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O terror, o terror!

1242298Por Daniel Gaspar *

Sim, os EUA nunca foram atacados por “terroristas” em uma Copa do Mundo, ou em qualquer outro megaevento – pros xenófobos: os yankees jogaram com os iranianos na Coupe du Monde de 1998, houve troca de buquês de flores entre os atletas -, não há nenhum indício, prova ou mesmo histórico de “terrorismo” no Brasil.

Mas insiste o projeto de lei do Senado 728/2011 (1), que normatiza infrações penais e administrativas específicas para o período da Copa do Mundo, em justificar a necessidade da tipificação do crime de terrorismo nestas terras:

“Mas isso não impede que tenhamos a consciência de que eventos do porte dos que sediaremos possam encorajar atos de terrorismo, como ocorrido nas Olimpíadas de 1972, na Alemanha, em que onze atletas israelenses forem feitos reféns e depois mortos pelo grupo palestino ‘Setembro Negro’.” (página 24 da Justificação)

Ora, um evento ocorrido há mais de 40 anos atrás pode justificar a tipificação, mesmo que temporária, do crime de terrorismo no Brasil? E por que esse projeto de lei não estende a sua vigência para o período da realização das Olímpiadas de 2016 no Rio de Janeiro?

Realmente acreditamos que um grupo extremista árabe, estadounidense, europeu ou de qualquer outro cunho vai deixar de praticar atos violentos porque a legislação canarinho proíbe?

Outras perguntas nos vêm: o Brasil já não tem legislações e normas que permitam punir quem forma uma quadrilha para cometer crimes? O entulho autoritário da Lei de Segurança Nacional já não basta? E a lei de organizações criminosas não agrada à FIFA?

Quando voltamos à página 21 da justificação do projeto de lei, vemos a motivação – imposição – real: “para que honremos os compromissos assumidos na subscrição do Caderno de Encargos perante a Fifa, na oportunidade da escolha do país como sede das competições, objetivo que se espera alcançar com este Projeto.”

Nossa muy amiga Fifa, conhecida por ser uma confluência de interesses das grandes corporações, envolvida em escândalos mil, não poderia deixar de impor-nos o discurso batido e rebatido da “Guerra ao Terror”, que graceja no Iraque, no Afeganistão e agora no Egito, com uma forcinha do Exército (2).

Combate ao terrorismo ou vigor democrático: qual caminho?

Tudo bem. Por que não cumprir essas exigência legais e burocráticas da FIFA para termos esse espetáculo no Brasil, enchermos nosso comércio e nossos hotéis de turistas, movimentarmos a economia e ficarmos na boca do gol do Hexa?

Para aqueles que acreditam na democracia como um valor essencial e como um espaço potencial de afirmação do público sobre o privado, de efetiva participação e organização popular, o PLS nº 728/2011 é, no mínimo, perigoso.

Isso porque vivemos um momento de intensa mobilização social. Do descredenciamento de universidades ao direito de ocupar espaços, sempre reservados à elite, o país vem lidando com um turbilhão de manifestações cidadãs. O direito de ir à rua e gritar, de se organizar, fugindo das amarras dos mercados e de uma representação política cambaleante, é potencialmente construtivo de uma outra cultura social.

Não é novidade pra ninguém que a Copa vem, em especial, com um pacote de violações que as forças sociais brasileiras não estavam preparadas para lidar e que põem em xeque os ganhos que vêm com ela. Remoções forçadas, militarização dos espaços onde vivem os pobres e mercantilização do urbano são apenas alguns dos problemas sociais aprofundados com os megaeventos.

Também não é novo que as medidas autoritárias ganharam resistência de parcela da sociedade, que vem saindo às ruas em protestos e que, especialmente, durante a realização da Copa, momento em que os olhos do mundo estarão voltados para o Brasil, tentarão colocar em evidência o que de podre apareceu com o Mundial de seleções.

Nessas manifestações, a polícia, militar e civil, vem agindo arbitrariamente. Além da inalação costumeira de gases vencidos, muitos manifestantes vêm sendo detidos para averiguação, indiciados ficticiamente por crimes que não cometeram (3), e, pasmem, um homem em situação de rua já foi condenado a 5 anos de reclusão por carregar uma “bomba em potencial”. (4)

Pois bem, vejam o que diz o artigo do PLS que trata da tipificação do crime de terrorismo:

“Art 4º – Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa à integridade física ou privação da liberdade de pessoa, por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito racial, étnico ou xenófobo: Pena: reclusão de 15 (quinze) a 30 (trinta) anos.”

Bem, um rolezinho, na cabeça de muitos PMs e juízes, infunde terror ou pânico mediante privação da liberdade de pessoas – a tradicional classe média, que quer ir ao shopping “livremente”. Lembre-se que alguns desses estabelecimentos, lugares-comuns do mercado, fecharam suas portas recentemente, sob a ameaça da invasão de jovens da periferia.

Mas até aí tudo bem. Não parece haver uma motivação ideológica, religiosa, política ou de qualquer preconceito no acontecer dos rolezinhos. Exagerei para que sintam o drama. Porque pode ser dramático em junho de 2014. Manifestações de insatisfação contra as violações ou até contra a realização da Copa podem ser enquadradas, por policiais e juízes, como crime de terrorismo.

Em primeiro lugar, porque “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado” obriga a um exercício de subjetividade das autoridades policiais e judiciais que uma sociedade democrática não pode suportar. Uma manifestação pacífica, porém barulhenta, com 10.000 pessoas pode sim causar terror, pânico, histeria em quem está indo ao estádio. Ainda mais se houver confrontação policial.

A “ofensa à integridade física ou privação da liberdade” é uma consequência eventual de um protesto. Não quero dizer com isso que a intenção de quem protesta é violentar algum outro cidadão. Pelo contrário, não há nenhum fato registrado desde junho que vá neste sentido. Mas, veja bem, uma manifestação pode fechar uma rua, privando a liberdade de ir e vir de muitas pessoas.

E como terceiro elemento integrador do crime está a motivação. Por óbvio, a motivação será política. Quem protesta contra alguma medida dos Governos ou da FIFA faz política, expressa uma opinião.

É razoável correr o perigo de levar à condenação, por, no mínimo, 15 anos de prisão, centenas de cidadãos brasileiros que exercerão sua opinião, muitas das vezes de forma bem justa, para combatermos, supostamente, o mal do “terrorismo”?

Penso que não e, para que a nossa democracia não sofra um atentado à bomba, é preciso enterrar o artigo que 4º da PLS nº 728/2011, que tem como objetivo principal inserir no ordenamento jurídico brasileiro o crime de terrorismo.

* Daniel Gaspar é advogado da Caixa de Assistência dos Advogados do Rio de Janeiro, doutorando em Sociologia pelo PPGSA-UFRJ e membro da Coordenação Estadual da DS-RJ.


(1) O projeto pode ser lido no site http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/100792.pdf

(2) A Irmandade Muçulmana que saiu “saída” do poder no Egito foi declarada organização terrorista. http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/12/131225_egito_irmandade_mm.shtml

(3) Alguns manifestantes foram indiciados por corrupção de menores. http://jornalggn.com.br/noticia/oab-critica-endurecimento-penal-contra-manifestantes-no-rj

(4) Rafael Vieira foi condenado pelo juiz Guilherme Schilling Pollo Duarte por portar Pinho Sol e água sanitária. Laudo do esquadrão anti-bomba da Polícia Civil atestou que a possibilidade de se produzir um coquetel molotov com aqueles materiais era ínfima.

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