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Marxismo e democracia: um novo campo analítico-normativo para o século XXI

Não é difícil constatar que o debate acadêmico contemporâneo sobre a democracia ou sobre a república em geral prescinde do marxismo enquanto fundamento, sequer como interlocutor ou até mesmo como oponente crítico.

Há razões de ordem histórica e de cultura política que sustentam este fenômeno. O modo como se processou o fim dos sistemas de poder do Leste Europeu expressou uma vitória do capitalismo, seus valores e instituições. Por sua vez, o ponto de saturação do horizonte da  cultura contemporâneo pela visão de mundo liberal reduziu o espectro da imaginação política a uma interlocução entre correntes no interior de seus fundamentos de civilização.

Creio que há uma terceira razão, porém, de ordem teórica, que está na base deste fenômeno, interno ao próprio campo do marxismo, que diz respeito à sua congênita dificuldade de estabilizar um campo analítico-normativo coerente de crítica ao capitalismo. A crise do marxismo é historicamente bem anterior aos acontecimentos da última década e, ao invés de ser deles mera consequência, está também na própria base destes fenômenos. Assim como a URSS ruiu de dentro para fora sob a pressão do capitalismo, também as cidadelas do chamado marxismo ortodoxo ( em sua sistematização mais extremada, o “marxismo-leninismo”) haviam sido cindidas e desorganizadas pela pressão da visão de mundo liberal. E foi em torno e a partir do tema da democracia, da incompatibilidade de fundamentos entre a realização das promessas emancipatórias do marxismo e a liberdade, que essa erosão do campo teórico do marxismo instituiu-se e se alastrou.

Se estamos corretos nesta avaliação, a reentrada do marxismo no debate contemporâneo sobre a democracia deve percorrer necessariamente um duplo percurso crítico, o da polêmica com o liberalismo e a reconstrução do seu campo analítico-normativo. Este esforço para reposicionar o marxismo no debate contemporâneo sobre a democracia, sempre trilhando este duplo processo crítico e auto-crítico, passa a nosso ver por três desafios :

– superar a interdição liberal que pesa sobre o marxismo acerca da incompatibilidade de fundamentos com a democracia, isto é, demonstrar a possibilidade de convivência entre marxismo e democracia ;

– demonstrar a centralidade do marxismo para refundar um campo analítico-normativo do marxismo que projete a superação dos impasses contemporâneos da democracia ;

– inverter, em consequência, a afirmação de Norberto Bobbio de que há uma relação de necessidade entre liberalismo e democracia, demonstrando os fundamentos de dominaçào que presidem esta visão de mundo.

Marxismo crítico e reinvenção do socialismo

Se são várias as visões de mundo anti-capitalistas ( conservadorismo de fundo romântico, milenarismos e ideações utópicas, o anarquismo), são também  múltiplas as fontes da tradição socialista ( o associativismo das guildas, o marxismo, o comunitarismo cristão e até mesmo  os chamados “socialismos liberais” ou liberalsocialismos, que vão desde  o último John Stuart Mill até certas correntes do pensamento italiano no século XX).

Mas é certo que foi em torno da tradição marxista que se organizaram as correntes anti-capitalistas e socialistas de maior continuidade, influência e impacto nos dois últimos séculos. Não por acaso mas por três razões fundamentais : na origem do marxismo estavam três complexos culturais ricamente configurados na aurora da modernidade capitalista ( o idealismo alemão, a economia política inglesa e os jovens movimentos socialistas) ; seu campo analítico mostrou-se particularmente fértil e heuristicamente produtivo e, além disso, sua organicidade ao moderno movimento operário europeu forneceu-lhe um caminho de expansão internacional.

Mas já aprendemos também que a cultura do marxismo foi desde sempre plural. A própria noção de marxismo ocidental  contraposta à noção de marxismo russo é insuficiente para captar este pluralismo. Andrew Arato já localizava na cultura marxista da II Internacional pelo menos cinco diferentes e alternativas fundamentações filosóficas do marxismo.(1) De novo qui, porém, é possível afirmar que foi a tradição do marxismo russo a que exerceu uma condição quase estruturante do marxismo na maior parte do século XX, não apenas em relação a seu corpo dogmático ( o chamado marxismo-leninismo) mas também em relação à sua crise ( as várias vertentes do trotskismo, o euro-comunismo, o althusserianismo, o maoísmo foram também configurados em relação a suas problemáticas e impasses).

O que parece ter se esgotado  na última  década de noventa  não foi o marxismo mas a perspectiva de compreender os seus dilemas a partir de uma ótica russa, isto é, a partir de outubro de 1917 e seus desdobramentos históricos e culturais. Mais precisamente, a cultura terceiro  internacionalista em seu pluralismo interpretativo. Não se trata de arquivar outubro, esconjurar o demônio bolchevique, dar razão em última instância a Kautsky ou Bernstein. O que equivaleria a interpretar um momento crucial do impasse do marxismo a partir de um outro momento decisivo de sua crise, as variantes reformistas da II Internacional. Mas ler a própria grandeza e tragédia de 1917, suas conquistas e fracassos, a partir de um ponto de vista marxista mais clássico e universalista.

O marxismo passa hoje por um processo de renovação e classicização fundamental para os destinos do socialismo no século XXI. Um retorno a Marx diverso daquele dos anos da desestalinização, menos dogmático e tensionado para descobrir exegeticamente a verdadeira leitura ou a filosofia em ato na obra de Marx. Trata-se de um “marxismo crítico”, na boa expressão de Michael Löwy.(2)

Se a década de noventa foi marcada pelas respostas à crise do neoliberalismo ainda no campo do horizonte liberal ( as chamadas terceiras-vias), o que se trata hoje é de começar a configurar os fundamentos de alternativas ao neoliberalismo a partir de valores, dinâmicas e perspectivas de um socialismo democrático renovado.

A seguir, apresentaremos três teses  desta renovação do marxismo, relacionadas a temas chaves para a renovação de um projeto socialista neste século. São elas :  marxismo e o princípio da liberdade, marxismo e princípio da soberania popular ou republicanismo e marxismo e princípio de civilização.

Marxismo e princípio da liberdade

Após pouco mais de um século e meio de sua história, a cultura do marxismo ainda não estabilizou teoricamente uma resposta convincente e adequada ao princípio da liberdade, chave para se pensar o futuro do socialismo. Foi em torno dos limites, inconsistências ou mesmo problematicidade das respostas marxistas a este princípio que o liberalismo centrou a sua crítica.

O princípio da auto-determinação está posto no centro da síntese de Marx.(3). Não deveríamos desvalorizar esta conquista ético-política, ato de verdadeira fundação do socialismo moderno, atualização do princípio rousseauniano da autonomia no solo da modernidade capitalista. Aí está a  distância maior entre Marx e Hegel e não na oposição materialismo/ idealismo, como muito bem observou Lenin em seus Cadernos Filosóficos. E, ao mesmo tempo, está aí ponto estruturante da delimitação do marxismo frente à insuficiência histórica inarredável do conceito liberal de liberdade, preso ainda à condição heterônoma do Estado e do mercado.

Mas a questão é : a obra teórica de Marx contém um desenvolvimento teórico adequado, conceitualmente coerente deste princípio da auto-determinação ? Pensamos que não já que  ela não supera as tensões deterministas na sua visão da história, seja através de uma filosofia da história, de uma teoria da história ou de uma ciência da história.

A inteligência da grande crítica liberal ao marxismo foi de fixar a leitura da obra de Marx como sendo coerentemente determinista e, a partir daí, erigir metódica e logicamente a sua incompatibilidade com a noção de democracia. Como a cultura do marxismo foi, desde as suas origens, predominantemente determinista, os próprios marxistas pareciam dar razão à crítica liberal.

Como os liberais formularam, a partir do determinismo, a incompatibilidade entre marxismo e democracia ? Estudando a crítica de Benedetto Croce, Max Weber, Karl Popper e Norberto Bobbio, de diferentes épocas e densidades teóricas, elaboramos esta incompatibilidade a partir de três impasses : da antinomia, do carecimento e da inversão.(4)

Da antinomia : se o destino da sociedade está fixado a priori, então os homens não podem livre e coletivamente escolher o seu futuro e a própria noção de democracia perde o seu sentido.

Do carecimento : a pretensa cientificidade da previsão do futuro social pelo marxismo neutraliza a dimensão ético-moral, encerrando os marxistas em uma cega ética das convicções. Assim, estas visões deterministas acabaram por reduzir o princípio da liberdade no marxismo a uma adesão às leis imanentes do mundo, a consciência reduzida à ciência, o ato ético-moral da escolha amesquinhado à opção pelo que seria, afinal, vitorioso. É significativo que um filósofo do porte de Plekhanov tenha chegado a definir o marxista como uma espécie de anti-Hamlet, um ser que age movido incólume ao esclarecimento que só a dúvida permite.(5) Por sua vez, o economicismo que expressa o determinismo, anula ou reduz o campo e a dignidade da política. O esvaziamento ou empobrecimento  da reflexão política teria feito com que a teoria marxista nunca tivesse sido capaz de pensar plenamente o Estado, omitindo-se quando a respostas mais elaboradas dirigidas  a conter  o potencial opressivo da concentração do poder político. Além disso, a pretensão de cientificizaçào da política introduz um viés necessariamente anti-pluralista, já que a uma posição científica, opor-se-iam as demais, vistas como falsas ou não verdadeiras ou simplesmente anti-científicas.

Da inversão : o futuro estando determinado, valeriam para alcançá-lo todos os meios, mesmos os que contradissessem provisoriamente os valores humanistas. O caminho estaria aberto para o percurso que vai  de uma visão instrumental dos valores ao anti-humanismo. Professando um ideal finalista da história, coletivista, organicista, o marxismo teria se fechado ao desenvolvimento de uma concepção moderna de individualidade e, no limite, à própria valorização dos direitos humanos. Ali onde toda teoria da emancipação humana deveria expandir-se , agigantar-se, fecundar-se, refinar-se – o terreno da formação da autonomia individual vinculada a valores emancipatórios – o marxismo em suas formas dominantes apequenou-se, aprisionou-se, esterilizou-se, embruteceu-se.

O caminho para desmontar a interdição liberal é questionar a leitura liberal da obra de Marx como sendo coerentemente determinista. Este questionamento só pode ganhar credibilidade se se reconhecessem na trajetória intelectual de Marx, variando de fontes e dimensões, a existência nunca de todo superada, de tensões deterministas.(6) Estas tensões resultaram, em grande medida, do diálogo crítico de Marx com os grandes complexos científicos culturais de seu tempo : a filosofia alemã, a economia política inglesa, o materialismo francês – marcados pela visão determinista da história.(7) A dimensão crítica do diálogo de Marx com estas fontes protege, no entanto, seu campo teórico de uma coerente e rematada visão determinista da história.(8) Por outro lado, faz conviver em seu campo analítico-normativo  – nunca plenamente desenvolvido do ponto de vista conceitual – uma visão praxiológica da história, de que os homens constroem coletivamente a história, embora profundamente condicionados por sua cultura, sua posição de classe, pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas.

O desenvolvimento conceitual pleno de uma visão praxiológica da história permitiria tornar possível e compatível a relação entre marxismo e democracia, superando os três impasses antes referidos. Mas foi apenas com a rede de conceitos elaborados por Antonio Gramsci nos Cadernos do Cárcere, setenta anos após a edição do primeiro volume  de “O Capital”, que o campo teórico do marxismo  conseguiu romper com o determinismo histórico e desenvolver , em um novo patamar, os fundamentos do que chamamos uma concepção praxiológica da história.

Em uma das passagens mais líricas e dramáticas dos Cadernos, Gramsci fazendo alusão à Poesia e Verdade, de Goethe, relembra a figura de Prometeu  que, separado dos deuses e contando apenas com suas próprias forças, povoou um mundo.(9) A imagem lembra a solidão – esta separação radical dos dogmas e certezas – da reflexão de Gramsci no cárcere.

O campo teórico do marxismo reconstruído por Gramsci tem em seu centro o conceito de hegemonia, que nucleia uma cadeia coerente de outros como as noções de bloco histórico, de “revolução passiva”, de crise orgânica, de intelectual orgânico e de vontade coletiva os quais, como critérios de interpretação histórica, fornecem instrumentos analíticos macros de compreensão da dinâmica das sociedades a partir da práxis coletiva dos atores sociais.(10) O fato da reflexão de Gramsci não estar sistematizada formalmente, compondo-se de uma teia de pensamentos formulados em claro estágio formativo e em regime de   tensão  criativa, deveria proteger aqueles que se apoiam em suas reflexões  da tentação de erigir um gramscianismo  como ponto de chegada, dogmatizar a obra de Gramsci.

O desenvolvimento conceitual de uma visão praxiológica da história permitiria tornar possível e compatível a relação entre marxismo e democracia, superando os três impasses antes referidos. Em primeiro lugar, a noção de história aberta com base no resultado nunca plenamente previsível (embora não indeterminado plenamente ou puramente casuístico) do choque das vontades coletivas organizadas nas sociedades. Assim, é exatamente a dimensão da política que é a chave de uma concepção de mudança histórica, tornando possível a retomada de um rico diálogo do marxismo com as várias tradições da filosofia política.

Em segundo lugar, a descientificização da auto-compreensão do marxismo e a sua concepção como uma teoria ou visão totalizante do mundo social que pretende construir um novo campo civilizatório, a partir da crítica do liberalismo e da civilização do capital. Em suma, a sua compreensão como filosofia da práxis transformadora, como sinteticamente propôs Gramsci, retoma a dimensão do seu significado ético-político  como humanismo radical e, ao mesmo tempo, o liberta de um viés anti-pluralista, auto-referenciado na cultura, auto-proclamatório no programa e auto-suficiente no exercício do poder.

E, por fim, se o futuro não é fixado a priori, o caminho da emancipação e não simplesmente a meta, torna-se fundamental. Passar a ser estritamente necessária uma relação dialeticamente configuradora entre fins e meios, entre o caminho e o objetivo socialista, entre indivíduo e sociedade .

Chegamos assim à primeira tese : desenvolver um marxismo dotado de uma visão praxiológica da história, conceitualmente consistente, é pois fundamental. É condição para recuperar uma dialética entre a liberdade individual e coletiva, uma dinâmica emancipadora entre meios e fins, entre valores e racionalidades anti-capitalistas.

Esta visão praxiológica permitiria desenvolver plenamente o valor da autonomia como fundamento da liberdade individual no campo do marxismo. É interessante como a noção de autonomia, de origem na matriz rousseaniana, repõe a noção de liberdade para além do dilema entre ”liberdade positiva” e “liberdade negativa”, como formulado por Isaiah Berlin. E refaz uma lógica mutuamente configuradora entre liberdade e igualdade, já que a dominação econômica  tanto quanto a opressão política pode ser fonte da heteronimia. Assim, é evidente que se o capital é, nos seus próprios termos, uma relação de dominação, um conceito pleno de autonomia individual é potencialmente anti-capitalista.(11)

O tema da autonomia  permitiria acolher com centralidade três temas da fronteira do século XXI. O primeiro deles, a atualização do questionamento ao próprio princípio do capital, isto é, da apropriação privada para fins de lucro dos ganhos permitidos pela ciência e a sua destinação ao aumento do tempo socialmente livre do trabalho necessário, como condição para a superação dos limites da divisão de trabalho. Em segundo lugar,  a cultura do direito à diferença e os seus temas derivados  – o pluralismo de valores de civilização, estético e  cultural, a liberdade de opção sexual, a resistência aos padrões agressivamente normatizadores da personalidade. Enfim, a participação cidadã nos destinos da comunidade como princípio político estruturante. Isto nos leva à segunda tese, a da relação entre marxismo e republicanismo.

Marxismo e princípio da soberania popular

Foi na experiência da revolução russa que se cristalizou, no plano histórico e teórico, a cisão entre o princípio da ditadura do proletariado e o princípio da soberania popular. Na crítica aguda de Rosa de Luxemburgo à dissolução da Assembléia Constituinte ( e à não convocação de uma outra) foi traduzida pela direção bolchevique não como um limite da revolução ( a não adesão das maiorias) mas como uma virtude. Em Lenin, esta cisão se apresenta como a crítica da democracia burguesa através da oposição inconciliável entre democracia direta e representativa  e na defesa da legitimidade da restrição ao direito de voto dos burgueses, que ele concebia explicitamente como necessidade advinda da particularidade russa. Em Stalin, a tensão substitucionista de Lenin já se cristalizou em torno à teoria do partido único, amalgamado ao Estado. Em Trotsky, em “A revolução traída”, a democracia operária concebida como pluripartidária é formulada de modo insuficiente como antídoto à burocratização.

O conceito de ditadura do proletariado, embora com oscilações de sentido, Estado-comuna ou Estado centralizado da transição ao socialismo, está, no entanto, em Marx.(12) O princípio da legitimidade deste Estado  de transição está ancorado na noção da universalidade do proletariado, classe definida imanentemente como revolucionária porque interessada objetivamente no comunismo. Mas em Marx, na experiência da Comuna parisiense a contradição entre o poder revolucionário e o princípio da soberania popular não está aflorado já que a Comuna foi eleita por sufrágio universal. Essa contradição aflorou “externamente” à experiência no cerco à cidade revolucionária, com a ausência do apoio das maiorias camponesas.(13)

Mas como Marx elaborou a noção do proletariado como classe universal ? Esta noção foi elaborada nos anos quarenta, em particular no seu diálogo crítico com Hegel,  na passagem do seu rousseanismo de origem, pensado do alto da filosofia alemã, para o comunismo. A importância deste diálogo crítico para o futuro da obra de Marx desmente as leituras que pretendem isolar o Marx “maduro” do “jovem” Marx, uma fase ideológica de uma outra científica ou simplesmente “marxista” e “pré-marxista”. Trata-se claramente de um momento genético de síntese, de delimitação e de constituição de uma primeira identidade, do lançamento de uma perspectiva e de uma problemática que, se estão ainda longe de encontrar uma maturação conceitual, nunca serão negadas no itinerário intelectual de Marx.

No centro das reflexões de Marx   em “Para a crítica da Filosofia do Direito de Hegel”(1843) e “Para a crítica da Filosofia do Direito de Hegel-Introdução(1844) estão as relações entre a política e o econômico-social ou, na linguagem da filosofia política, entre Estado e sociedade civil. A doutrina liberal formulou conceitual e programaticamente a noção da separação entre Estado e sociedade civil, definindo a própria noção de liberdade a partir da autonomia desta última, de sua prioridade ontológica frente ao Estado, de suas prerrogativas, limites e controle do poder do estado. Assim, a noção de liberdade ganhou um sentido negativo, como sendo o espaço livre de constrangimento do indivíduo face ao poder estatal. Historicamente, a crítica marxista à doutrina liberal incidiu centralmente sobre o limite, o formalismo, a incompletude da dimensão política ( estatal) da liberdade, repondo o sentido social da emancipação, a dimensão da igualdade social como fundamento da verdadeira liberdade, maximizando a noção não do limite mas do controle ou absorção do poder do Estado pela sociedade emancipada ou auto-governada.

Ora, a nosso ver, o grande problema desta crítica marxista à doutrina liberal está não propriamente nos seus termos de crítica já que é possível demonstrar com evidência mais que suficiente que o domínio do capital impõe severos limites à liberdade e à igualdade dos cidadãos no capitalismo. A sua falha está em não fazer a crítica de raiz do fundamento da visão liberal de sociedade, que trabalha analitico-normativamente com a noção de separação entre Estado e sociedade civil. A origem deste erro remonta aos próprios anos de nascimento do marxismo, da crítica de Marx à filosofia hegeliana do Estado que coincide com a sua delimitação original em relação ao liberalismo.

Para termos uma visão da inadequação ou desequilíbrio conceitual do campo analítico-normativo que Marx elabora  neste período decisivo – e que se projetaria duradouramente na sua obra – é preciso repor os três pólos do debate, isto é, a tradição liberal (traduzida  aqui na teoria lockeana jusnaturalista e contratualista), Hegel e Marx.

Em Locke, o momento ético-político da fundação do Estado, criticamente aos motivos teológicos do absolutismo monárquico e alternativamente à racionalização hobbesiana, é recomposto em um argumento  que parte dos direitos naturais e vê a passagem da sociedade natural para a sociedade civil através de dois pactos, o de associação e o de submissão. No argumento de  Locke, a sociedade precede o Estado ( inclusive com a existência da propriedade e do dinheiro) e contra ele, estipula-lhe os limites e delimita as suas prerrogativas. No século XVIII, a economia política inglesa confere um estatuto de cientificidade à separação entre Estado e sociedade civil, teorizando o automatismo do funcionamento do mercado que estrutura a sociedade civil. No século XIX, o utilitarismo atualiza a filosofia liberal frente ao descrédito do jusnaturalismo sem, no entanto, rever a sua concepção da relação entre Estado e sociedade civil.

Hegel em “Fundamentos da Filosofia do Direito”(1821) culmina um desenvolvimento teórico que tem início em “Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural”(1802) no qual faz a crítica de Grotius a Rousseau (empiristas) e Kant e Fichte (formalistas). Hegel critica o método e estrutura do jusnaturalismo, no qual vê as incosist6encias do princípio atomístico, da determinação arbitrária da natureza humana e a unidade externa entre Estado da natureza e Estado de Direito. Na ausência do princípio da eticidade, haveria uma “unidade formal que passa sobre a multiplicidade e não a penetra”. Em “Fundamentos da Filosofia do Direito”, Hegel consolida a sua evolução de um organicismo de origem, que vê unidade entre Estado e natureza para uma concepção que acolhe a liberdade da vontade.(14)

Em síntese, em Hegel o momento ético-político é pensado especulativa e metafisicamente através de uma razão que realiza a síntese entre a liberdade objetiva e a liberdade subjetiva, denunciando a capacidade do mero contrato para estruturar a sociabilidade. Em seus sistema, a eticidade penetra os diversos momentos, o da unidade irreflexiva (família), o de um semi-desenvolvimento ( na sociedade civil, composta pelo sistema de necessidades, pelo sistema de lei e de justiça, pela polícia e corporações) e um desenvolvimento pleno no Estado ( Constituição, Coroa, burocracia, o legilstivo). Por essa via, Hegel nega tanto o automatismo do mercado quanto a prioridade ontológica da sociedade em relação ao Estado, enfatizando a unidade entre Estado, família e sociedade civil a partir da eticidade.

Em Marx, convergem a crítica do caráter especulativo do momento ético-político, a crítica à inconsistência, de fundo teológico, da defesa hegeliana da monarquia constitucional e a crítica ao modo como Hegel formula a reconciliação dos interesses conflitantes da sociedade civil na eticidade estatal enquanto um universal. Mas qual a relação entre Estado e sociedade civil que resulta desta tripla crítica de Marx ao sistema hegeliano ? Em síntese, a eticidade se objetiva em um primeiro momento (1843) na figura do dêmos total e, depois (1844), no proletariado. A sociedade civil, a partir do método feuerbachiano da inversão ou método transformativo precede ontologicamente ao Estado. (15) Enfim, a emancipação social leva à superação do Estado político, a superação da cisão entre o burguês e o cidadão, entre Estado e sociedade civil.(16)

Qual seria, em síntese, os problemas do campo analítico-normativo resultante da crítica de Marx a Hegel ? Em primeiro lugar, a desvalorização ou negação do princípio ético-político como momento chave  de fundação e de solda do Estado e da sociedade civil. Em segundo lugar, o estabelecimento de uma prioridade ontológica da sociedade civil diante do Estado, que na cultura do marxismo, fixar-se-ia no dualismo base-superestrutra. Por fim, a determinação empírica de uma nova eticidade no proletariado, que ganha assim uma projeção metafisicamente revolucionária na história.

Uma crítica à concepção hegeliana do Estado que não perdesse as suas conquistas metodológicas na crítica ao liberalismo, deveria trabalhar com o conceito de Estado integral. E, aqui estamos seguindo as pistas de Gramsci nos “Cadernos do Cárcere”, desenvolvendo o seu campo analítico-normativo  :

– um campo ético-político hegemônico, historicamente configurado por vontades políticas socialmente organizadas através de uma rede de intelectuais orgânicos ;
– instituições estatais organizadas a partir do ponto de vista de uma eticidade política hegemônica ( Estado, no sentido estrito de máquina governativa e repressiva);
– instituições privadas, organizadas de acordo com a eticidade política hegemônica, configurando a sociedade civil, a qual inclui o mercado ou a sua “anatomia”, como afirma Marx.

O Estado seria, então, a unidade contraditória entre Estado (no sentido estrito) e sociedade civil, historicamente configurados. Ressalte-se que neste campo analítico-normativo a dimensão internacional deve ser  incorporada como momento fundante já que a eticidade de qualquer Estado nacional participa ou se relaciona com a eticidade configurada mundialmente, todo Estado participa de um sistema de Estados e o mercado de cada país relaciona-se com o sistema capitalista mundial.(17)

Com esta concepção de Estado, seria possível requalificar a crítica do marxismo ao liberalismo e a sua  própria concepção das relações entre  democracia e socialismo.

Ao invés de opor  a dimensão social da emancipação ao caráter meramente político da liberdade na doutrina liberal, tratar-se-ia de opor à eticidade política liberal um outro campo ético-político que requalificasse a própria natureza das instituições estatais e privadas  que organizam a vida social. Este campo ético-político teria assim uma componente de reestruturação das instituições estatais de modo a favorecer a socialização do poder ao invés do elitismo congênito ao liberalismo e de organizar a vida social a partir de uma expansão inaudita da esfera pública e dos direitos em detrimento da lógica particularista do capital. Estas duas dimensões seriam pensadas como necessariamente configuradas, isto é, não pode haver superação do particularismo mercantil sem socialização do poder e este pressupõe, por sua vez, uma lógica de publicização da dinâmica econômica . Elas conformariam, por sua vez, um contexto de potencialização máxima ao pleno da desenvolvimento da individuação em um novo campo de civilização. .
Chegamos, enfim, à segunda tese : a universalidade contraposta ao particularismo do capital não pode ser pensada a partir de uma dimensão imanente ao proletariado. Esta universalidade só pode ser pensada no plano ético-político, projetual, programático no sentido amplo do termo. Este universalismo projetual só pode alcançar legitimidade se elaborado a partir do critério da soberania popular, das maiorias ativamente políticas no seio de um pluralismo irrestrito, já que não há apenas  um projeto de socialismo nem se quer a ciência expulsando a opinião e a ética da política. Isto significa retornar o marxismo ao solo do republicanismo, levando para este toda a potência crítica do seu anti-capitalismo

Que o proletariado, por se definir pela própria contradição com o capital, seja a classe potencialmente mais em condições de vir a desenvolver projetos alternativos ao capitalismo não faz dele necessariamente uma classe universal nem revolucionária. Não pode haver aqui nenhum determinismo sociológico, automático ou mesmo mediado.

Significa isto render o marxismo às “regras do jogo”, como quer Bobbio, retirar dele qualquer veleidade revolucionária ? Não porque republicanismo não é liberalismo, este na maior parte de sua história rejeitou o princípio da soberania popular e quando teve que o absorver, o fez através das teorias do chamado elitismo democrático. Significa apenas que o caminho para a construção de um novo Estado deve incorporar desde já o princípio legitimador das maiorias ativas.

Este princípio legitimador das maiorias ativas, em regime de pluralismo e de liberdades, poderia alavancar uma nova fase histórica de ofensiva contra os direitos do capital. O estabelecimento dos direitos sociais deu-se historicamente sob a dinâmica macropolítica e macroeconômica do Estado do Bem Estar Social. O grande limite destas lutas foi sempre o direito de propriedade e o controle pelo capital da ciência, que lhe permitiu acomodar as tensões distributivistas do capitalismo com o crescimento da mais valia relativa. Trata-se no século atual de , a partir de um setor público democraticamente gerido e socialmente controlado, expandir os direitos da maioria sobre o capital, incidindo inclusive centralmente sobre o eixo que vai do controle da ciência à apropriação social das inovações , regulando e tributando os fluxos do capital financeiro, estabelecendo novos marcos redistributivos e  expandindo a cobertura dos direitos.(18)

Marxismo e princípio de civilização

Marx deve, em grande medida, a perenização da sua obra ao fato de ter revelado o princípio da valorização do capital e da mercantilização da vida como estruturante da civilização capitalista. Há, neste sentido, no centro de sua obra uma crítica à civilização do capital e a indicação de um outro tipo de civilização universalista em que a sociabilidade humana fosse estruturada pela não dominação  e pelo tempo livre. Os limites da sua visão alternativa de civilização eram de época, configurados pelo etnocentrismo, pela ausência de uma cultura feminista, ecológica , por um pensamento ainda conservador no plano da sexualidade.

Ao se territorializar em sociedades onde o capitalismo não havia se desenvolvido  – URSS, China, Cuba etc – o marxismo viu questionada a sua capacidade de pensar em civilizações para além do capitalismo. Em particular, o marxismo foi rebaixado à condição de propositor de um outro modo de produção no qual a estatização e o plano central substituiriam a anarquia do mercado.  O produtivismo, a confiança sem reservas no progresso das forças produtivas, uma certa apologética do trabalho fizeram, então, escola no marxismo.

Foi principalmente na Teoria Crítica, nos autores da chamada   Escola de Francfurt que o marxismo como crítica da civilização do capitalismo emergiu e se desenvolveu, não sem desequilíbrios valorativos e de diagnóstico. Mas foi ali que o marxismo fecundou-se com a teoria freudiana, realentou a crítica à mercantilização do mundo e ao produtivismo, elaborou as primeiras críticas à cultura de massas, fez a crítica à cultura do progresso e ao que havia de riscos no projeto iluminista de dominação da natureza, e abriu-se, através de Marcuse, às culturas libertárias de 1968.

Chegamos, enfim, à terceira   tese : hoje, frente às realidades da chamada globalização ou mundialização do capital, a crítica de Marx à mercantilização do mundo e da vida ganha toda a atualidade. Esta crítica aliada ao princípio do multiculturalismo, do respeito às diferenças de cultura, religião e modos de vida, pode assentr as bases de um novo internacionalismo socialista. Este internacionalismo, assim como se passou do princípio da ditadura do proletariado ao princípio da soberania popular, do reino do privatismo mercantil à esfera pública, deve acolher o anti-imperialismo em uma vocação verdadeiramente universalista.

Em síntese, um marxismo que desenvolva o princípio da autonomia , do republicanismo e do universalismo  antimercantil mutuamente configurados, pode vir a ser o campo estruturador de um relançamento da tradição socialista democrático, por sua própria identidade, pluralista para o século XXI.
Notas:
1) Arato, Andrew. “A antinomia do marxismo clássico : marxismo e filosofia” em “História do marxismo”, volume 4, org. por Eric Hobsbawn, p. 85, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984. De acordo com o autor, o campo  antinomicamente estruturado da relação marxismo e filosofia “se estende  desde uma filosofia da história(ou mesmo uma ontologia) determinista, ligada tanto ao materialismo quanto ao pensamento político clássico do século XVIII, e uma mais recente , mais cética e metodológica devoção à “ciência”, ligada ao “neopositivismo”, até duas variedades de neokantismo, baseadas respectivamente no primado do prático e do teórico, e até uma posição oscilante entre o historicismo das Geisteswissenchaften e o irracionalismo da Lebensphilosophie.”

2) Entre as obras mais recentes, que poderiam se encaixar nesta designação de “marxismo crítico”, encontramos os livros de Daniel Bensaid (“Marx l’intempestif. Grandeurs e misères d’une aventure critique (XIX et XX siècles)”, Paris, Fayard,1995; Daniel Brudney, “Marx’s attempt to leave philosophy”, Cambridge, Harvard University Press, 1998; Antoine Artous, “Marx, l’’etat et la politique”, Paris, Éditions Sillepse, 1999;  Henri Maler, “Congedier l’utopie. L’utopie selon Karl Marx. “, Paris, Editions L’Harmattan,1994; Michel Vadée, “Marx, penseur du possible “, Paris, Meritiens Linck-Sieic, 1992; Michael Levin, “Marx, Engels and liberal democracy”, New York, Saint Martins’s Press, 1989; Abensour, Miguel, “A democracia contra o Estado. Marx e o momento maquiaveliano”, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1998.

3) Este é o grande valor da tese doutoral de Michael Lowy, “La teoria de la revolucion en el joven Marx”, Mexico, Sigloveintiuno editores, 1972.

4) Ver o capítulo  I, “O ardil do dogma: a crítica liberal”, em Guimarães, Juarez, “Democracia e marxismo: crítica à razão liberal”, São Paulo, Xamã, 1999.

5) “Não há nada de surpreendente nisto : quando dizemos que há um determinado indivíduo considera a sua atividade como um escalão necessário na cadeia dos acontecimentos necessários, afirmamos, entre outras coisas, que a falta de livre-arbítrio equivale para ele à total incapacidade de permanecer inativo e que essa falta de livre-arbítrio se reflete na sua consciência como forma da impossibilidade de atuar de um modo diferente daquele como atua. É precisamente o estado psicológico que pode exprimir-se através da célebre frase de Lutero ; “Her stehe ich, ich kann nicht anders”( “Este é o meu conceito e outro não posso ter”). e graças ao qual os homens revelam a energia mais indomável e realizam as façanhas mais prodigiosas. Hamlet desconhecia este estado de espírito : por isso, somente foi capaz de se lamentar e de mergulhar na meditação. E, por isso mesmo, Hamlet nunca poderia admitir uma filosofia segundo a qual a liberdade não é mais que a necessidade feita consciência. Fichte dizia com razão: “Tal como o homem é, assim é a sua filosofia”. Plekhanov George, “O papel do indivíduo na História”, Lisboa, Edições antídoto, 1977, p. 13.

6) Há um deslocamento da problemática do determinismo ao longo da evolução do pensamento de Marx, sendo incorreto, portanto, generalizar a partir da ênfase exclusiva em um dado momento da obra. É possível delimitar – sem dar a esta periodização um caráter rígido, inconsistente com uma reflexão que se enriquece por sínteses sucessivas – três momentos : um primeiro até 1844, marcado ainda por uma nítida  filosofia da história de inspiração hegeliana ; um segundo, de 1844 até 1857, caracterizado pela ênfase no  caráter praxiológico da história , mas não desembaraçado plenamente de visões deterministas ; um terceiro período, enfim, de 1857 até a elaboração de “O capital”, caracterizado por tensões fortemente deterministas, marcadas pelo seu diálogo crítico com a economia política.

7) É interessante neste aspecto, como o liberal mais avançado do século XIX, John Stuart Mill, procura compatibilizar a sua noção de liberdade com uma concepção da história tipicamente evolucionista , influenciado diretamente por Auguste Comte. Ver “Elucidações da Ciência da História”, de John Stuart Mill, in Gardiner, Patrick, “Teorias da história”, Lisboa, Fundaçào Calouste Gulbenkian 1995.

8) Em relação ao seu diálogo com Hegel, embora mantenha a busca de uma racionalidade imanente da mudança história, Marx critica a sua  hipostasia , afirmando que os homens fazem a história mas em condições determinadas. A crítica ao sentido especulativo das formulações hegelianas implica em uma incorporação densa dos elementos históricos, em particular em sua dimensão socioeconômica. Além disso, Marx incopora centralmente em sua teoria a idéia da auto-emancipação. No que diz respeito à economia política inglesa, Marx  historiciza e critica a naturalização das categorizas típicas do capitalismo, elabora  a objetivação mercantil através do conceito de fetichismo da mercadoria e supera a noção de uma ordem econômica  que tende ao equilíbrio. No que tange ao materialismo tradicional, Marx crítica a ausência de um princípio ativo  e através da noção de práxis procura superar o dualismo materialismo / idealismo.

9) Gramsci, Antonio. Quaderni del carcere ( Edizione critica dell Instituto Gramsci. A cura de Valentino Gerratama). Turim, Giulio einaudi Editore, 1975. Caderno 8, parágrafo 214, p. 1.073.

10) São exatamente estes conceitos capazes de absorver a lógica da ação coletiva que faltam à sociologia weberiana, que admite apenas a ação individual como dotada de sentido. Esta  lacuna conceitual certamente está relacionada às perspectivas  quase fatalistas de Weber sobre o desenvolvimento das tendências burocráticas na sociedade moderna bem como à sua descrenca em relação a uma democracia que vá além de um elitismo competitivo entre lideres.

11) É interessante, neste sentido, que um liberal como Robert Dahl que toma a sério a democracia como superação das formas de tutelagem sobre o indivíduo formule uma noção de democracia econômica, na qual os trabalhadores de uma empresa deveriam ter o direito de eleger a sua direção ( ver especialmente o capítulo  “O direito à democracia dentro das empresas” em “Um prefácio à democracia econômica”, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1990.
12) A origem do termo “ditadura do proletariado” é de Auguste Blanqui  em 1837  e foi utilizada pela primeira vez por Marx  nos anos cinquenta, imediatamente após  a reação conservadora aos movimentos revolucionários de 1848/49. Ver “A luta de classes na França” e carta a Joseph Weidemeyer. O termo volta a ser utilizado por  Marx nos anos 1871-1875, quando as perspectivas de poder dos trabalhadores voltam a entrar na agenda política. O sentido de um poder proletário como fundamento da transição a uma sociedade sem classes é, no entanto, mais generalizado tanto na obra de Marx como na de Engels. Michael Levin  nota que há na obra de Marx um duplo significado do Estado no período de transição, o modelo 1 no qual a ênfase é colocada na ditadura do proletariado como poder centralizado  em oposição ao poder de classe  da burguesia e o modelo 2, tipificado na Comuna de Paris, no qual a máquina do  Estado é absorvida pelas formas de auto-organização social, superando-o enquanto uma entidade autonomizada do controle social.
Ver “Marx, Engels and liberal democracy”, capítulo VI, “Beyond bourgeois society”.

13) Esta observação importante, que diferencia substancialmente a experiência da Comuna de Paris daquela da revolução russa está em “Marx, l’état et la politique”, de Antoine Artous ( p.282). Ao contrário das leituras canônicas, o poder na experiência da Comuna  de Paris não estava assentada em formas de democracia direta mas em novas modalidades de representação, em ruptura com o conceito liberal.

14) Sobre o pensamento político de Hegel, ver Bourgeois, Bernard, “O pensamento político de Hegel”, São Leopoldo, Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2000; Franco, Paul, “Hegel’s philosophy of freedom “, Yale University Press, 1999; Weil, Eric, “Hegel y el estado”, Buenos Aires, Editorial Leviatan,1996; Pelczynski, Z. A . (ed.), “The state and civil society. Studies in Hegel’s political philosophy, Cambridge University Press, 1984; Westphal, Kenneth, “The basic context and structure of Hegel’s Philosophy of Right”in The Cambridge Companion to Hegel (edited by Frederick Beiser), Cambridge University Press, 1993.

15) Com efeito, Marx vale-se das metáforas do céu e da terra  para  requalificar a relação entre estado e sociedade civil, seguindo a crítica feuerbachiana da religião. Ele denuncia em Hegel a pretensão do Estado em dominar a sociedade civil como universalidade dominante enquanto que , na realidade, é a sociedade civil burguesa, através de seu particularismo conferido pelo direito de propriedade, que domina o Estado. Sob uma primeira forma, aparece aqui a noção que irá se desenvolver na obra posterior de Marx das relações de produção  que condicionam a esfera da política.

16) Uma crítica interessante das reflexões de Marx sobre Hegel está em Ilting,K-H, “Hegel’s concept of the state and Marx’s early critique” in  “The state na civil society. Studies in Hegel’s political philosophy”, op. cit. Ver também : MacGregor, David, “The communist ideal in Hegel and Marx”,Canada, University of Toronto Press, 1990; Breckman , Warren, “Marx,the young hgelians, and the origins of radical social theory”, Cambridge University Press, 1999; Mercier-Josa, Solange, “Pour lire Hegel and Marx”, Paris, Editions sociales,1980.

17) Isto equivaleria a retraduzir neste campo teórico a problemática marxista do imperialismo, bem como o debate sobre as teorias do subdesenvolvimento e da dependência. Isto é, a comunidade internacional dos Estados-nações é profundamente hierarquizada a partir do centro capitalista e esta dimensão está revelada nos próprios princípios fundacionais dos estados “periféricos” ou “semi-periféricos”.

18) Ver Oliveira, Francisco de , “Os direitos do antivalor. A economia política da hegemonia imperfeita.”, Petrópolis, Vozes, 1997.

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One comment

  1. Volnei Batista de Carvalho

    O artigo peca analiticamente ao deixar o ecossocialismo fora da abordagem. Todavia, ao tecer importância da democracia haveria de apresentá-la numa visão moderna a partir da ideação do consenso numérico de que a democracia de menor, de médio e de maior grau sempre estiveram presente nas relações sociais políticas. Ou seja, de menor grau quando o poder está limitado a um número mínimo de cidadãos unidos por interesse dominando maioria de outros e, entre, de maior grau, quando um número maior de cidadãos, também unidos por interesses, obviamente, dominam um numero menor de outros. Ou melhor, impróprio seria denominar de não-democracia a “ditadura da minoria”, qual teoricamente, ao extremo,, se resumiria a governo de um só cidadão, assim como também de não-democracia a “ditadura da maioria” quando governa uma minoria, a qual, teoricamente, se resumiria a governo de quase todos sob um só cidadão. Entre estes extremos, variações proporcionais de 0% acima e 100% abaixo de governantes e governados, vice-versa, sendo o ponto médio, 50%, estado de suspensão democrática, meio a meio de governantes e governados. Democracia é o consentimento expresso ou tácito de quem governa. Consentimento livre, que justificam valores da liberdade e consentimento não livre a quem governa. E enquanto governa, justifica a desobediência passiva, manifesta pela desconsideração do regime de governo até a auto destituição do poder político, ou ativa, pela revolta ou rebelião contra quem governa para mudança forçada do regime de governo até a queda do poder político. Pois bem, democracia real seria o consentimento da maioria para ser governada já que, relações sociais sem governo, se possível, seria anarquismo ou comunismo utópicos. Então, democracia ideal pelo consenso numérico significa expressão de maioria e inexpressão de minoria. Nessa equação, o que importa é a força da expressão política quer da maioria, quer da minoria. Tese aberta à reflexão.

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