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As pedras no caminho à justiça

Analine Specht, Claudia Prates e Sirlanda Selau *

A alegação da exoneração teria sido “atitudes impróprias” ou “procedimento incompatível com a dignidade e o decoro das funções”.

O fato que deve servir de exemplo é também uma constatação de que a cultura machista e patriarcal, que permeia também as instâncias judiciárias no país, constitui-se como verdadeiro óbice à realização da igualdade entre homens e mulheres e a promoção da justiça.

DOS FATOS:

“Na manhã do sábado, 29 de maio de 2010, o então juiz de direito da vara de Três Passos – cidade 478 km distante de Porto Alegre – comprou um pastel no estabelecimento de Wilson e Maria Lori Neuhaus. Quem o atendeu foi Daniela, de 21 anos, casada há cinco com o filho do casal.

A garota se sentiu constrangida diante do olhar de Mezzomo, classificado por sua sogra como “atrevido”.

– Ele falou que ela era muito bonita para estar atrás de um balcão – relata Lori Neuhaus.

Mesmo depois de Daniela ter dito que era casada, o homem insistiu no assédio. Nem a intervenção de Lori o fez recuar.

– Ele me pediu licença para ficar cobiçando a moça enquanto falava comigo – prossegue a senhora, que assustada, pediu que o magistrado se retirasse.

O homem chegou a dizer que Daniela era “muito bonita e gostosa” e que a familia deveria tomar cuidado com o assédio de estranhos.

– Ele falou que cafajestes como ele poderiam aparecer e provocar problemas – descreve a proprietária do estabelecimento.

Antes de ir embora, Mezzomo pediu ainda que Lori lhe desse um tapa na cara para que ele a deixasse em paz.

– Ele não estava no seu estado normal – acredita a senhora.

Na interpretação do desembargador Túlio Martins, o ex-titular da vara de Três Passos estava “visivelmente embriagado”. “Não sei se não estava sob o efeito de drogas também”, complementa.” (fonte: O Globo).

DO DIREITO:

A mulher é sujeito de direitos, e nestes devem ser garantidas a viabilidade de uma vida digna, livre de opressões, violências e dos constrangimentos exercidos pelos homens sobre elas. As negações e obstáculos a esses direitos são comumente naturalizados pela cultura dominante patriarcal e androcêntrica, que historicamente culpabiliza as mulheres, atribuindo a violência e violações ao próprio destino, e sugere que a resposta deve ser a resignação diante de tais abusos.

É de fundamental importância compreender que as práticas e concepções machistas não são involuntárias, pelo contrário, são fortemente carregadas de sentido que objetiva manter e sustentar a opressão das mulheres e sua invisibilidade ante o Estado de Direitos e a sociedade como um todo.

Dessa lógica decorrem múltiplas distorções que reduzem assédio a uma mera “cantada”; violência a forma de manifestação de amor; assassinatos a extremos de descontrole emocional; e repúdio a aceitação das desigualdades e diferentes formas de violência como fenômeno social, que só tem espaço nos discursos feministas. Queremos dizer com isso que a naturalização das desigualdades e da violência, perpetuada nas diversas instâncias sociais, é um subterfúgio para legitimar um antidireito e afastar cada vez mais as mulhere, da realização plena de uma vida digna como direito fundamental de todos os seres humanos.

Nesse sentido, o Brasil consolidou, em 2006, uma legislação específica de tutela especial às mulheres, através da denominada Lei Maria da Penha – como forma de combate a essa violência especifica, e como reconhecimento de que, pela Lei geral, essa forma de violência não seria vencida. Assim, a Lei Maria da Penha fez-se assumir o problema da violência contra mulher como questão de interesse publico, e não restrito à esfera privada (“onde não se metia a colher”).

A Lei, que completa cinco anos de vigência, e as mulheres que dela se utilizaram, foram menosprezadas, questionadas, atacadas, pelos próprios operadores do direito, que saíram prontamente invocando a sua inconstitucionalidade e negando a sua aplicação e necessidade. Fato que conduz à compreensão de que um dos principais desafios a serem enfrentados é a urgente e necessária superação da cultura machista entranhada na própria estrutura de aplicação do direito no país. Desse modo, é preciso que haja uma transformação na prestação da tutela jurisdicional, que deve estar a serviço de garantir os direitos da mulher e não da legitimação das desigualdades entre eles e elas naturalizada no conjunto da nossa sociedade.

Além do ocorrido que envolveu o ex-juíz Mezzomo, Edílson Rumbelsperger Rodrigues, juiz titular da 1ª Vara Criminal de Sete Lagoas (MG), considerou a Lei Maria da Penha inconstitucional, e suas decisões foram integralmente reformadas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Nesse caso, o juiz declarou que a Lei Maria da Penha tem “regras diabólicas” e que as “desgraças humanas começaram por causa da mulher”, além de outras frases igualmente repudiáveis. Na ocasião da abertura do processo, declarou à imprensa que combate o feminismo “exagerado”, que estaria previsto em parte da lei. Para ele, essa legislação tentou “compensar um passivo feminino histórico, com algumas disposições de caráter vingativo”.

A GOTA D’ÁGUA

O desligamento do Sr. Marcelo Colombelli Mezzomo é fruto da reincidência em “procedimentos incompatíveis” desde quando foi nomeado juiz. Sabe-se que ele já estava respondendo a outros procedimentos por conduta inadequada e havia sido penalizado com censura, uma advertência relativamente grave.

Essa é uma demonstração de que a sensibilização necessária da estrutura judicial para o fenômeno da violência sexista já surte efeitos, embora haja um longo caminho a ser trilhado para que a justiça, realmente se perfectibilize para as mulheres.

Diante de tudo, não estranhamos que para esse ex-juíz a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) seja considerada inconstitucional, e que se furtasse a aplicar a Lei por não aceitar julgar processos tendo ela como norma única. Além de não cumprir sua obrigação enquanto magistrado, ele escrevia e publicava artigos sobre suas posições. Chegou a defender que a Lei trata as mulheres com o olhar da vitimização e publicou num sítio de Direito que “Partir do pressuposto de que as mulheres são pessoas fragilizadas e vitimizadas, antes de protegê-las, implica fomentar uma visão machista. Não há em todo o texto constitucional uma só linha que autorize tratamento diferenciado a homens e mulheres na condição de partes processuais ou vítimas de crime”.

Quando juiz titular da 2ª Vara Criminal de Erechim, nunca aplicou a Lei Maria da Penha por considerá-la inconstitucional e violadora da igualdade entre homens e mulheres. Escrevia em suas sentenças que o “equívoco dessa lei foi pressupor uma condição de inferioridade da mulher, que não é a realidade da região Sul do Brasil, nem de todos os casos, seja onde for”, e que “perpetuar esse tipo de perspectiva é fomentar uma visão preconceituosa, que desconhece que as mulheres hoje são chefes de muitos lares e metade da força de trabalho do país”.

Ora, só uma justiça míope pode pretender tratar desiguais como iguais, promovendo, assim, maiores injustiças. Fazendo valer suas convicções pessoais, e afastando uma norma legitimamente vigente, o ex-juiz fez as mulheres duplamente vítimas: quando vítimas da violência e ao isentar de responsabilização criminal os agressores.

Assim, identificamos que, em diversas situações, o Ministério Público tem recorrido contra as sentenças de juízes em relação às medidas protetivas, haja vista que não são poucos os magistrados que se negam a reconhecer na Lei Maria da Penha sua legalidade e potencial de realização de justiça. Todos os recursos foram concedidos pelas Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Assim, passo a passo, o próprio direito vai afastando as pedras do caminho da justiça. O Sr. Marcelo Colombelli Mezzomo, ex-juiz, é uma pedra a menos, nesta longa jornada que temos para consolidar a justiça para as mulheres, efetivando-a para além da lei e sua forma abstrata.

É imprescindível considerar que a (descom)postura do Sr. Mezzomo, enquanto no exercício da magistratura, expôs o seu machismo pessoal e todo o seu preconceito contra as mulheres, valendo-se de forma irresponsável da distorção dos instrumentos e dispositivos legais. Já em julho de 2008, a Marcha Mundial das Mulheres repudiou os comentários do ex-juiz, afirmando que este reproduzia o machismo e o patriarcado existente nas estruturas de direito da sociedade. Passados 2 anos e 7 meses, o próprio Sr. Mezzomo corrobora nossa afirmativa, assumindo-se como infrator potencialmente enquadrável na Lei Maria da Penha. Dessa forma, fica nítida e materializada a sua irresponsabilidade e improbidade cometidas no ato de emitir interpretação falsa e pessoalizada de tal legislação em detrimento da aplicação justa e igualitária do Direito.

Permanecem algumas questões. Quantas mulheres serão vítimas da violência sexista praticada em casa e nos tribunais? Quantos Mezzomos utilizarão da deturpação da Justiça para sustentar a invisibilidade dos crimes cometidos contra as mulheres? Quantas Danielas levantarão a voz exigindo seus direitos? Quantas notas, textos, artigos os movimentos feministas terão de escrever reafirmando e combatendo as mesmas práticas, machismo, misoginia e sexismo? Até quando?

AÇÕES DA MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES

A Marcha Mundial das Mulheres, em sua Ação 2010, definiu 4 eixos de intervenção, sendo um deles a violência contra as mulheres, essa violência naturalizada, que faz parte do cotidiano de parte significativa das mulheres no Brasil e em todos os países, e precisa ter um fim.

Mas de que forma as mulheres estão se organizando para isto? Dando visibilidade a todas as formas de violência e sua origem. Sabemos que a raiz está no machismo que trata todas as mulheres como objeto e se manifesta de diferentes formas na sociedade capitalista, discriminadora e misógina. Sabemos que a violência tem sua maior expressão dentro de casa e os agressores estão entre pessoas conhecidas da mulher, e mais que isso, compõem suas relações de afeto. Mas também sabemos que é violência sermos tratadas como mercadoria, como objetos de desejo dos homens.

Uma vitória foi obtida com a exoneração desse juiz e esperamos que outros juízes também tenham suas condutas avaliadas. A sociedade precisa assumir um compromisso com a tolerância, a paz, e com a igualdade substancial. Para isso, cabe ao movimento de mulheres dar cada vez mais visibilidade às lutas contra a violência sexista, a partir da sensibilização das pessoas, da pressão para que o Estado elabore e execute políticas públicas e que o judiciário seja, de fato, uma instituição ética na qual depositamos nossa confiança e respeito.

Precisamos lutar contra a padronização e por mudanças culturais urgentes. As novas relações sociais serão construídas a partir desses paradigmas, rumo a um projeto global de transformação da vida das mulheres e da sociedade.

* Analine Specht, Claudia Prates e Sirlanda Selau são militantes da Marcha Mundial das Mulheres no Rio Grande do Sul.

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