo de lutas democráticas incentiva e requer a formação de uma vasta e plural rede de comunicação democrática e popular.
Estas novas campanhas democráticas poderão alimentar um novo ciclo de organização política do PT e dos movimentos sociais. Elas criarão, enfim, o terreno para uma elevação qualitativa na consciência dos brasileiros em direção a uma cultura cidadã, afim aos valores da autonomia e da liberdade, da igualdade e da solidariedade, do feminismo e do antirracismo, do trabalho e de participação ativa na definição do futuro do país, enfim, da defesa de uma sociedade democrática socialista.

Manifesto aprovado no Encontro Nacional da Mensagem ao Partido, realizado em Brasília, no dia 23 de março de 2013.

 

Este manifesto programático é uma conclamação aos companheiros e companheiras petistas a participarem da elaboração política e da formação em todo o Brasil da chapa da Mensagem ao Partido para o PED e o 5º Congresso do PT.

Dialogando desde já com o documento aprovado pelo Diretório Nacional, que abre a preparação para o 5º Congresso, a Mensagem ao Partido entende que, após os dez vitoriosos anos de governo do país, é inadiável que façamos um balanço a partir do ponto de vista dos valores do socialismo democrático. As impressionantes transformações históricas que conquistamos servem de estímulo ao debate para compreendermos o atual período de crise e as possibilidades que se abrem. O PT nitidamente precisa, a partir da experiência vivida, atualizar o seu programa histórico. Deve se propor a liderar um novo ciclo de lutas democráticas e cidadãs do povo brasileiro, fundamentadas nas experiências originárias, nos valores que fundaram esta trajetória, incluindo o determinante período que lideramos a coalizão que governa o país.

O processo político concreto no Brasil, em curso desde o início do governo Lula, é de reversão da integração econômica do país na globalização tutelada pelo capital financeiro global. Mudamos o modelo de desenvolvimento e promovemos a recuperação das funções públicas do Estado. Essas mudanças propõem novos desafios à esquerda, pois o que está em curso não é respondido por analogias a períodos passados: não é uma resposta nacional-desenvolvimentista nem uma retomada da socialdemocracia clássica. Também não é um período aberto de transformações diretamente socialistas.

Uma tentativa de interpretação é que enquanto no mundo exacerba-se a concentração de riqueza e poder, em vários países do sul, onde forjaram-se alternativas ao neoliberalismo, abriram-se espaços para a construção de projetos de novo tipo, chamados genericamente de pós neoliberais. Estes projetos, via de regra, produziram crescimento econômico, inclusão social, distribuição de renda, democracia eleitoral, participação popular. Isto cria uma base social e política, que se expressa periodicamente em maiorias eleitorais nacionais. Estes projetos continuam em disputa.

O que estamos promovendo, hoje, no Brasil, é a possibilidade de constituir, no âmbito de um regime democrático, as condições prévias para a retomada da utopia democrático-socialista. Mesmo que a democracia brasileira ainda deva perseguir um percurso para tornar-se republicana (de todo o povo) e portanto não passível de ser manipulada pelas elites. Daí a importância vital, no forte sentido da palavra vida, das campanhas em curso pela Reforma Política e Pela Democratização da Comunicação.

O que vai abrir ou obstruir um novo projeto socialista para o futuro serão as disputas políticas que se dão hoje, sejam no âmbito do Estado ou fora dele. Disputas no plano econômico e social, no plano do regime político e da organização republicana do estado (que tipo de democracia almejamos), da cultura, da recuperação dos valores da solidariedade. Disputa sobre que modelo de desenvolvimento e de industrialização queremos para o Brasil, neste mundo em que de forma acentuada o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo obriga à democratização do conhecimento, da ciência e da tecnologia, do que de mais avançado a humanidade produziu para romper o ciclo do subdesenvolvimento, para livrar milhões da pobreza, para que o pleno emprego seja emprego digno e de qualidade na cidade e no campo.

As três perguntas as quais devemos responder para este novo período são:

– como a dinâmica da revolução democrática que o Brasil está vivendo, em meio à crise internacional do neoliberalismo, se vincula aos valores do socialismo democrático?

– qual a plataforma programática permitirá aprofundar o processo da revolução democrática em nosso país no próximo período histórico?

– como constituir desde já um novo ciclo histórico das lutas democráticas e cidadãs do povo brasileiro em geral e, especialmente, a partir das classes trabalhadoras da cidade e do campo?

A ação estratégica do PT deve ser balizada pela atualização de categorias de análise. Isto implica num esforço de elaboração teórica para compreender o mundo em que vivemos, e um Brasil que mudou e mudou muito. Num paradoxo, talvez o mundo para pior e o Brasil para melhor. A estratégia a ser aprimorada, por óbvio,  não pode ficar limitada ao pragmatismo da governabilidade imediata, que de resto reconhecemos necessária.

Dotar o conjunto de nossas ações de um sentido estratégico significa em primeiro lugar reconhecer as importantes e cruciais mudanças promovidas até agora. Elas abriram as possibilidades, os caminhos. Um projeto de futuro, amplo e generoso com o Brasil e com seu povo precisa constituir sujeitos sociais e bases políticas capazes de garantir os avanços da Democracia e da República para um novo período de afirmação concreta de direitos e de mais e mais democracia na perspectiva da transformação socialista.

Desde a crise vivida em 2005, as razões da Mensagem ao Partido têm sido submetidas às provas da história. O manifesto inicial da Mensagem ao Partido identificou na crise de 2005 uma inadiável necessidade de mudar o que havia de anti-republicano no funcionamento do sistema de partidos e das eleições brasileiras. A defesa intransigente da ética pública e da luta contra a corrupção, em polêmica com a tese instrumental, cínica e acusatória defendida pela oposição liberal-conservadora, deveria ser combinada com um esforço de democratização do Estado brasileiro, em particular através da reforma política, da implantação do financiamento público exclusivo de campanha com o voto em lista e com a defesa da participação das mulheres e do povo na representação política. Desde o início também, a Mensagem ao Partido apoiou publicamente as reorientações da política econômica, que permitiram um novo ciclo de desenvolvimento econômico sustentável com distribuição de renda, propiciando a mais ampla inclusão social da história do país.

Momentos particularmente importantes foram aqueles em que houve a participação decisiva de lideranças da Mensagem ao Partido na conquista e na condução de governos estaduais. No 3º Congresso, em 2007, apresentamos a tese O PT e a Revolução Democrática. Aprovamos, por consenso, o código de ética do PT. Outras conquistas tivemos, todos nós petistas, naquele congresso memorável, como a reafirmação do socialismo democrático como norte utópico do nosso projeto para o Brasil e o mundo. No 4º Congresso-estatutário participamos da maioria partidária que aprovou o estatuto mais democrático da história do nosso partido, e talvez da história dos partidos socialistas em âmbito internacional. O novo Estatuto partidário permite maior democratização partidária, estimula a participação e o compromisso partidários dos filiados e filiadas, introduz a paridade das mulheres nos organismos de direção e a representação multiétnica proporcional, além da abertura à participação dos jovens.

Organizada em todos os estados do país, a Mensagem ao Partido tem atuado de modo decisivo nas direções partidárias e, como petistas, na intelectualidade de esquerda, no movimento sindical, no movimento estudantil, nas lutas agrárias, ecológicas, no movimento feminista, na luta pelos direitos da livre orientação sexual e nos movimentos negros do país.

Como movimento aberto e democrático, a Mensagem ao Partido converge com as várias correntes que formam a pluralidade da democracia petista, inclusive com a corrente majoritária, em várias questões políticas decisivas. É, neste sentido, para todos nós petistas, um grande alento e um novo sopro de esperança para a democracia brasileira a nova jornada pública de encontros promovidos pela liderança mais popular da história do país, o companheiro ex-presidente Lula.

Este manifesto é, portanto, uma grande aposta que o PT sairá do PED e do 5º Congresso mais unido, programaticamente renovado, com uma vontade política decidida para enfrentar os grandes desafios da luta de classes no próximo período, que terão um momento decisivo na reeleição da companheira Dilma Roussef à presidência do país.

Os dois princípios fundamentais que organizam a dinâmica política e social da revolução democrática são a democratização do poder do Estado e o fortalecimento das classes trabalhadoras e dos setores populares, que advém da nova macroeconomia social do desenvolvimento, da distribuição da renda e da criação de novos direitos. É o fortalecimento das classes trabalhadoras brasileira, através de suas lutas e conquistas, com sua vigorosa expansão através formalização do mercado de trabalho, da redução drástica do desemprego, da elevação do patamar histórico do salário-mínimo, somado ao historicamente inédito processo de inclusão social dos setores pauperizados da sociedade brasileira – chamado, por cientistas sociais, de subproletariado –  que fornece o núcleo da base social de uma coalizão política capaz de democratizar o Estado brasileiro e aprofundar a dinâmica da revolução democrática.

Após a histórica greve dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo em 1978, o companheiro Lula disse a frase mais importante de sua vida: “que ninguém mais ouse duvidar da capacidade de luta das classes trabalhadoras!”. Esta frase continua ressoando na memória e no futuro do país. Ela ganhou um novo reconhecimento público após ele ter se tornado o presidente mais popular da história do Brasil. “O fim da miséria é apenas o começo”, diz o slogan dos dez anos de governo do país comemorados pela presidenta Dilma Roussef.

É a esta capacidade dos trabalhadores e do povo brasileiro e a este novo futuro da revolução democrática que este manifesto se dirige.

A revolução democrática e o socialismo petista

A sociedade mundial que emergiu no ocidente, pós-“socialismo real” e posteriormente ao auge da socialdemocracia europeia, é bastante diversa daquela existente até o início dos anos 70. A classe operária industrial tradicional nos países capitalistas centrais – operários fabris das fábricas modernas – reduziu a sua potência política e econômica. Houve uma subordinação da atividade econômico-industrial pelo capital financeiro e os estados de bem-estar tiveram solapadas suas condições políticas de “bancar” os direitos sociais. A transmissão e troca generalizada da informação passou a “integrar” crises e contaminar os “ajustes”, com uma velocidade espantosa. As classes tradicionais viram sua unidade se tornar problemática em função dos novos padrões de produção, de agregação do valor, das novas tecnologias informacionais. O mundo do trabalho nos países capitalistas centrais ficou ainda mais disperso e fragmentário.

Paralelamente, e com muita intensidade em países como o Brasil, mantiveram-se e até fortaleceram-se nos últimos dez anos – dentro do atual modo de produção transfigurado (o mesmo com outra forma) – as formas tradicionais de agregação do valor, setores produtivos com baixa produtividade e com tecnologias defasadas, setores agrários tradicionais e, também, setores diversos com alta intensidade de capital e tecnologias inovadoras. Neste sentido, houve no Brasil a formação de novos setores do proletariado. Vale destacar a ampliação da participação das mulheres no mercado de trabalho, uma das características deste período, e que demanda alterações no padrão das políticas públicas e da divisão sexual do trabalho no mundo do trabalho e nas famílias. A formação de novos setores, com a ampliação estrutural do emprego, potencializa uma nova era da construção dos direitos do trabalho. Tal situação não configura apenas mera sobrevivência de modos de produção antigos, mas aspectos de uma nova totalidade que relaciona “centro” e “periferia”, tanto no plano interno como na comunidade internacional.

Em seus 33 anos de existência, no décimo ano de liderança de uma coalizão que governa o país, submetido à mais virulenta e difamatória campanha que se tem notícia na cultura política de nosso país, o PT se encontra diante da absoluta necessidade de contar para si e para o povo brasileiro a narrativa que vincule os sonhos de emancipação da sua origem à sua ação pragmática e transformadora no governo, que estabeleça o sentido da experiência vivida com os valores do socialismo democrático que formam a sua identidade.

A construção desta narrativa exige alongar nosso olhar para além da conjuntura imediata, sem por nenhum momento perder a visão da urgência de seus desafios. É necessário pensar a aventura histórica do PT em meio ao ciclo vivido pelo capitalismo internacional nos últimos quarenta anos, marcados pela ascensão e agora a crise do neoliberalismo. Ganhamos consciência nova nos últimos dez anos de que esta crise tem o sentido de uma crise de civilização, já que se encontra acoplada à graves ameaças aos povos e à ecologia do planeta.

O PT se tornou ao longo destas décadas o partido que se reivindica do socialismo democrático, que dirige uma das experiências de transformação social, pela densidade populacional e potência econômica e geopolítica do Brasil, de maior impacto na conjuntura mundial. Sobretudo se faz preciso pensar a relação do PT com os grandes ciclos da luta democrática dos trabalhadores e do povo brasileiro, contra a ditadura, com o neoliberalismo e, agora, com a nova conjuntura nacional criada desde a ascensão de Lula e, depois, Dilma, à presidência do país em 2002. O PT desfruta hoje de uma crescente consciência das suas responsabilidades latino-americanas já que, nestes continentes, as lutas populares criaram uma conjuntura nova de avanços democráticos e populares em vários países que reclamam  pela construção da unidade política latino-americana.

Como significar e dar sentido a uma experiência tão rica, dinâmica e tão complexa na tradição do socialismo democrático em construção, aquela cultura que conjuga o anti-capitalismo à construção de novas bases para a democracia?

Uma primeira tentação é compreendê-la através do recurso à imagem – típica da experiência e da imaginação do New Deal norte-americano – de um país das classes médias, das oportunidades de mercado e de consumo tornadas disponíveis ao “homem comum”. Em linguagem mercadológica, um país dominado pela classe de padrão de consumo C, em movimento e em ascensão. Ora, a ética democrática liberal desta imaginação, embora apanhe certas dimensões da realidade e possa servir como uma boa metáfora do período, além de se apresentar como sedutora para um país que vê a sua pirâmide social se transformar em um losango em uma década de mudanças (com a sua legião de pobres e miseráveis aparada na base), é muito restrita para designar uma experiência tão vasta, profunda e de horizontes abertos como esta liderada pelo PT. A distância que separa o sentido histórico da liderança de Lula-Dilma e a liderança de Roosevelt é a mesma que separa o socialismo democrático do PT do liberalismo democrático do Partido Democrata norte-americano em sua fase mais progressiva.

As conquistas sociais, econômicas e democráticas das classes trabalhadoras e de seu povo, dos negros e das mulheres brasileiras, não cabem na ocupação de um nicho subordinado em um mercado de consumo em expansão. Há aqui, na experiência que estamos vivendo no Brasil, o sentido de uma dignidade nova e de um anseio de emancipação, de justiça e de liberdade, que não se traduzem na linguagem liberal de uma sociedade competitiva de classes.

Um outro caminho, certamente mais rico porque consulta uma rica tradição do pensamento e da cultura brasileira, é pensar a experiência dos governos Lula e Dilma através de uma nova forma de desenvolvimentismo social, desta vez distributivo e inclusivo. No entanto, foi o próprio grande mestre desta tradição, Celso Furtado, que sob o grande trauma de 1964, tratou de cobrar do conceito de desenvolvimento não replicar os padrões industriais e de consumo dos países capitalistas centrais, de se relacionar com a idéia chave de sustentabilidade ambiental, de se vincular às dimensões da cultura e de civilização de um povo e, sobretudo, entender que a sua possibilidade histórica dependia cada vez mais da soberania nacional e do poder político construído pelas classes trabalhadoras. Isto é, da democratização profunda do Estado brasileiro.  O próprio Celso Furtado chegou mesmo a se perguntar se a superação do subdesenvolvimento não exigiria no horizonte a superação do próprio capitalismo.

Um terceiro caminho seria o de pensar a experiência do PT como a de uma social-democracia tardia e na periferia ou semi-periferia do sistema, construtora de um novo pacto entre trabalhadores e industrialismo no capitalismo do século XXI. Tal imaginação tem a sedução de apresentar uma lógica pública de construção de emprego e de direitos sociais em um tempo em que a própria social-democracia europeia se apresenta em um quadro regressivo e de concessões às pressões ultimatistas do neoliberalismo em crise.

Tal imaginação desconhece que o PT, desde o início da  construção de sua identidade, se apresentou como alternativa não apenas ao estalinismo mas à social-democracia, em função dos limites burocráticos, democráticos-parlamentaristas e corporativos desta tradição, da sua incapacidade de se projetar nos marcos internacionais, de sempre ceder ao grande capital o controle das finanças e da apropriação das inovações científico-tecnológicas, limites que levaram ao seu último impasse histórico desde a ascensão do neoliberalismo. Um pacto produtivista, por si só, é insuficiente sequer para gerar uma lógica de Estado do Bem-Estar em um momento em que o capitalismo internacional se distancia do ciclo longo de crescimento do pós-guerra e se encontra com a sua dinâmica minada diante dos poderes da financeirização.

Para estabelecer a narrativa de sua identidade, do presente que vivemos e do futuro que esperamos construir,  o PT tem de construir as relações entre a revolução democrática e os valores do socialismo petista.

A noção de uma revolução democrática, presente nas resoluções do PT desde 1994, visa exatamente estabelecer a coerência entre a estratégia histórica do PT e os valores do socialismo democrático que ele pretende construir. Isto é, o PT quer liderar uma ampla e plural frente político-social capaz de refundar o Estado brasileiro, em uma dinâmica de aprofundamento e radicalização dos direitos democráticos dos trabalhadores e dos setores populares, das mulheres e dos negros, em uma dinâmica de apropriação da revolução tecnológica em curso para produzir mais e melhor com sustentabilidade. Esta revolução democrática se organiza a partir da legitimidade das vontades das maiorias, em regime de soberania popular, de construção da opinião pública democrática, garantindo e ampliando as liberdades públicas, o pluralismo partidário, o respeito aos direitos das minorias, a autonomia e os direitos humanos dos cidadãos e das cidadãs. Se não se trabalha com uma teoria das etapas da revolução, separando a luta por reformas no capitalismo das lutas pelo socialismo democrático, é a democracia expandida em seus fundamentos que regula o ritmo e o próprio sentido histórico das mudanças.

Deste ponto de vista, há um conjunto de dinâmicas políticas que vinculam a revolução democrática aos valores do socialismo democrático.

A primeira delas é a crise de legitimidade dos valores neoliberais, abrindo uma vasta conjuntura histórica internacional de possibilidades de retomada dos valores da cultura socialista em marcos democráticos, no sentido de disputar alternativas de civilização àquela que se tornou dominante no mundo ocidental e planetário. No centro desta disputa está a própria noção do que é liberdade – que os neoliberais quiseram traduzir na linguagem do Estado mínimo, quanto menos Estado mais liberdade -, vinculada a novos princípios de justiça e fraternidade. Um novo principio civilizatório de desenvolvimento e formas de vida social, de produção e consumo, deve ser construído para evitar as catástrofes ecológicas que ameaçam a vida das futuras gerações. A chamada “economia verde”, a pretensão de amarrar a ecologia aos princípios de um capitalismo apenas regulado e modificado na margem, não é capaz de reverter o ciclo predatório da acumulação de capital. É preciso também reconhecer que é preciso uma nova onda do feminismo, que leve ao centro de um novo Estado democrático, os direitos das mulheres, a começar pela igualdade de representação no poder e proposição de políticas públicas que deem sustentação à autonomia das mulheres. Se o racismo explicitamente institucionalizado foi superado enfim no direito internacional, as dinâmicas neocolonialistas e segregatórias parecem acompanhar, como uma sombra tenebrosa, as respostas neoliberais e conservadoras ao capitalismo em crise. É esta disputa de valores de civilização alternativa, de sentido socialista e democrático, que confere o sentido da construção de uma nova hegemonia política.

A segunda dinâmica que vincula a revolução democrática aos valores do socialismo petista é a democratização do poder. O sentido da autonomia do cidadão e do auto-governo marca o sentido da auto-emancipação, da construção de uma sociedade auto-regulada e consciente, que é a própria noção clássica de socialismo. Quanto mais democratizado estiver o poder do Estado, quanto mais democrático forem os arranjos entre democracia direta, semi-direta e representativa,  maiores serão as possibilidades de transformação social. Quanto mais liberdade de expressão, quanto mais voz pública, quanto mais democrático for o processo de formação da opinião pública, maior será a possibilidade de democratização do poder. Este é o princípio central da revolução democrática para uma experiência como a do PT que governa em um Estado que resultou da Constituição mais democrática da história do país, mas ainda marcada pela transição conservadora e pela presença minoritária das forças de esquerda e populares, que conseguiu construir uma coalizão que sustenta a dinâmica de governo mas não foi capaz ainda de criar uma vontade soberana de fazer leis que reflitam os princípios históricos do PT. É através deste princípio de democratização do poder que o PT pode fazer a vinculação entre a pragmática necessária de governo e os movimentos sociais em luta por suas demandas históricas reprimidas por 21 anos de ditadura militar e dez anos de neoliberalismo.

Essa democratização do poder vincula-se diretamente à consolidação de uma nova natureza política do Estado brasileiro na implementação do novo modelo de desenvolvimento. Para além de reforçar as atribuições de planejamento, de financiamento e regulação, de execução de políticas sociais de transferência de renda, de progressividade tributária e taxação de grandes fortunas, o Estado deve dispor de instrumentos para conduzir um novo modelo de desenvolvimento que: reforce os centros nacionais de decisão, produção e inovação; supere desequilíbrios regionais; expanda a base produtiva de natureza cooperativa e solidária; inclua políticas de apoio às pequenas e micro empresas. Em seu conjunto, a construção de uma nova matriz produtiva nacional deve estar subordinada ao critério de sustentabilidade ambiental.

A terceira dinâmica de ligação entre a revolução democrática e o socialismo compõe-se das lutas por reformas nas estruturas de propriedade e nas relações de trabalho. Elas se traduzem nas reformas urbana e agrária, em novos direitos do trabalho, em socializações do conhecimento e das decisões no âmbito da produção social. Essa dinâmica fundamental combina-se com a construção do planejamento público democrático da economia. É a grande resposta à lógica da financeirização e da apologia do caráter virtuoso dos mercados desregulados que predominaram no período de domínio neoliberal. Nem a solução autocrática do planejamento burocrático central nem as chamadas teses do “socialismo de mercado” apresentaram uma solução histórica viável e coerente. O reconhecimento da existência do mercado em um longo período de transição possível ao socialismo, condicionado sempre pelo contexto internacional, não deve eclipsar que é o princípio do planejamento público democrático, cada vez mais consciente e expandido em sua capacidade de regulação da economia, a partir dos interesses históricos dos trabalhadores e do povo, que deve ser dinamicamente construído e reforçado em relação às dinâmicas mercantis que reproduzem a dominação, concentram renda, predam a natureza, reproduzem a discriminação da mulher e dos não brancos. É por esta via que os direitos históricos das classes trabalhadoras – desde a democracia no local de trabalho até à participação na direção da economia, desde a desmercantilização da reprodução da vida social até à democratização e controle público crescente dos meios de produção – podem encontrar o seu objetivo histórico. É também por esta via – a do crescente controle público dos investimentos e da ciência – que se pode compatibilizar novos paradigmas de desenvolvimento econômico e a resposta aos desafios ecológicos urgentes. A promoção de “sentido” ao desenvolvimento, pensado inclusive a partir de uma nova teoria da empresa pública, que combine a acumulação inerente ao sistema do capital com controle público e diretrizes socialmente justas, com a necessidade de preservação do estoque do patrimônio natural, está integrada nestes novos paradigmas.

O quarto princípio que vincula a revolução democrática ao socialismo petista é a construção dos bens e serviços públicos, universalistas e de qualidade, que estruturam a reprodução da vida social. É este o grande campo de respostas ao emparedamento dos Estados do Bem-Estar Europeus, às lógicas de austeridade e socialização das perdas que prevalecem no campo liberal, conservador e até socialdemocrata diante da crise atual do capitalismo. O direito público à saúde e a educação, à previdência e à assistência, à moradia e a uma vida ecológica saudável, à segurança e aos direitos humanos, à cultura e ao esporte devem ser objeto de políticas públicas cada vez mais universalistas e que busquem a fronteira da qualidade. Faz parte do princípio de universalização destes direitos as políticas afirmativas dos negros e das mulheres, em um país cuja história foi tão marcada pelo patriarcalismo e pela escravidão. Este amplo processo de desmercantilização da vida social, de superação das apartações e das discriminações naturalizadas na vida social brasileira, colocando no centro o valor da solidariedade entre brancos e negros, entre homens e mulheres, entre trabalhadores do campo e da cidade, entre as diferentes gerações é uma magnífica resposta socialista aos dilemas da sociabilidade postas pelo capitalismo em sua fase de crise sistêmica.

O quinto princípio que vincula a revolução democrática aos princípios do socialismo petista é a afirmação da integração soberana no mundo, invertendo os sinais da origem colonial, da semi-soberania em que o Estado nacional foi constituído, das relações de subdesenvolvimento e dependência em que o capitalismo brasileiro foi construído, em particular em relação ao imperialismo norte-americano no século XX. A crise sistêmica do capitalismo atual permite e exige – como ocorreu em 1930 – um salto de qualidade na construção da soberania nacional e na superação da dependência externa. Esta nova vontade de integração soberana no Brasil, a sua política externa de luta pela construção de um direito internacional e de instituições não marcadas pela assimetria de poder e riqueza, a sua responsabilidade reafirmada perante os povos da África, tem certamente na resposta ao desafio da unificação latino-americana o seu centro estratégico.

A combinação dessas dinâmicas de conquistas sociais, econômicas, democráticas e culturais, em processos de governos e de mobilização social, de construção programática e de correlação de forças com deslocamentos claros à esquerda, com movimentos de conquista de hegemonia, podem abrir um novo período histórico de hegemonia da revolução democrática plena com uma perspectiva socialista.

Atualização do programa histórico do PT

Como partido formado em uma identidade socialista democrática, avessa ao doutrinarismo e aos dogmatismos sectários, o PT projetou desde o início a construção do seu programa em relação com a sua experiência histórica de transformação do Brasil. Então, a pergunta: após dez anos de governo do país, qual atualização de seu programa na luta democrática?

Durante a ditadura militar, o PT vinculou a luta pelas liberdades democráticas à luta pelos direitos sociais, a luta contra a repressão às pautas emergentes dos novos movimentos sociais e sindicais. O grande ciclo grevista, com o epicentro nas greves de São Bernardo e que se prolongou nos anos oitenta, articulava a luta pela autonomia sindical, o direito de greve e as reivindicações em defesa dos salários e do emprego. Neste período, o movimento estudantil reconstruiu a UNE, os trabalhadores construíram a CUT, os movimentos sociais no campo, como o MST e a Contag, estruturaram-se, os movimentos urbanos criaram a Central de Movimentos Populares, um amplíssimo movimento sanitarista formou as bases do que viria a ser o projeto SUS, os movimentos de professores retomaram as bandeiras da educação pública, as Comunidades Eclesiais de Base formaram a sua vasta rede do cristianismo popular, os movimentos indígenas plantaram o seu programa histórico em defesa de suas terras e suas culturas, os movimentos feministas e negros construíram as suas primeiras identidades e lutas de massa. O protagonismo do PT e dos partidos de esquerda na histórica campanha pelas diretas já e, depois, no Congresso Constituinte refletia este novo patamar histórico programático dos trabalhadores e do povo brasileiro.

Nos anos 90, durante os anos de luta contra o neoliberalismo, representados pelos governos Collor e, depois, de FHC, a luta democrática do PT orientou-se no sentido de resistir às privatizações, ao desemprego e ao corte dos direitos do trabalho, à repressão aberta aos movimentos sociais, em particular no campo, ao processo de privatização e terceirização dos serviços sociais. Nestes anos, o PT acumulou no plano municipal e, de forma interrompida, no plano dos governos estaduais, a experiência de um novo modo de governar, baseado na inversão de prioridades de gastos, na criação de novos programas de políticas públicas e, principalmente, no orçamento participativo.

A campanha pelo impeachment de Collor, liderada pela esquerda, colocou no centro da luta democrática o princípio da luta contra a corrupção e em favor de uma ética pública. O MST protagonizou grandes jornadas de luta nacional, centralizando por um momento toda a luta de resistência ao neoliberalismo. A nova experiência dos Fóruns Sociais Mundiais, iniciados em Porto Alegre, veio abrir um amplo campo de novas agendas e de internacionalismo, em uma época de pressões e recuos sobre a cultura socialista. A experiência amazônica do PT, simbolicamente investida na figura memorável de Chico Mendes, projetou um novo protagonismo da consciência ecológica do PT. Neste período, as duas candidaturas de Lula à presidência, em 1994 e 1998, em aliança com o PC do B, o PSB e o PDT, expressou todo este sentimento e este sentido programático democrático de alternativa ao neoliberalismo.

A partir de 2003, com Lula na presidência do país, o centro das energias, criatividade e capacidade política acumuladas pela esquerda brasileira concentraram-se no esforço de governar o país, em um quadro de vitória da contrarrevolução neoliberal em escala global, em que suas forças eram fortemente minoritárias no Congresso Nacional, no governo dos principais estados do país, nos grandes aparatos de comunicação de massa, em um contexto de crescente crise do capitalismo internacional. Nestes últimos dez anos, pode-se afirmar que o ethos democrático do PT em grande medida se institucionalizou no esforço de reorganizar o Estado nacional brasileiro para a condução de políticas macroeconômicas e políticas públicas que servissem aos interesses dos trabalhadores e do povo brasileiro, em particular aos seus setores mais pauperizados. Sem dúvida, estas vitórias democráticas na institucionalidade estatal – a superação do monitoramento do FMI e a afirmação de um grau substantivamente maior de soberania, as novas políticas estruturantes de inclusão social, em favor da renda e do emprego dos trabalhadores, as conquistas na educação pública, a afirmação de um novo poder dos bancos públicos, os ministérios novos em defesa dos direitos da mulher e contra o racismo, as novas políticas de reforma agrária e principalmente junto à agricultura familiar e, agora, avanços importantes na chamada Justiça de Transição – respondem pelas magníficas popularidades do segundo governo Lula e do governo Dilma. A multiplicação e o adensamento das conferências nacionais setoriais foi o modo encontrado nestes anos de canalizar a energia democrática e popular para a construção das políticas públicas.

Nestes dez anos, o PT praticamente não conseguiu organizar nenhuma campanha nacional pública, de sentido democrático, que incidisse centralmente sobre a conjuntura. Os grandes momentos de mobilização combinaram-se com o esforço de reeleição de Lula e de eleição da companheira Dilma Roussef. O esforço notável pela reforma política, entendida como central, foi em grande parte circunscrita à dinâmica parlamentar do Congresso Nacional. Se a vitória nas eleições presidenciais de 2002 revelava mais acúmulo na luta institucional de oposição do que na luta democrática dos movimentos sociais, o esforço concentrado e mobilizador de governança da esquerda brasileira naturalmente acentuou este viés institucional. Nestes anos, os movimentos sociais buscaram atualizar-se politicamente, embora, talvez se possa afirmar que ainda não se deu, no seu conjunto, um grande acúmulo organizativo e programático que o novo período político permite. Um dos movimentos sociais que conseguiu realizar avanços significativos foi o LGBT.

Mais ainda, esta institucionalização do sentido democrático da esquerda foi acompanhada de um reposicionamento das forças neoliberais e conservadoras em relação à questão democrática. Ao mesmo tempo que, após sucessivas derrotas na formação da opinião pública, passaram a se acomodar às dinâmicas e programas de inclusão social, com o seu controle unificado das grandes empresas de comunicação, de fato programaticamente unificadas na oposição aos governos Lula e Dilma, concentraram  desde 2005 a sua mensagem na denúncia de corrupção, procurando a partir daí, relegitimar em uma linguagem liberal um programa de Estado mínimo. Esta “agenda democrática”, instrumental e cínica, dos neoliberais e conservadores, se até agora esteve muito longe de minar as popularidades historicamente inéditas do segundo governo Lula e agora do governo Dilma, conseguiram de fato instalar no país um mal-estar em relação à política e neutralizaram, em alguma medida, o potencial de crescimento do PT.

A atualização de um programa histórico do PT, no sentido da revolução democrática, tem então este sentido virtuoso e de combate: estabelecer um novo horizonte de conquistas democráticas para os trabalhadores, movimentos sociais e para a cidadania ativa, de um lado, e, de outro lado, colocar em ponto morto, desmascarar o sentido regressivo da campanha neoliberal e conservadora. Ao cumprir estas metas, ele dialoga com as possibilidades de transformação do governo Dilma, criando novos parâmetros para a construção de sua governabilidade democrática.

O centro deste programa vai no sentido da democratização qualitativamente maior do Estado brasileiro.

A reforma política, com financiamento público exclusivo de campanha, voto em lista com paridade de participação das mulheres é uma prioridade que já está no centro da consciência petista. Ela agora amplia o caráter de campanha pública de mobilização, na qual o esclarecimento das nossas idéias e a capacidade de desmistificar os argumentos conservadores ganham todo o sentido. Nesse processo o PT destaca o financiamento público exclusivo, a paridade de gênero na representação parlamentar, e aponta para um momento de nova síntese entre o debate democrático na sociedade e sua representação política através de uma Constituinte voltada para a reforma política.

De outro lado, as outras instituições do Estado, como Judiciário e órgãos de fiscalização, também necessitam ser arejados pelos  ventos de democratização e deselitização. A reforma do Estado para que se torne mais ágil, mais justo, mais igualitário, na resolução das demandas da sociedade precisa também chegar lá, recolocando inclusive o seu papel de tal modo que não busquem substituir as funções daqueles que periodicamente o povo elege para governá-lo, nem coloquem entraves burocráticos e dilatórios à realização dos programas de governo aprovados pela sociedade.

A construção das condições da formação democrática da opinião pública envolve desde o desenvolvimento dos mecanismos estatais de comunicação, de forma pluralista e com participação da sociedade civil, a regulação democrática da propriedade e funcionamento das empresas privadas de comunicação, como propõe a Constituição brasileira, e a criação de uma vasta rede de comunicação democrática e popular, de televisão, rádios, impressa e virtual, que propicie a voz pública, o direito de falar e ser ouvido, dos trabalhadores, dos pobres, dos negros, das mulheres, dos sem-terra e dos favelados, enfim, de todos aqueles e aquelas que hoje são silenciados pelo quase monopólio dos meios de comunicação por grandes empresas privadas. O Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações constitui o embrião deste estratégica campanha pública.

A luta democrática pela ética pública e contra a corrupção sistêmica do Estado brasileiro é uma luta histórica do PT. Encontra-se no Congresso Nacional, um projeto de lei apresentado pelo Governo Lula, a partir dos ganhos da experiência e da inteligência do controle e prevenção sistêmica à corrupção, desenvolvidos pela CGU. O PT, injustamente difamado como mais corrupto dos partidos brasileiros, tem todo o interesse e legitimidade, como afirmou recentemente o companheiro Lula, para liderar uma campanha pública em torno desta agenda.

A institucionalização das dimensões deliberativas dos conselhos e conferências nacionais no governo central do país pode e deve ser acompanhadas por propostas de tornar mais pública e participativa a discussão do orçamento da União. A construção de um ampla democracia participativa continua como um objetivo fundamental para se alcançar uma governabilidade democrática avançada.

A atualização da luta democrática também implica na Justiça de Transição, o conhecimento da verdade, a reparação dos assassinatos, torturas, prisões, exílios, cassações e perseguições cometidas pela ditadura militar bem como a revisão da sentença do Superior Tribunal Federal, que validou a Lei de Anistia da ditadura, a qual impede a aplicação da justiça, com o devido processo jurídico, aos que cometeram crimes político durante ao regime militar. Esta luta democrática pode e deve ser vinculada à superação dos crimes contra os direitos humanos cometidos até hoje pelo aparato de segurança das Polícias Militares.

O sexto plano é o da reforma tributária para reequilibrar o desenvolvimento econômico e social do país, avançar na justiça tributária e acabar com a predatória guerra fiscal que desmantela a Federação. Cabe destacar aqui o projeto de lei da nossa bancada que taxa as grandes fortunas.

Esta centralidade da luta pela democratização do Estado deve convergir para um programa integrado e processado no tempo, da construção de um Estado da Solidariedade no Brasil que promova a oferta pública, universal e de qualidade, dos bens necessários à vida digna, a começar pela saúde e educação, passando pela segurança e pelo direito à moradia, pelo direito a uma vida ecologicamente saudável e com a Previdência pública, pelo direito à cultura e ao esporte. As principais bandeiras concretas já estão colocadas, entre elas a Consolidação das Leis Sociais, que torne permanentes os avanços na luta contra a pobreza, a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, rever a favor dos trabalhadores a legislação que criou o fator previdenciário, a garantia de 10% do PIB para a saúde e 10% do PIB para a educação.

O Brasil tem uma rica tradição de luta pelos direitos sociais, que foram amplamente dinamizados e expandidos durante os últimos dez anos. Mas esta rica tradição, que tem nos direitos do trabalho o seu centro, é ainda fortemente marcada pelas heranças corporativistas e privatistas, aprofundadas durante o regime militar e pelos anos neoliberais. Em particular na saúde pública, o projeto SUS vive impasses estruturais devido ao seu subfinanciamento estrutural, aos entraves para uma gestão pública democrática e eficiente e à enorme pressão do lobby dos planos privados, agora inclusive com uma forte presença de empresas norte-americanas.

A construção deste Estado da Solidariedade, marcado pela desmercantilização da vida social e pela oferta generosa dos bens e serviços públicos, além de responder aos anseios profundos da grande massa dos recém incluídos e das classes médias brasileiras, tem certamente um poderoso potencial de impacto virtuoso no ciclo econômico de um desenvolvimento sustentado ao gerar inovação cientifica, aumento de produtividade, emprego e renda em um novo padrão. Ele incentiva e reclama um novo patamar das políticas de afirmação dos direitos dos negros e das mulheres. A construção deste Estado da solidariedade deve ter uma atenção especial aos direitos e à autonomia dos modos de vida e da cultura das nações indígenas em um contexto de um estado multiétnico que se aspira. Apesar de terem seus direitos garantidos na Constituição, do Brasil ter superado a ameaça de extermínio de sua população indígena, ainda são fortes os vetores mercantis e de violência que ameaçam os territórios, as culturas e os direitos dos povos indígenas. É apropria construção deste Estado da solidariedade que se enriquece – com os valores ecológicos, riquezas de conhecimento e de cultura, com o aprendizado do valor dos direitos à diferença – com a incorporação dos direitos democráticos dos povos indígenas.

A luta democrática por um avanço qualitativo na legitimidade e presença do planejamento público do Estado brasileiro, conformando novos padrões de regulação macro-econômica, desenha um terceiro tripé desta revolução democrática. Ela combina maior soberania nacional, presença estruturante dos bancos públicos, avanços na construção de um sistema nacional de inovações e de uma indústria adequada ao desenvolvimento e ao pleno emprego, avanços na reforma agrária e na importância macroeconômica da agricultura familiar voltada para a produção de alimentos, uma reforma tributária progressiva, além de uma maior centralidade ao desenvolvimento das experiências de economia solidária. Este planejamento democrático deve prever passar da fase da regulação do desenvolvimento econômico com critérios ecológicos para programatizar metas ecológicas de desenvolvimento, isto é, que reorientem o próprio sentido do desenvolvimento.

A construção de um novo ciclo das lutas democráticas

Não seria correto atribuir à governabilidade atual da gestão Dilma ser fruto de um mero acordo pragmático entre diferentes partidos políticos que forma a sua extensa coalizão. O que alicerça uma tal ampla coalizão – em particular o que há de acordo pragmático entre partidos que não têm a mesma identidade ou convergência programática – é o fato do governo Dilma gozar de uma aprovação popular muito majoritária, nítida e vigorosa. Não fosse isso, as forças dispersivas e os interesses políticos corporativos  prevaleceriam sobre a unidade da base do governo.

Houve, de fato, a partir principalmente do segundo governo Lula um realinhamento à esquerda da opção de voto das dezenas de milhões que compõem os estratos da população mais explorados e mais oprimidos. Não é apenas um fenômeno eleitoral: estas camadas da população, historicamente sem experiência ou tradição de organização coletiva, passaram a se identificar com as lideranças públicas de Lula e Dilma Roussef. A consciência dos brasileiros nestes dez anos moveu-se em direção a valores afins aos do socialismo democrático: contra o clima geral de descrença no futuro do país, há hoje um novo orgulho de ser brasileiro e de esperança no seu futuro; o crescimento da renda e do emprego dos trabalhadores criou uma nova conjuntura histórica para a consciência classista; embora sejam incrementais os ganhos da consciência feminista, continua a se expandir a presença das mulheres no mundo trabalho e do acesso à educação; há um nítido avanço da consciência anti-racista, inclusive no apoio majoritário à adoção das cotas; a injusta distribuição de renda, no plano social e regional, é crescentemente questionada.

O PT, bem como outros partidos de esquerda e centro-esquerda, continuam a avançar em votos em meio ao recuo dos partidos conservadores e neoliberais.

Mas esta consciência majoritária de simpatia às lideranças públicas dos presidentes Lula e Dilma Roussef ainda não se tornou organicamente de esquerda: em certos setores, principalmente das classes medias, houve recuos na simpatia pelo PT; os partidos neoliberais e conservadores guardam uma influência muito além de suas bases de interesses corporativas; em certos temas, como a segurança pública, como os direitos à auto-determinação das mulheres na questão reprodutiva, como na questão da sexualidade e, em relação à urgência da reforma agrária ou à democratização da liberdade de expressão, prevalecem opiniões conservadoras ou sem consistência progressista; principalmente, há um importante mal-estar em relação à participação política e a à vida política dos partidos.

Estes padrões de consciência que não refletem uma clara hegemonia orgânica das forças de esquerda expressam uma correlação de forças: a governabilidade da gestão do país depende ainda fortemente do apoio de partidos que não têm certamente um programa sequer nitidamente de centro-esquerda ou progressista; o PT viveu nestes últimos dez anos um aprofundamento de suas características parlamentares e institucionais em detrimento da capacidade de mobilização de suas bases sociais reais ou potenciais; os movimentos sociais não acumularam nestes anos ganhos qualitativos de organização, continuando a agir em pautas corporativas e segmentadas.

Não se trata, como pretendem alguns profetas, do fim da função dos partidos na democracia. Mas de reconhecer que partidos institucionalizados que se organizam apenas em função das eleições e de cálculos de poder, tendem a se tornar cada vez mais estranhos ao cidadão comum, em particular em situações de crise do sistema capitalista nas quais há uma nítida disjunção entre as necessidades de reprodução do sistema e os interesses públicos. Estes partidos institucionalizados tornam-se insensíveis às novas culturas de direito, aos anseios da juventude, às legítimas reivindicações de autenticidade na política.

Só um novo ciclo de lutas democráticas, combinado com mudanças estruturais nas formas organizativas e deliberativas do nosso partido, pode apontar para um novo horizonte programático e superar dinamicamente estes impasses na construção da hegemonia. Estas lutas democráticas podem se organizar em torno a um conjunto de iniciativas populares de leis cidadãs, que façam a ponte entre o trabalho na institucionalidade e na sociedade civil.

Trata-se de construir um futuro político no qual a governabilidade se apóie em um nítido crescimento majoritário e orgânico das forças de esquerda e centro-esquerda, em que o PT realimente as linhas de força de seu diálogo e enraizamento com as novas consciências das classes trabalhadoras e setores populares, na qual os movimentos sociais ultrapassem os circuitos específicos de suas demandas. Estas três dimensões, juntas, caracterizariam uma nova correlação de forças e um novo patamar de consciência dos trabalhadores e do povo brasileiro.

Esta construção da hegemonia exige superar aquela que é a principal lacuna na organização dos trabalhadores e dos setores populares no Brasil: o pequeno acúmulo na capacidade de comunicação pública que dá aos setores neoliberais e conservadores uma vantagem estrutural na reposição permanente de suas agendas, de suas razões e preconceitos, de seu ódio de classe. Este novo ciclo de lutas democráticas incentiva e requer a formação de uma vasta e plural rede de comunicação democrática e popular.

Estas novas campanhas democráticas poderão alimentar um novo ciclo de organização política do PT e dos movimentos sociais. Elas criarão, enfim, o terreno para uma elevação qualitativa na consciência dos brasileiros em direção a uma cultura cidadã, afim aos valores da autonomia e da liberdade, da igualdade e da solidariedade, do feminismo e do antirracismo, do trabalho e de participação ativa na definição do futuro do país, enfim, da defesa de uma sociedade democrática socialista.

Brasília, 23 de março de 2013
Encontro nacional da Mensagem ao Partido

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