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Notas sobre a proposta de fundação estatal de direito privado

O presente texto defende a tese segundo a qual a proposta de fundação estatal de direito privado, apresentada pelo PLP 092/2007, não se limita a um problema de gestão dos serviços públicos. Mais do que isso, ele representa uma divergência central com a concepção de Estado vitoriosa nas duas últimas eleições presidenciais no Brasil e está em consonância com o fracassado processo de reestruturação produtiva adequando-o aos serviços públicos (conceitualmente não produtivos).

Qual a proposta do PLP? (1)

O projeto de lei presidencial que foi encaminhado ao Congresso parte de uma concepção de que os setores de saúde, cultura, assistência social, esporte, ciência e tecnologia, meio ambiente dentre outros, não são de atuação exclusiva do Estado. A proposta de fundação estatal (chamaremos de FE, para facilitar) é para atuar nestes setores, pois, segundo justificativa do projeto, neles existe concorrência com a iniciativa privada.

Dado que existem problemas de falta de agilidade e, portanto, de eficiência na gestão, propõe um desenho institucional que supere essas dificuldades, dando maior flexibilidade à gestão para: aquisição de bens e serviços, incorporação tecnológica, contratação, estrutura de carreira e remuneração da força de trabalho.

Com essa flexibilidade, apesar da contratação de profissionais se dá pro meio de concurso, estes serão contratados sob regime de CLT, portanto sem estabilidade, conforme gozam os trabalhadores estatutários. A flexibilidade é norte orientador do projeto, abrangendo as esferas do orçamento, da captação dos recursos, da gestão administrativa e de pessoal.

FONTES DE RECEITA. As FE poderão prestar serviços a terceiros, desde que não seja do mesma natureza a que presta ao serviço público. Poderão fazer aplicação no mercado financeiro. Poderão firmar convênios e parcerias para pesquisa. Poderão receber doações.

GESTÃO ORÇAMENTÁRIA E ADMINISTRATIVA. As FE não integram o Orçamento Geral da União. Não têm recursos assegurados no orçamento fiscal, mesmo para a folha de pagamentos (diferentemente das empresas estatais). Elas receberão do Estado pela prestação do serviço. O contrato deverá fixar metas de desempenho, que condicionarão o pagamento. Com isso, o controle está localizado apenas sobre os resultados.

Têm sistema de administração próprio de pessoal, para compras e serviços gerais. Não adota mecanismos de transparência do orçamento público, como as licitações; apenas firmam contratos. Da mesma forma, estão fora dos sistemas de acompanhamento dos gastos públicos, como o SIAFI, por exemplo. As principais receitas serão de natureza pública, mas sem os controles inerentes ao trâmite orçamentário público.

GESTÃO DE PESSOAL. As FE terão, cada uma, o seu próprio plano de cargos e salários. Tais planos serão fixados em seus estatutos, prevendo atribuições, estruturação, classificação e salário. Elas serão isentas do pagamento da seguridade social, apesar de o regime ser CLT – o que, automaticamente, o vinculará ao Regime Geral da Previdência.

Concepção de Estado, a divergência central

Recorro aqui aos questionamentos de Conceição Rezende, consultora do SUS, na reunião do Conselho Nacional de Saúde, quando este órgão decidiu sua contrariedade ao projeto de FE (2). Ela indagava o seguinte: “O SUS é papel do Estado? O Estado, no caso da saúde, é somente regulador e controlador?” Creio que as respostas a estas questões orientam o posicionamento em relação ao projeto de lei que debatemos aqui. Estamos tratando, aqui, de uma proposta de terceirização das políticas públicas e, portanto, do papel do Estado. Trata-se de adequação das políticas públicas à lógica de reestruturação produtiva que vivenciamos nos anos neoliberais, que modificou não apenas as relações de trabalho, mas também o papel do Estado.

Nesse processo, que se aprofundou na década de 90, as palavras de ordem para o mercado de trabalho e que guiava a chamada reforma do Estado eram flexibilização, desregulamentação, diminuição do papel do Estado, hegemonia do padrão de mercado para o gerenciamento para a avaliação dos contratos e das políticas públicas (com o esforço enorme para demonstrar sua ineficiência). Francisco Junior, militante sindical CUTista e presidente do Conselho Nacional de Saúde chegou a afirmar que “o povo brasileiro foi derrotado ao não se incluir a saúde como atividade específica do Estado e que, em função dessa derrota, houve uma série de desdobramentos da década de 90, culminando com um processo de privatização do sistema, no aprofundamento do modelo imperativista, hospitalocêntrico e elitista e em um processo de precarização. A proposta de fundação estatal acaba com as duas propostas que apontam para o princípio de superação desse quadro, sendo elas as diretrizes do PCCS-SUS e o Pacto de Gestão”.

O projeto de lei inverte a lógica que a própria Constituição Federal de 1988 adotou. E adotou após memorável mobilização social, do movimento sindical e popular de todo o país. A lógica é a definição da educação, da saúde, da assistência social e da cultura como direitos, cujo o Estado é o agente que tem o dever de garantir. O SUS é uma conquista que advém daí. Nele, estão presentes de forma indubitável, os princípios da integralidade, eqüidade e controle social. A saúde privada é considerada pela CF como complementar e não como concorrente com a saúde pública. E mesmo sendo complementar, ela é uma concessão pública, portanto, com regulação e fiscalização estatal. Ao tratar a saúde pública como concorrente da saúde privada, ao não garantir mecanismos de controle social e ao precarizar as relações de trabalho o projeto de FE interrompe a luta pela consolidação do SUS.

O setorial de Saúde do PT apresentará uma proposta de resolução do III Congresso do Partido com a formulação mais correta acerca do sentido da nossa luta. O setorial nacional de saúde do PT afirma o seguinte:

“Os recursos novos resultantes da regulamentação da EC 29 devem ser destinados a: garantir a implantação imediata de sistemas de informação e comunicação, otimizando a regulação do sistema, instrumentos adequados aos interesses dos usuários do SUS; facilitar o acesso às políticas de atenção universal e integral, sem discriminação de qualquer natureza e considerando as diferenças epidemiológicas, sociais e regionais, com uma gestão pública qualificada; promover a garantia da participação popular e controle social nos novos espaços de gestão solidária e democrática oportunizadas pelo Pacto pela Saúde; promover a humanização da atenção e das relações entre gestores, profissionais e usuários, a desprecarização do trabalho e a implantação de planos de carreira, cargos e salários do SUS, com pisos nacionais de salários conforme a escolaridade dos seus profissionais.” (3)

É clara a diferença do PLP 092/07 com o que defendemos historicamente no que diz respeito ao papel do Estado. Trata-se de uma contradição com o projeto de fortalecimento das políticas públicas, depois de derrotarmos, por duas vezes, o projeto neoliberal, cuja perspectiva era liberalizante e reducionista do setor público.

Dentre os conflitos com os princípios do SUS, podemos destacar, conforme observações da Sub-Seção do DIEESE da CUT Nacional: por se caracterizar uma entidade de direito privado, fica aberta a possibilidade de dupla porta nos hospitais; a descentralização com direção única e a não duplicidade de atuação fica prejudicada pelo fato de cada nível administrativo poder criar fundações a seu critério; a conjugação dos recursos fica prejudicada pela inviabilidade de unidade de políticas de gestão. Ou seja, confronta-se com aqueles princípios que defendemos e conquistamos (sindicalistas, sanitaristas, movimento popular, petistas etc) na CF em 88.

Ao tratarmos de gerenciamento de políticas públicas com concepção de mercado, o que se sobrepõe é a relação custo/benefício. Essa concepção gerencial e por contrato não cabe em um hospital público ou na proteção de um manguezal no litoral brasileiro.

A terceirização do papel do Estado

A ação do Estado para garantir os direitos conquistados em nossa Constituição Federal chama-se política pública. Ao transferir para terceiros a tarefa de execução de políticas públicas, o resultado é a terceirização do papel do Estado. De acordo com o projeto de lei, um terceiro, em nome do Estado, executará os serviços públicos, utilizando prédios, móveis e equipamentos públicos. Até mesmo os servidores públicos poderão ser cedidos, de acordo com o projeto, significando uma verdadeira transferência de responsabilidade sobre o pessoal para a fundação contratada. Serão pessoas jurídicas de direito privado autorizados a dirigir a administrar bens públicos (hospitais públicos e florestas, por exemplo).

Felizmente, o ministro Fernando Haddad convenceu o Ministério do Planejamento a retirar a educação como setor a ser atingido pelo Projeto. É uma vitória do setor mais progressista dentro do Governo Federal.

Mas afinal, continuaria sendo do Estado a responsabilidade quando for transferida a gerência da política pública a um terceiro em nome dele próprio? A Deliberação 001/2005 do CNS manifesta posição contrária a qualquer tipo de terceirização dos serviços e da gestão.

A idéia que se pretende sustentar é que a ineficiência do serviço público é um problema de gestão dos recursos e que sua superação se dá com a introdução de metas de produtividade de com um padrão de flexibilização da gestão. Cria-se um novo tipo de serviço público e também de servidor público (se esse continuar a existir). A CUT, em sua defesa do fortalecimento do papel do Estado para garantir o desenvolvimento com distribuição de renda e valorização do trabalho, define como indissociáveis os serviços e os servidores públicos.

Ao criar dois tipos de trabalhadores no serviço público, celetista e estatuário, absorve-se a idéia de dois tipos de serviços: o público tradicionalmente ineficiente e o público eficiente, sendo este último gerenciado com padrões de mercado e por um agente terceirizado. Estes trabalhadores terão remuneração diferenciada, mesmo que executem o mesmo serviço, porque a administração pública poderá ceder servidores para estas fundações (4). Terão, ainda, condições diferentes para sua organização sindical, pois uns gozarão de estabilidade e os outros contratados pelas fundações não. Estes terão seus salários pagos com base nos critérios de desempenho, que constarão nos contratos das fundações. Trata-se de desempenho coletivo e individual.

Esse era o projeto de Bresser Pereira e FHC em relação às OSCIPS, por exemplo. Por mais que existam muitas diferenças dessa proposta se comparada como projeto das FE, alguns elementos são muito idênticos, dentre os quais citamos: a idéia de propriedades públicas não gerenciadas pelo Estado; o objetivo da administração e a avaliação dos resultados seguem a lógica do contrato; maior dificuldade para organização social e sindical; a prestação do serviço se sobrepõe à idéia de garantia de direito.

Sobre esse último aspecto, a contraposição do serviço sobre o direito, lembramos da campanha de vários movimentos sociais, em 2002, contra a inclusão do que chamavam de serviços nas negociações comerciais da OMC. Afirmávamos que educação e saúde não poderiam ser tratados como serviços, mas como direitos e, portanto, não deveriam ser passíveis de comercialização internacional. Ganhamos aquela batalha, mas essa concepção volta à tona.

O que acontece quando se organiza um contrato de prestação de serviço nesta seara? O caso do Estado de Roraima é exemplar. Lá, firmou-se um convênio do Governo do Estado com uma cooperativa de profissionais de saúde que recebia, daquele, recursos financeiros baseados em valor per capita sobre a população atendida. Garantir as metas, quantificar os resultados, respeitar os contratos. E o direito? E a qualidade? E as necessidades dos usuários, cabem onde?

Se o Estado não pode intervir na gestão econômica da FE – apesar de estatal – o que ocorre quando não tiver capacidade de assumir os custos com pessoal? O que acontece quando o contrato da FE com o Estado não for cumprido? Aqui retomamos outra batalha central da CUT no atual no atual momento: a luta contra o PLP 01/07. Esse Projeto de Lei – também presidencial e não é por coincidência – limita os gastos das despesas com o funcionalismo público. Se as fundações são computadas no orçamento público como prestação de serviço, a partir de então será por meio delas que serão contratados novos trabalhadores para o serviço público. São os dois lados da mesma moeda.

Precarização da força de trabalho

Seguindo a analogia com o processo de reestruturação, uma das principais causas alegadas para a ineficiência da gestão pública é o contrato de trabalho não flexível. Flexibilidade, assim como na indústria, significa precarização do trabalhador. No projeto de FE essa precarização se dá com o fim da estabilidade – direito conquistado através da lutas da classe trabalhadora brasileira; pelo abandono da perspectiva de construir carreira única para os servidores; e pelo fato de que parte dos rendimentos do trabalho serão pagos a partir dos critérios de desempenho.

É necessário lembrar – mais uma vez e sempre – os Princípios e Diretrizes dos SUS. Dentre eles, destacamos que é rejeitada a desregulamentação e a precarização do trabalho (na saúde) em todas as formas de apresentação. Citando, mais uma vez, a intervenção de Conceição Rezende na já referida reunião do CNS, ela ressaltava que, para a gestão do trabalho na saúde era necessário observar, minimamente, as práticas de: formas legais de contratação; planos de educação permanente; participação dos trabalhadores na gestão dos serviços; trabalho em equipe multiprofissional; instituição de Mesas de Negociação Permanentes; e remuneração digna (condizente com a função e a carga horária de trabalho).

Em nossa disputa social em torno da concepção de Estado nos deparamos com o argumento utilizado aqui para flexibilizar o exercício das políticas públicas. No tema das relações de trabalho também existe a defesa de que a regulamentação de contratações, de condições de trabalho, de remuneração dentre outros, não deve ser atividade exclusiva do Estado. Combatemos com unhas e dentes a idéia de que o mercado também pode estabelecer tais regras. Conhecemos – e sofremos na pele – os resultados dessa concepção que era dominante na era neoliberal.

Lembrando argumentos da companheira Ana Maria Ribeiro (SINTUFRJ), os nossos combativos companheiros que defendem o polêmico projeto não levam em consideração que o regime de CLT no serviço público expõe as contratações às possibilidades maiores de clientelismo e, em governos privatistas, é facilitada a possibilidade de demissões em massa, acabando de vez com os serviços públicos. É o sonho de Yedas e Serras.

Tratar o problema das políticas públicas em nosso país sem considerar o nosso projeto de Estado é escamotear o debate central. Temos uma Lei de Responsabilidade Fiscal que limita a capacidade de Estados e Municípios de aumentar seu poder de provedor de políticas sociais universalizantes. Temos um mecanismo chamado Desvinculação das Receitas da União (DRU) que retira sem dó nem piedade 18% do orçamento da saúde e da educação e um superávit fiscal primário estratosférico. Temos um sistema tributário profundamente desigual. Temos um déficit de participação popular e de liberdade de organização sindical. E, mesmo diante desse quadro que afeta diretamente os recursos para as políticas públicas e a ampliação de direitos, a proposta apresentada como alternativa é criar maneiras de escamotear essa realidade, ao mesmo tempo aprofundando-a.

Anderson Campos é assessor político-sindical da CUT Nacional


Notas:(1) Utilizo aqui elementos  da análise feita pela Secretaria Nacional de Organização da CUT em parceria com a Sub-seção do DIEESE da CUT Nacional.

(2) Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Saúde (CNS), realizada nos dias 12 e 13 de junho de 2007.

(3) Plenária Nacional do Setorial de Saúde do PT, 20 de julho de 2007.

4) O PLP 092/07 abre também a possibilidade de quarteirização, como, por exemplo, a contratação de  profissionais que ganham enormes salários no mercado e, por isso, não são contratados pelo serviço público. Través das fundações eles poderão ser prestadores de serviço.

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