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Em defesa do PT e da DS

ESPAÇO ABERTO

Segunda-feira, 30 de maio de 2005

Os radicais

Denis Lerrer Rosenfield

Em 24 e 25 de fevereiro de 2005, a Democracia Socialista (DS), uma das mais importantes tendências à esquerda do PT, reuniu a sua Coordenação Nacional e aprovou o seu Anteprojeto de Resolução à Conferência Extraordinária. Com esse documento, ela baliza as suas posições para o Encontro Nacional do PT em setembro deste mesmo ano, tentando seja eleger um presidente, seja infletir a atual política governamental, seja influenciar decisivamente o programa partidário. Saber o que pensa essa tendência é fundamental para que se possa entender o que acontece internamente no PT e, logo, no País.

O que mais surpreende na leitura desse texto é o “livre” uso de categorias marxistas, leninistas e trotskistas, como se elas fizessem naturalmente parte da visão que essa corrente partidária tem do mundo e da sociedade. Ao contrário de outros documentos de diversas tendências do PT que omitem, pelo uso de determinadas palavras, os seus propósitos de lutas por uma sociedade “socialista”, essa tendência expõe claramente o que pensa, sem subterfúgios. Logo, a utilização de categorias oriundas dessa esquerda autoritária não é nenhum capricho do autor deste artigo, mas algo que se impõe pelo próprio objeto de estudo. Estamos, por assim dizer, remetidos ao mundo anterior à queda do Muro de Berlim. Faremos, então, o caminho do Muro num sentido inverso.

Observe-se que o uso dessas “categorias socialistas”, que são nada mais do que conceitos explicativos do mundo, faz parte de toda uma tradição autoritária de esquerda. O problema, no entanto, não reside apenas no uso que essa tendência faz desses conceitos, mas que eles sejam entendidos, compreendidos por outras tendências do PT, como se fossem um referencial comum. Ou seja, esses conceitos fazem parte de um imaginário político petista suscetível de orientar as suas ações, podendo imprimir um outro curso aos eventos políticos brasileiros.

O vocabulário utilizado pela Democracia Socialista é o que dá forma a todo o imaginário político de esquerda do século 20. Essa tendência continua se movendo no interior de uma mentalidade que não mudou, como se os horrores totalitários da esquerda fossem meros acidentes de percurso. O mundo continua sendo explicado da mesma maneira, como se as categorias marxistas/leninistas/trotskistas mantivessem a sua validade, considerada de tipo absoluto. Aplicadas ao Brasil, elas orientariam a ação revolucionária. Enquanto outras tendências do PT, para dizerem a mesma coisa, usam de expressões como “solidariedade”, “justiça”, “movimentos sociais”, “sociedade civil” e outros, a DS traduz diretamente esses termos e expressões na linguagem propriamente revolucionária que permeia, de uma ou outra maneira, boa parte das tendências do PT, embora algumas delas já se tenham afastado dessas concepções. O ponto, no entanto, é o de comungarem de um mesmo imaginário que, se não for reformado, pode irromper na cena política brasileira sob a forma de encenações revolucionárias.

A “luta contra o neoliberalismo” na América Latina e no Brasil segue uma orientação de cunho nitidamente trotskista ao defender a idéia de que “não há possibilidade de desenvolver o socialismo em um só país: o projeto socialista para ser autenticamente emancipador deverá será internacionalista” (I, 0). A teoria de que não é possível construir o socialismo num só país foi elaborada por Trotsky, na perspectiva de levar a revolução para outros países, tendo, portanto, como horizonte de luta uma proposta internacionalista. A DS, ao retomar essa concepção, aplica-a ao contexto latino-americano, na medida em que, segundo ela, este continente estaria particularmente aberto a iniciativas desse tipo. Ou seja, o período atual se caracterizaria por “brechas” cada vez maiores na “hegemonia neoliberal”, viabilizando um caminho para lutas pela superação do capitalismo, lutas essas que se inscreveriam numa perspectiva mais ampla e de longo prazo rumo ao estabelecimento de uma sociedade socialista como as do “socialismo real”. O cenário atual seria o do fortalecimento das condições para que essa passagem se possa efetuar.

Um tal horizonte exigiria da esquerda que ela se organizasse segundo um programa de transição que utilizaria as lutas setoriais de combate contra o “neoliberalismo”. Dentre essas, o documento é particularmente elogioso em relação às várias edições do Fórum Social, pois este evento é um lugar privilegiado desse tipo de elaboração. Por ser internacional e abarcar correntes contestatárias de vários continentes que têm bandeiras negativas comuns – contra a “globalização”, contra o “imperialismo”, contra o “neoliberalismo”, contra o “FMI”, contra a “Alca” -, o Fórum torna-se um instrumento particularmente valioso para essa esquerda autoritária. Grandes redes internacionais deveriam ser intensamente utilizadas, instrumentalizadas, entre as quais o documento destaca a luta em “defesa da água, de serviços públicos, da economia camponesa e indígena, contra as privatizações” (I, 2). O seu propósito consiste em tornar essas lutas combates pelo “socialismo”, de modo que disputas setoriais, que seriam perfeitamente equacionáveis numa sociedade capitalista democrática, se tornem focos políticos de tensão. O enfoque teórico desse reordenamento de lutas deveria ter como eixo a “reorganização dos fundamentos do marxismo revolucionário” (I, 2).

Denis Lerrer Rosenfield, professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com doutorado de Estado em Filosofia pela Universidade de Paris, é autor, entre outras obras, de Hegel (Jorge Zahar Editor, Coleção Passo a Passo) e editor da revista Filosofia Política, da mesma editora. E-mail:denisrosenfield@terra.com.br


Em defesa da DS e do PT

Luiz Marques – Professor de Ciência Política da UFRGS

Num artigo recente n’O Estado de São Paulo, Denis Rosenfield procurou “saber o que pensa uma das mais importantes tendências à esquerda do PT” – a Democracia Socialista. Para tanto, lançou mão do Anteprojeto de Resolução à Conferência Extraordinária da DS, de fevereiro. Com base em “categorias socialistas” do texto, empreendeu uma análise de discurso para, peremptório, concluir que “enquanto outras tendências do PT, para dizerem a mesma coisa, usam de expressões como solidariedade, justiça, movimentos sociais, sociedade civil, a DS traduz diretamente esses termos na linguagem propriamente revolucionária que permeia, de uma ou outra maneira, boa parte das tendências do PT, embora algumas delas já se tenham afastado dessas concepções”.

A ressalva em apêndice era apenas uma concessão retórica. O principal está no fato de todas as tendências “comungarem de um mesmo imaginário que, se não for reformado, pode irromper na cena política” e “imprimir um outro curso aos eventos políticos brasileiros”. Ou seja, no momento de proferir um veredicto frente ao potencial anti-sistêmico do PT, as nuances que formam o arco-íris do petismo são esquecidas e, por conveniência, inverte-se os vetores da correlação de forças internamente. No calor da luta ideológica os juízos de atacado se sobrepõem à microfísica do poder partidário, cujo interesse restringe-se ao intramuros. E o PT não é visto numa “encruzilhada”1, mas como a representação-mor de um desejo supostamente extemporâneo de revolução.

Assim, partindo de um padrão discursivo de comunicação cultural que julgou identificar na DS e reputou paradigmático para o conjunto do espectro político -intelectual petista, Rosenfield chega ao “ponto” – o PT é um partido de esquerda, com um projeto de transformação para o país que se apóia na participação popular e na utopia de uma sociedade livre da opressão e da exploração. Nisto reside a razão de fundo da desqualificação permanente da DS e do PT. Os fins justificam até o sacrifício da verdade na tentativa reiterada de minar a credibilidade pública da esquerda.

Não à toa, a matriz teórica e conceitual da esquerda é classificada de “autoritária” na perspectiva liberal, para efeitos de refutação do programa de mudanças dos herdeiros da “Grande Recusa” visando a um desenvolvimento econômico sustentado e à superação das desigualdades sociais. Agravadas na fase em curso do capitalismo, em que o patrimônio dos duzentos indivíduos mais ricos do mundo contrasta com a terrível condição de miséria de milhões de pessoas, que sobrevivem com menos de um dólar por dia (UNDP, 2000). Na intenção de demonizar os adversários dos valores de mercantilização da vida, inerentes à dinâmica de acumulação capitalista, o conservadorismo subsome a diversidade da esquerda na fracassada experiência do “socialismo real”. Trata-se de uma deliberada falácia histórica.

Na década de 70 esta subsunção era impensável. Ninguém então questionava a distinção entre a prática do socialismo real e o corpo doutrinário do marxismo. Chutava-se o primeiro, salvaguardava-se o segundo. Rudolf Bahro consagrou a separação numa obra que virou referência, A alternativa (1977), onde o “socialismo realmente existente” recebia duras críticas à luz dos princípios marxistas, sob aplausos generalizados. Custou-lhe um ano de prisão na extinta Alemanha Oriental. Sua libertação resultou de uma formidável mobilização supra-ideológica no Ocidente. Só mais tarde se difundiria a tese de que o embrião do totalitarismo já estava contido nos escritos de Karl Marx.

Coube aos “novos filósofos” franceses (André Glucksmann, Bernard Henry-Lévy), com o aprofundamento da crise do stalinismo nos 80, a tarefa de embaralhar as cartas e divulgar com amplo suporte midiático o reducionismo que fez tábua rasa da trajetória das diferentes inflexões de esquerda (Trotsky, Rosa Luxemburgo, Antônio Gramsci, Victor Serge, Isaac Deutscher, Ernst Bloch) que nunca foram coniventes com os descaminhos assumidos no Leste Europeu, especialmente após 1923.

A DS, bem como o PT, pertence a esta família iconoclasta, rebelde, libertária, para quem a democracia e o socialismo são indissociáveis na sociedade e no âmbito partidário. Como explica Raul Pont: “Essa concepção democrática, plural, que não é contraditória com a unidade partidária, é a nossa maior virtude orgânica e nosso principal patrimônio político, que garantiu nossa unidade e crescimento ao longo deste quarto de século de existência. E é esta democracia interna que nos possibilitará corrigir ou mudar os rumos da nossa própria prática e experiência vivida nos parlamentos, nas administrações e nas políticas públicas que desenvolvemos na sociedade”2.

Não há melhor antídoto contra o reino sombrio da burocracia do que a plena liberdade para que todas as tendências políticas e todas as idéias se manifestem. Convicção que o PT incorporou no I Congresso, em 1990, ao institucionalizar o direito de tendência com a adoção da proporcionalidade nas direções executivas. Ocasião em que também aprovou um mínimo de 30% de mulheres em suas instâncias diretivas. Nada mais distante da atmosfera asfixiante típica da pasteurização stalinista.

O enquadramento da DS ou do PT em um capítulo “anterior à queda do Muro de Berlim”, que vem a ser a tradução política da criminalização dos movimentos sociais reclamada pela direita no campo e na cidade atualmente, não se sustenta3. Exceto como reforço à estratégia de manipulação da consciência do nação encetada pelo PSDB de Fernando Henrique Cardoso e Arthur Gianotti com o intuito de criar artificialmente contradições entre o Estado Democrático de Direito e a esquerda, por extensão, o governo Lula. Veja-se, por exemplo, o modo distorcido e cínico como a reação abordou e abortou o debate sobre a Ancinav e o Conselho Federal do Jornalismo.

Neste contexto, sobram recriminações também ao Fórum Social Mundial por facilitar a organização da resistência dos povos ao neoliberalismo e ao imperialismo estadunidense. O FSM seria “um instrumento particularmente valioso”, lastima Rosenfield, para o combate ao FMI e à Alca e para a promoção da defesa da água, dos serviços públicos, da economia camponesa e indígena, contra as privatizações. Se o objetivo era atacar o internacionalismo da esquerda brasileira poderia ter citado, antes, o Fórum de São Paulo que há quinze anos o PT impulsiona junto com outras agremiações e articulações socialistas e democrático-populares da América do Sul e do Caribe.

Em resumo, como se lê no romance O senhor embaixador, do imortal Érico Veríssimo: “Usa os miolos, hombre. Então não compreendes ainda a história?” Chama-se luta de classes o que alguns nem mesmo às paredes ousam confessar.

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1 – Alusão ao livro de autoria de D. Rosenfield (PT na encruzilhada: social-democracia, demagogia ou revolução? Porto Alegre, Leitura XXI, 2002), no qual o autor reatualiza a tese do “fim da história”, de Francis Fukuyama, para apresentar a democracia representativa e o capitalismo como os únicos horizontes possíveis e desejáveis para a humanidade.

2 – 25 anos do Partido dos Trabalhadores (Veraz, 2005), ensaio assinado por Raul Pont, Edson Portilho, Elvino Bohn Gass e Ronaldo Zulke, deputados da bancada do PT/RS e membros integrantes da DS.

3 – Em vez de buscar sinais do fantasmagórico “Partido-Estado” no PT, melhor seria estudar a influência do comunitarismo por oposição à lógica estatal que caracterizou a tradição cristã no País, como aponta Juarez Guimarães (“O cristianismo brasileiro e a cultura petista”, Periscópio/FPA, maio de 2005).

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