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“Fundos abutres”: tentativa de submeter a política à economia

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Há várias décadas, quando começaram a investir com maior intensidade e volume nos países do Terceiro Mundo, incluindo ex-colônias recém-independentes, as corporações multinacionais passaram a exigir garantias a seus investimentos, sobretudo contra possíveis perdas devido a estatizações e outras medidas governamentais, como limitações às remessas de lucros. Também é notório historicamente o envolvimento de empresas multinacionais em golpes de Estado contra governos que contrariaram seus interesses econômicos, como os casos das americanas United Fruit na derrubada de Jacobo Arbenz, na Guatemala, em 1954, e AT&T na de Salvador Allende, no Chile, em 1973, entre muitos outros.

A partir do aprofundamento do projeto neoliberal, a ideia de proteger investimentos se tornou lugar-comum, inclusive com tentativas de incluir tratados dessa natureza nas regras da OMC. Se nesta ainda não se obteve êxito, nas instituições financeiras como FMI, Banco Mundial, agências privadas de rating, entre outras, são recomendados ou impostos quando possível. Muitos governos aceitaram firmar Tratados Bilaterais de Investimentos (BITs, na sigla em inglês) como forma de melhorar seus indicadores de risco. No Brasil, o governo FHC chegou a assinar dezessete, mas todos foram rejeitados pelo Senado. Hoje somos um dos poucos países que não adotaram essa praga.

A essência dos BITs, além de definir um leque amplo e absurdo de questões contra as quais os investimentos deveriam ser protegidos – como perdas decorrentes de desastres naturais ou perdas futuras presumíveis devido ao encerramento de atividades –, é a definição de instâncias de solução de controvérsias fora do âmbito do país receptor. Um dos mais conhecidos é o Centro Internacional de Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (Ciadi), ligado ao Banco Mundial. Ou seja, a assinatura desses tratados viola a soberania nacional ao excluir o Poder Judiciário do país receptor como o foro adequado para julgar eventuais queixas dos investidores, podendo causar inúmeros prejuízos contra os quais não há instâncias superiores para recorrer.

Os primeiros laboratórios do neoliberalismo na América Latina foram o Chile e a Argentina, após os respectivos golpes militares na década de 1970. Além disso, na segunda metade daquela década a liquidez dos recursos internacionais disponíveis para empréstimos e refinanciamentos da dívida externa do Terceiro Mundo era mais escassa, e alguns países como a Argentina passaram a aceitar tribunais de outros países para arbitrar controvérsias em relação aos títulos emitidos pelo governo e negociados internacionalmente. Assim, o regime militar argentino aprovou uma lei, em vigor até hoje, que define o tribunal da cidade de Nova York como o foro para dirimir disputas sobre os títulos financeiros emitidos pelo país.

No início do governo neoliberal de Carlos Menem (1989 a 1999), um plano de ajuste econômico semelhante ao Plano Real aplicado no Brasil, pouco depois, estabeleceu a paridade entre o peso argentino e o dólar americano. Essa conversibilidade de um por um foi inscrita na Constituição e mantida a grandes custos econômicos e sociais até 2001, quando o país entrou em profunda crise econômica e a moeda desvalorizada chegou ao câmbio de três pesos por dólar. Portanto, quem naquela época possuísse títulos da dívida argentina em dólares poderia em tese receber três vezes seu valor em pesos, o que seria insuportável para a economia do país.

Dessa forma, houve uma negociação com os portadores desses títulos durante o governo de Nestor Kirchner (de 2003 a 2007), reduzindo seu valor em 66%. Essa negociação foi aceita por 93% dos credores e apenas 7% dos títulos ficaram à deriva. Destes, 1% foi comprado depois a preços extremamente baixos por vários fundos de investimento especializados em especular com os chamados “títulos podres”. Conhecidos como “fundos abutres”, todos visualizavam a possibilidade de receber o valor de face dos títulos por meio de ações na Justiça, no caso o Tribunal de Nova York. Além de ingressar com as ações, promoveram intenso lobby no tribunal e perante a opinião pública, gastando cerca de US$ 1 milhão por ano.

O juiz Thomas Griesa deu ganho de causa aos “abutres”, atribuindo-lhes o direito de receber US$ 1,3 bilhão pelos títulos. Somente um deles, o Fundo NML, comprou seus títulos por US$ 48,7 milhões e agora pode receber US$ 832 milhões, um lucro de aproximadamente 1.600%! A sentença foi além: o juiz também impediu o governo argentino de honrar o pagamento dos juros e dividendos vencidos em 29 de julho passado aos credores que fizeram acordo, enquanto não cumprir a sentença. Assim, cerca de US$ 540 milhões depositados pelo governo argentino com essa finalidade estão bloqueados no Mellon Bank em Nova York.

Diante disso, o governo de Cristina Kirchner ficou em uma situação delicada. Se acatada a sentença do juiz, os outros 6%, que não fizeram acordo, mas ainda não ingressaram com ações, têm perspectivas concretas de também ser beneficiados, o que quase esgotaria as reservas financeiras do país. Sem falar da possibilidade de os demais credores que aceitaram a negociação também tentarem alguma coisa, ainda mais com o governo impedido de honrar a dívida com eles.

A pressão exercida pelas instituições financeiras e pela mídia sobre os argentinos é grande. Sua luta é para que o capital financeiro e especulativo possa se movimentar à vontade, sem interferências estatais e com total garantia a seus lucros. Para elas, o capitalismo já não é uma atividade de risco. Por isso, a mídia mundial fala em “calote” e “default” para constranger o governo argentino e fortalecer a oposição de direita, pois acredita que uma mudança de governo possa favorecer as políticas neoliberais que defende. O “calote” não existe, uma vez que a Argentina vem honrando o acordado com os credores há quase dez anos e recentemente recebeu integral apoio dos Brics, da Unasul e do Mercosul contra a imposição do tribunal nova-iorquino.

Custe o que custar, o governo de Cristina Kirchner não poderá ceder e necessitará de apoio concreto de seus aliados para aceder a créditos e mercados internacionais. A presidenta Dilma Rousseff já se comprometeu a levar para a próxima Cúpula do G-20 a discussão sobre a criação de regras que definam procedimentos e garantias para situações como a negociação da dívida argentina, pois atualmente elas não existem. Há somente a intenção das empresas multinacionais e dos especuladores de submeter a política e a soberania nacional aos ditames dos agentes econômicos. Não se trata mais de “Estado mínimo”, e sim da eliminação do Estado.

Kjeld Jakobsen é diretor da Fundação Perseu Abramo.
Publicado na revista Teoria e Debate.

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