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Pré-tese do movimento da ‘Mensagem ao Partido’

Este é o anteprojeto de tese ao III Congresso do PT do movimento que assinou a “Mensagem ao Partido”. Foi elaborado pela comissão nomeada quando do lançamento do manifesto em Salvador. Sabemos das limitações existentes no texto mas esperamos superá-las com a contribuição de cada um apresentando emendas até o dia 9 de março, de maneira a que possamos apresentá-lo no próximo dia 12, prazo final para a inscrição de teses. Esperamos também sugestões para o título da tese que, como vocês podem perceber, ainda não existe. As emendas deverão ser enviadas a razevedoap@ig.com.br  As adesões ao texto deverão ser enviadas a carlosh.arabe@terra.com.br

O Brasil que queremos

I – Sobre o caráter do segundo governo do presidente Lula

1- Para que se construa coletivamente uma visão unitária sobre os desafios do PT nos próximos anos é preciso  desenvolver e projetar o sentido histórico do segundo governo Lula a partir da tradição do socialismo democrático petista e da experiência concreta de luta do povo brasileiro e do PT. O que singulariza e diferencia este segundo governo do primeiro é a sua capacidade potencial de começar a realizar mais plenamente a revolução democrática no Brasil, isto é, de ser o primeiro governo pós neoliberal de toda uma época histórica. Este sentido pode e deve ser pensado solidariamente à dinâmica política recente da América Latina.

2- Os elementos iniciais e o próprio sentido histórico desta revolução democrática já estavam parcialmente configurados na primeira gestão do governo Lula. Isto é, foi graças às suas ações de inclusão social, de melhorias expressivas na criação de empregos formais, no salário-mínimo e na agricultura familiar, de democratização educacional e cultural, de restabelecimento da soberania e de integração latino-americana, de acolhimento e interlocução com os movimentos sociais, de inovações históricas na gestão do meio-ambiente, de forte e inédita sintonia com as identidades do povo brasileiro que o seu mandato foi democraticamente renovado por larga maioria do eleitorado brasileiro.

3- Mas esta gestão foi profundamente condicionada por quatro grandes limites que amorteceram, frearam ou até inibiram a sua capacidade de transformar estruturalmente o país: a grave crise cambial e inflacionária que levou à renovação dos contratos com o FMI e a um forte ajuste fiscal, a presença de políticas neoliberais em setores chaves da área econômica do governo, a potência das oposições neoliberais no Congresso Nacional, nos governos estaduais e na mídia, a crise do Estado brasileiro após décadas de regime militar e de neoliberalismo, as debilidades do PT e dos movimentos sociais após uma década de pressão neoliberal. Por isto, a primeira gestão Lula pode ser caracterizada como de uma transição – não plenamente concluída – do paradigma neoliberal de Estado a um outro paradigma sintonizado com as transformações democráticas e populares.

4- O segundo governo Lula  já nasce sem as limitações de uma extrema vulnerabilidade externa que maximizou as condições de pressão e chantagem dos capitais financeiros. Houve, sem dúvida, o aprofundamento de uma consciência popular que não apenas expressou a repulsa ao retorno do neoliberalismo mas marcou a sua adesão profunda às identidades mais avançadas do governo e à liderança histórica do presidente Lula.  Após a sua segunda derrota nacional, apesar das vitórias em estados chaves da federação, a coalizão PSDB/PFL que nutriu a vontade política do neoliberalismo brasileiro, vive claramente uma crise de identidade programática e de perspectivas. A gestão do Estado e a criação de novos programas no primeiro governo Lula já acumularam capacidades para deslanchar um ciclo historicamente inédito de forte crescimento com distribuição de renda e aprofundamento da democracia. Há ampla legitimidade para uma reforma política que desenvolva as dimensões republicanas e participativas do Estado brasileiro. A conjuntura latino-americana, mais do que em 2003, é amplamente favorável à aplicação de programas pós-neoliberais. O PT,bem como o PSB e o PCdoB, fortalecidos pela votação em 2006, tem amplas condições de participar, junto com os movimentos sociais, de um novo ciclo criativo de ascensão. São dimensões amplamente positivas para a instalação de uma dinâmica plena de revolução democrática capaz de identificar, isolar, neutralizar e superar, em um contexto de aprofundamento da democracia, as resistências às transformações ansiadas historicamente pelos trabalhadores e pelo povo brasileiro.

II – O segundo governo Lula e a revolução democrática

1- O conceito de revolução democrática é a expressão no plano histórico da identidade socialista e democrática do PT.  Ele resulta do nosso aprendizado prático, ainda inacabado, do complexo e amplo trabalho por mudanças na sociedade e na institucionalidade democrática, integrando todo  um ciclo histórico da resistência à ditadura militar até a recente reeleição do presidente Lula.  Como tal, ele já faz parte da tradição do PT, da sua cultura, da resolução dos seus Congressos e Encontros Nacionais. Já aflorado nas resoluções do 5 Encontro Nacional do PT, de 1987, o tema das relações entre socialismo e democracia tem um importante aprofundamento na resolução “ Socialismo” do I Congresso Nacional, de 1991. O  conceito de “revolução democrática”, em seu sentido amplo e unificador, já comparece no início da resolução “Por um governo democrático-popular”, de 1993, quando se afirma que “a superação do modelo excludente é parte de uma revolução democrática, que mude radicalmente as bases do poder”. No 11 Encontro Nacional do PT, realizado em 1997,  afirma-se que “somente uma revolução democrática será capaz de pôr fim à exclusão, às desigualdades sociais e ao autoritarismo que marcam nossa história, oferecendo uma alternativa concreta e progressista ao nacional-desenvolvimentismo, superado historicamente, e ao conservadorismo neoliberal”. No Encontro Nacional Extraordinário, de 1998, após se percorrer os compromissos sociais, nacionais e democráticos de um futuro governo Lula, se diz de modo conclusivo: “Para alcançar as mudanças destes três eixos programáticos, o Brasil deverá experimentar uma revolução democrática, com importante dimensão cultural.”

2- Como partido socialista plural, democrático e sem dogmas, o PT tem sido capaz, em inúmeras situações, de dialogar criticamente com tradições políticas, culturais e religiosas e de aprender com a experiência, de criar novos caminhos a partir de sua relação com os trabalhadores e o povo brasileiro, além dos movimentos de emancipação contemporâneos, como aqueles que comparecem no Fórum Social Mundial. É necessário, agora, em função mesmo da ampla escala histórica e da complexidade, banhar o conceito de revolução democrática nas águas da difícil mas promissora experiência vivida de governar o Brasil.

3- A experiência complexa de liderar a coalizão que governa o país desde 2003 permite enriquecer o conceito de revolução democrática em cinco dimensões chaves: a de seu sentido nuclear e unificador, a da sua dinâmica histórica, a construção da coalizão político-social necessária para viabilizá-la, a sua dinâmica latino-americana e internacional  e, enfim, o sentido  da experiência na sua relação com o socialismo democrático.

II-1 – Novo desenvolvimento e democracia: a construção da esfera pública

1- As instituições do Estado varguista foram matriz de um desenvolvimento capitalista nacional inclusivo mas assimétrico na formação dos direitos e na distribuição da renda. O regime militar realizou o seu processo de construção estatal no sentido de viabilizar um capitalismo modernizador mas dependente e concentrador. O neoliberalismo operou amplas reformas no Estado para viabilizar um frustrado plano de inserção passiva da economia brasileira no novo mercado internacional globalizado. Agora, a construção de uma era de desenvolvimento com distribuição de renda e soberania nacional depende do processo construtivo de um novo Estado profundamente democratizado no fundamento e exercício de seu poder político e universalizado nas suas  funções.

2- A criação do que é democraticamente gerido para fins que devem servir a todos, capaz de ao mesmo tempo avançar a prática da democracia e a justa distribuição dos bens e serviços, é o que chamamos de a construção da esfera pública. É esta a nossa alternativa ao autoritarismo estatal e à privatização do Estado, aos que fazem apologia do Estado não submetido ao controle democrático, ou do mercado sem regulação social. É este avanço da construção da esfera pública que permitirá uma aproximação histórica cada vez maior à universalização da cidadania para os brasileiros, plenos em seus direitos econômicos, sociais, culturais e políticos. É este avanço que permitirá ir quebrando a histórica e brutal apropriação do Estado brasileiro, desde as suas origens, pelas classes dominantes, transformando-o em instrumento de distribuição de riquezas e de incentivo à emancipação social, apontando um rumo claramente anticapitalista.

3- A construção da esfera pública, mudando pela raiz os padrões das relações entre Estado e sociedade civil no Brasil, exige a fundação da ética pública na cultura política brasileira, isto é, aquele conjunto de valores, regras e procedimentos que significam a superação das tradições de privatização do Estado, do patrimonialismo, do clientelismo e do fisiologismo, dos privilégios à sombra do Estado que estiveram até hoje no centro da prática política brasileira. A perda de dignidade da vida política, a sua desqualificação como atividade contrária aos interesses comuns, a condescendência com a corrupção, a sua autonomização como uma esfera de privilegiados e corrompidos interessa aos que querem minar a capacidade de transformação da revolução democrática.

4- Assim definida, a construção da esfera pública pode ser a grande diretriz da experiência histórica de transformação do PT. Se coube historicamente à inteligência do nacional-desenvolvimentismo demonstrar as conexões entre desenvolvimento e soberania nacional, entre desenvolvimento e distribuição de renda, cabe à tradição petista evidenciar e desenvolver as relações entre a democratização do Estado e a construção de uma nova economia. Sem mais democracia e mais controle social, a ação estratégica do Estado, necessariamente revigorada e ampliada, está sujeita a todo tipo de entraves e distorções, como ficou amplamente demonstrado no primeiro mandato do governo Lula. Se não se avança na construção de uma economia do setor público, a base social para o avanço da revolução democrática fica travada e minada. É por isso que a construção desta esfera pública, expressão de um novo contrato social entre os brasileiros, de uma nova conformação de direitos e deveres, requer amplas reformas estruturais e  revoluções culturais que reponham os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, dos negros, das mulheres, de uma cultura ecológica.

5- A construção da esfera pública pode ser compreendida em três frentes combinadas :

– o aprofundamento  da democracia e da universalização das funções do Estado brasileiro que tem sido feito, de modo importante mas inicial, pelo governo Lula em várias áreas;

– a construção de novas formas de controle e regulação da atividade mercantil a partir de critérios socialmente universalistas, que incorporem largamente os direitos dos trabalhadores e do povo brasileiro, e de desenvolvimento nacional;

– a construção de áreas mistas de atuação  entre o Estado e a sociedade civil organizada, em particular os movimentos sociais, que têm o potencial de ganhar uma notável e inédita  expansão na revolução democrática.

6- A prioridade concedida pelo PT à reforma  do sistema político-partidário integra esta compreensão do caráter estratégico do aprofundamento da democracia brasileira, necessário para a transformação. Ela permitirá conter a ação do poder econômico nas eleições, tornando a disputa mais democrática para os trabalhadores e setores populares. Ela permitirá tornar o sistema representativo, em todos os planos federativos, mais poroso às demandas da sociedade, menos disponível à corrupção e às práticas fisiológicas, mais em contato com a cidadania ativa e à opinião pública democrática. Ela incentivará que o sistema brasileiro de partidos seja mais capaz de representar e se relacionar com o pluralismo dos interesses e opiniões dos brasileiros.

7- A construção de um sistema federal de democracia participativa, que abarque desde  a democratização das discussões do orçamento, a transparência e fóruns de controle social da gestão das empresas estatais até a consolidação das dinâmicas das conferências nacionais setoriais na construção das agendas e prioridades dos respectivos ministérios, é fundamental para que a dinâmica de universalização das políticas de governo tenha plena vigência. Só a pressão da participação popular pode quebrar privilégios cristalizados historicamente no Estado, priorizar agendas de interesse popular nas políticas públicas, permitir saltos de qualidade na gestão eficiente dos recursos públicos.

8- A democracia brasileira alcançou já níveis historicamente inéditos de inclusão social do eleitorado, de pluralismo político, de inovação em direitos individuais e coletivos em várias áreas fundamentais. Mas entendendo a democracia como um processo permanente de avanços, de modo acumulativo e processual, é preciso identificar que o funcionamento do sistema de partidos e a prática do Congresso Nacional, bem como a maioria dos legislativos estaduais ou municipais, ainda está em contradição com vários princípios republicanos e democráticos. Melhorar a qualidade democrática e republicana dos parlamentos é fundamental para a democracia participativa. São necessárias, assim, proposições viáveis que melhorem os padrões de transparência e prestação de contas, que combatam os privilégios e o nepotismo, que disciplinem e regulem as ações de lobbies privados, que evitem a subordinação fisiológica aos poderes executivos, que sejam capazes de aprimorar as funções da Câmara e do Senado no contexto de uma democracia avançada, que acolham democraticamente os procedimentos do plebiscito, do referendum, da iniciativa popular de leis, das audiências públicas.

9- Um desafio especial para o segundo mandato será o aprofundamento do combate à corrupção sistêmica que deslegitima a ação do Estado, reproduz a sua ineficiência e desmoraliza a ética cidadã. Em sua essência, a corrupção – quase sempre vinculada a grupos e interesses privatistas – é a própria negação da esfera pública. Por isto, é preciso criar os procedimentos e controles públicos capazes não apenas de punir mas de ter uma ação fundamentalmente  preventiva. Como afirmou o programa do PT aprovado em 2006, é preciso também atualizar as leis que punem o delito da corrupção, tornando-as especialmente mais severas e.

10- A construção da esfera pública requer uma opinião pública livre, pluralista  e democrática. A crise política vivida pelo governo Lula mostrou como a concentração do poder dos meios de comunicação de massa, seu pluralismo limitado e sua concepção de liberdade como mero sinônimo de ausência de qualquer regulação democrática conspiram contra o aprofundamento da democracia no país. Ao contrário da acusação dos liberais, o PT quer é mais liberdade de opinião e mais pluralismo. Será, pois, estratégico no próximo mandato aprofundar a dimensão pública da opinião no Brasil, o que implica dar acesso à vocalização de largos setores da população marginalizados, desenvolver os meios de expressão democráticos e populares, incentivar o pluralismo das fontes de  informação e opinião, criar fóruns e movimentos capazes de dar legitimidade a uma regulação democrática das mídias.

11- A revolução democrática se relaciona também com uma ampla mudança nos padrões históricos do federalismo brasileiro, formatando critérios públicos não clientelistas na relação entre os entes federados, através da transparência e do controle social, favorecendo a municipalização das políticas públicas, operando em favor de uma distribuição regional mais justa das riquezas e das rendas, retomando em novas bases as agências e planejamentos de desenvolvimento regional, estimulando o cultivo das identidades culturais locais. Em particular, colocam-se como desafios à revolução democrática a superação da histórica miséria nordestina e a plena integração, em bases de sustentabilidade ecológica, da região amazônica.

12- O maior entrave hoje à construção de uma economia do setor público é o caráter historicamente anti-republicano da gestão do Banco Central, que tem incidência sobre variáveis chaves da economia como a gestão da dívida pública, os juros e o câmbio. Este caráter anti-republicano, acentuado nos anos do neoliberalismo, se revela hoje ainda na financeirização de sua gestão, isto é, na sua relação íntima com o capital financeiro, na escolha de seus quadros, em seus procedimentos,  em suas fontes de informação, em suas políticas e metas. Ao contrário, deve-se defender o princípio de que o Banco Central é uma instituição republicana e sua ação técnica, capaz de fazer as mediações devidas, deve se subordinar às metas de desenvolvimento  democraticamente definidas pelo governo e pela sociedade. A criação de um sistema público de financiamento de longo prazo da economia brasileira – envolvendo os agentes estatais democratizados, os fundos dos trabalhadores e uma nova regulação do sistema financeiro privado – é condição necessária e fundamental para uma estratégia  de desenvolvimento sustentado com distribuição de renda.

13- A construção de uma nova consciência ecológica, no mundo e no Brasil, requer a capacidade da esfera pública incorporar na própria noção de bem comum o patrimônio da natureza. Esta consciência exige a combinação de fundamentos entre o desenvolvimento, a emancipação social e novas formas de civilização que, ao invés de destruírem, componham novas relações de harmonia com a natureza. Um novo contrato social exige também um novo contrato com a natureza, tornando a visão humanista empenhada também em uma relação cósmica enriquecida com o mundo.

14- A revolução democrática significa o despertar e a projeção histórica do enorme potencial criativo de vastos setores da população desde sempre marginalizados. É por isso que uma revolução na educação brasileira – na sua universalização, na sua qualidade, no seu engajamento na solução dos grandes desafios nacionais – como anteviram grandes pensadores do Brasil e tem enfatizado o presidente Lula,  é um eixo fundamental. Esta revolução democrática deve ser acompanhada da construção de um sistema nacional de inovações, que permita uma visão sistêmica do desenvolvimento científico e tecnológico e sua apropriação para fins de um desenvolvimento justo.

II-2 – A dinâmica da revolução democrática

1- A revolução democrática é um processo histórico que combina o aprofundamento da democracia – de seu pluralismo, de sua institucionalidade, de sua base social, de seus direitos – com as transformações na vida social do país. Isto significa a determinação de realizar as mudanças que forem objeto de um claro apoio majoritário na sociedade, fruto de consensos amplos, respeitando sempre os direitos políticos das minorias, mas indica também que os caminhos da transformação passam por uma expansão historicamente inédita da própria qualidade da democracia brasileira.

2- Para que seja ritmado com o processo de autodeterminação dos trabalhadores e do povo brasileiro, a imaginação da revolução democrática deve ser capaz de construir toda uma era de mudanças. Este tempo próprio da revolução democrática não deve ser concebido como linear: a alternância de governos, mesmo de forças políticas externas à coalizão que sustenta a revolução democrática, pode ensejar recuos e descontinuidades; a períodos de aceleração das mudanças, de reformas estruturais podem se suceder períodos de mais lenta acumulação de forças e de novos aprendizados democráticos. A era da revolução democrática necessariamente deve ser capaz de combinar a solução de problemas históricos, como as heranças da escravidão, da concentração fundiária, da opressão das mulheres, da marginalização social. Para tanto, ela deve mobilizar, ao mesmo tempo, as tradições de luta do povo brasileiro e inscrevê-las nas novas culturas libertárias, na consciência ecológica e nos desafios científicos e tecnológicos do século XXI.

3- A revolução democrática significa um processo permanente de alterações da correlação de forças em favor dos trabalhadores e do povo brasileiro. Esta mudança se revela nas posições crescentemente conquistadas na institucionalidade democrática, no aumento da organização e da capacidade de mobilização dos movimentos sociais e na evolução da  própria cultura política do país, tornando-a cada vez mais receptiva aos valores do socialismo democrático. A construção da esfera pública é o modo de combinar estas três dimensões, reconhecendo que o dinamismo da mudança está fundamentalmente centrado na capacidade de mobilização social e na disputa de valores na opinião pública. É esta mudança na correlação de forças que permitirá alargar a cada conjuntura o horizonte do possível, no caminho das grandes reformas estruturais democráticas e populares.

4- A conquista das reformas estruturais ou democráticas populares – a reforma agrária plena, a reforma tributária progressiva, a reforma urbana, a nacionalização de setores que a democracia brasileira considerar estratégicos para o desenvolvimento nacional – só ocorrerá com a combinação entre o avanço da correlação de forças na institucionalidade democrática e a conquista de legitimidade na opinião pública. A realização de campanhas nacionais em prol destas reformas, esclarecendo a sua função histórica, deve ser uma prioridade dos movimentos sociais e das forças políticas e sociais comprometidas com a revolução democrática.

5- Como demonstra a experiência do primeiro governo Lula, há uma relação profunda entre os avanços possíveis da democracia brasileira e a mudança das relações entre as classes sociais e setores de classe. O Estado brasileiro formou-se desde o início em bases anti-populares: o primeiro experimento, limitado e restrito, de democracia de massas ocorreu apenas no período 1946-1964, interrompido em seguida por mais de 21 anos. A opressão econômica foi sempre e é reproduzida implacavelmente pelo poder político. Apesar das conquistas democráticas decisivas de direitos e políticas sociais ao longo da história, as instituições e a hierarquia de direitos e deveres do Estado brasileiro ainda mantêm uma forte relação com privilégios dos grandes detentores de capital, terra e renda.

6- A liderança pública do presidente Lula deve ser valorizada como uma grande expressão política e cultural deste novo protagonismo das classes trabalhadoras e populares. Ela alcançou uma dimensão histórica: já é, e tem a potencialidade nestes próximos anos de vir a se consolidar, como a grande referência histórica da passagem para novos padrões de democracia e república. Ela tem certamente uma dimensão internacional:  o presidente Lula pode se tornar símbolo mundial da luta contra a fome e a miséria e protagonista central na unificação política da América Latina. Ao contrário dos que preconceituosamente a acusam de “populista, messiânica, autoritária”, esta liderança se fez na luta pela democracia, firmou-se na relação com coletivos de partidos e movimentos sociais autônomos,  nacionalizou-se com o amadurecimento da democracia brasileira e só pode se expandir em meio ao mais amplo pluralismo e direitos políticos.

7- A revolução democrática implica, em primeiro lugar, a subordinação dos poderes do capital financeiro e rentista aos marcos do Estado e da economia nacional. Significa o fortalecimento qualitativo da força e dos direitos das classes trabalhadoras frente aos grandes capitais que hoje dominam a economia nacional. Implica, em terceiro lugar, uma expansão qualitativamente nova dos micro-emprendimentos, da agricultura familiar, do cooperativismo e, fundamentalmente, das formas de economia solidária. A incorporação plena aos direitos da cidadania e a diminuição das dezenas de milhões de trabalhadores desempregados ou de emprego precário resultarão em um imenso fortalecimento social das classes trabalhadoras e modificarão o próprio estatuto das chamadas classes médias brasileiras. Mudanças na distribuição estrutural da renda elevarão dezenas de milhões de pauperizados a condições de consumo, qualidade de vida e acesso à educação hoje assimiláveis aos padrões médios da população brasileira. As classes médias ganharão novas perspectivas de emprego, de qualidade de serviços públicos, de segurança e de vida cultural, quebrando-se as linhas perversas da criação de  dinâmicas de separação e exclusão social que marcaram a vida brasileira nas décadas recentes. Mudanças estruturais na democratização do acesso à propriedade rural, o fortalecimento das políticas públicas voltadas para a agricultura familiar, o cooperativismo e a economia solidária alterarão os padrões históricos da concentração de renda, violência e despotismo que marcam a vida social no campo brasileiro.

8- A distribuição de renda, o reconhecimento simbólico dos que foram quase sempre desprezados e humilhados, o acesso à educação e à cultura, a conquista do  emprego e dos direitos do trabalho, a reforma agrária são, por excelência, o chão de um novo protagonismo das classes populares na democracia brasileira. E é este novo protagonismo que permitirá o aprofundamento das mudanças. As fortes – e inéditas em seu alcance – políticas de inclusão social iniciadas no primeiro mandato do governo Lula  já combinam, em proporção ainda insuficiente, o reforço dos direitos do trabalho (do nível de emprego, do salário mínimo, da formalização do mercado de trabalho) com a expansão das políticas sociais e de assistência. A dinâmica da revolução democrática exigirá cada vez mais que as políticas do emprego, do crédito, do acesso à educação, da reforma agrária, da qualificação profissional propiciem a oportunidade histórica para que dezenas de milhões de brasileiros hoje dependentes da assistência emergencial do Estado assumam a sua condição de cidadãos produtivos e autônomos. Este ciclo permitirá, por sua vez, pensar novos padrões de qualidade e universalidade das políticas sociais no Brasil.

9- Esta relação entre o protagonismo das classes populares e a institucionalidade do Estado é essencial para o sucesso da revolução democrática. Daí a importância da ampliação das formas da democracia participativa, em todos os níveis, com seus efeitos dinâmicos e inovadores permanentes sobre a institucionalidade e a criação de novos direitos.

10- Há igualmente uma relação profunda entre as mudanças sociais e a revolução nos valores, nos costumes, nos hábitos, nos sensos comuns no curso da revolução democrática. Além da violenta concentração da renda e da riqueza, do acesso aos meios de produção, a desigualdade intolerável da sociedade brasileira se alimenta da força de preconceitos históricos herdados da escravidão e de uma sociedade patriarcal. Uma era de revolução democrática no Brasil terá necessariamente que expandir a auto-estima, a valorização social, o potencial criativo dos negros e das mulheres. Esta expansão histórica de direitos e reconhecimento simbólico  – verdadeiras revoluções culturais – são parte essencial do processo de autodeterminação do povo brasileiro.

11- O cultivo de um individualismo egótico, que prevê a realização do indivíduo em contradição com a comunidade na qual se insere, de um sentido de vida preso apenas à acumulação material e à diferença de status são contraditórios com grandes matrizes também formadoras da cultura brasileira, como o comunitarismo, a disponibilidade para o prazer, o lúdico, a felicidade comum. Uma era de revolução democrática buscará compor o direito à igualdade e o direito à diferença, uma expansão inaudita das liberdades individuais em uma cultura de fraternidade e solidariedade.

II-3 – Construir a coalizão da revolução democrática

1- O PT concebe as tarefas de direção da revolução democrática de modo plural através da formação de uma grande coalizão histórica político-social. Como a revolução democrática envolve a realização de reformas de caráter nacional, democrático e popular, esta coalizão é necessariamente mais ampla que a unidade entre as forças políticas que se reivindicam do socialismo democrático. Porque as tradições sociais e culturais do povo brasileiro estão longe de se expressarem plenamente no sistema de partidos, esta coalizão deve ser definida como político-social, isto é, ela deve se expressar mais além de alianças partidárias, em sua raiz social, em suas identidade religiosas e na sua expressão cultural.

2- Pela sua história, pela sua raiz social, pela força de seu protagonismo na história brasileira recente o PT almeja legitimamente a condição de estar no centro do esforço da construção desta coalizão. Deve buscar igualmente fortalecer o pólo socialista democrático desta coalizão. Este protagonismo central do PT, no entanto, pelo pluralismo de suas concepções e por sua perspectiva histórica, pode contribuir para criar o espaço histórico de desenvolvimento político de um conjunto de tradições vinculadas ao povo brasileiro que tiveram seu florescimento travado pela ditadura militar e pelo domínio neoliberal. Os diversos trabalhismos, as tradições comunistas, os socialismos de várias matrizes, os comunitarismos cristãos, os sociais-democratas autênticos, vinculados à defesa dos direitos e de mais justiça social, poderão encontrar no terreno da revolução democrática amplo espaço de crescimento.

3- Do ponto de vista do sistema partidário brasileiro, o aprofundamento da revolução democrática visa a fortalecer o pólo de esquerda, ponderar mais o peso das posições de centro- esquerda e diminuir a força dos partidos neoliberais e conservadores. Estas mudanças serão decisivas para diminuir a resistência institucional às mudanças de prioridade de gestão.

4- Os movimentos sociais no Brasil, que viveram um grande ascenso nos anos oitenta, conseguiram resistir aos anos do neoliberalismo e mantiveram uma decisiva agenda de mobilizações, em particular  no movimento que se expressou na chamada “Carta aos brasileiros” ( de 2005),  no primeiro mandato do governo Lula. Apesar da diminuição das mobilizações, em particular do ciclo grevista do movimento sindical, os movimentos sociais se nacionalizaram, enriqueceram a sua agenda de direitos (em particular com a ascensão do movimento gay e dos movimentos ecológicos), incorporaram novas formas de luta e organização, criaram a Central de Movimentos Populares, se internacionalizaram com a experiência dos Fóruns Sociais Mundiais. As comunidades eclesiais de base, apesar de todas as restrições que sofreram, mantém uma importante rede nacional, renovando as dimensões da Teologia da Libertação. O terreno histórico da revolução democrática é, por excelência, o espaço de um novo ascenso dos movimentos sociais,mais amplo e mais profundo que os já vividos.

5- A CUT, que conseguiu resistir heroicamente aos mais duros anos do neoliberalismo, é hoje a grande instituição representativa dos trabalhadores brasileiros. Mais do que apenas um canal de reivindicações nacionais, ela é um símbolo maior da dignidade das classes trabalhadoras, em seu pluralismo de visões políticas, de regiões, de sexos, de raças, de interesses e perspectivas. Vista assim, ela é uma das principais conquistas da democracia brasileira e a superação de seus atuais problemas políticos e organizativos vincula-se a uma nova época histórica de retomada dos direitos do trabalho no Brasil, do direito de se organizar livremente no local de trabalho a um salário-mínimo digno.

6- A revolução democrática põe aos movimentos sociais o desafio de renovar a sua agenda, as suas formas de organização, a sua capacidade de mobilização e a sua unidade. Sem perder as suas dimensões específicas e corporativas legítimas, eles devem, em uma dinâmica de um governo democrático-popular, se reconhecerem como co-governo, isto é, como parte decisiva do processo de construção da esfera pública. Mantendo a sua autonomia e a sua capacidade crítica, eles podem e devem participar da definição das agendas de governo, assumir tarefas comunitárias e cooperativas de gestão pública e, principalmente, contribuir de modo decisivo através de campanhas nacionais na criação da legitimidade das grandes reformas estruturais que o país precisa.

7- A construção de fóruns nacionais ou setoriais em que estejam representadas as classes fundamentais do país é uma necessidade da revolução democrática, no sentido de civilizar e institucionalizar os conflitos de classe, estabelecer pontes de diálogo e acordos com os setores produtivos nacionais, ir criando novos parâmetros de regulação da economia.

8- A disputa para que a cultura brasileira desenvolva valores afins ao socialismo democrático é essencial para a legitimidade da revolução democrática. Este processo não deve ser pensado como prioritariamente doutrinário ou externo aos valores contidos na cultura brasileira, nas suas expressões erudito-populares, como sintetizada pelo grande Movimento Modernista de 1922. Os grandes artistas do povo brasileiro souberam ir às fontes da vida popular, de seus sentimentos, de suas dores e perdas, de suas esperanças, de suas criações espontâneas e refinadas, para ir criando a identidade comum – plural, étnica e regionalmente, mestiça, comunitarista e  universalista de raiz – dos brasileiros. Esta identidade nacional assim criada é resistente e antagônica, em dimensões fundamentais, ao liberalismo mercantil e pode se desenvolver, no curso de uma revolução democrática, no sentido de uma consciência socialista democrática de massas.

9- É preciso reconhecer que os movimentos políticos da esquerda brasileira, que predominantemente acentuaram no pós-64 sua identidade classista em um certo detrimento da identidade nacional, desenvolveram pouco ainda as suas relações com esta vertente cultural e civilizatória da emancipação. Em grande medida, o desafio hoje é o de fecundar as culturas da dignidade do trabalho com o sentido incontornavelmente popular da identidade da  cultura brasileira. Há uma grande teia que une Mário de Andrade a Chico Mendes, Chiquinha Gonzaga a Pagu, Carlos Drummond de Andrade a Antonio Candido, Bertha Lutz a Cecília Meireles,  Aleijadinho a Niemeyer, Lula a Luiz Gonzaga, Florestan Fernandes  a Darcy Ribeiro, Antonio Conselheiro a Prestes, Dom Hélder Câmara a Cartola,  Zumbi dos Palmares a Pedro Casaldáliga e esta teia deve se tornar um patrimônio comum dos brasileiros, sinal do que soubemos criar e podemos sonhar.

10-  Houve uma grave depreciação dos valores ligados à cultura do trabalho nos anos de domínio neoliberal. Uma cultura do socialismo democrático não pode se constituir sem uma reposição e uma reparação histórica dos valores contidos na vida oprimida e explorada dos trabalhadores brasileiros. O Estado nacional que se formou tardiamente com base no trabalho escravo deve ser capaz de elevar os direitos dos trabalhadores ao centro da vida nacional, matriz de todos os outros direitos.

11- A revolução democrática é também, por excelência, o momento histórico dos negros, que já tiveram reconhecida a  sua presença central na formação da identidade do país, terem pleno acesso aos seus direitos políticos, econômicos e sociais. A revolução democrática poderá criar o campo de resolução do grande impasse que marcou desde sempre a luta pela dignidade dos negros do Brasil – a afirmação de sua auto-identidade e a conquista das promessas não cumpridas da mestiçagem e da democracia racial – afirmando uma cultura multicultural, que respeita as diferenças.

II-4 – A revolução democrática, a política externa e a unificação latino-americana

1- Não é possível se pensar a história do Brasil desligada do continente latino-americano. Unidos desde a colonização, passamos ao longo dos séculos por processos comuns de opressão e luta. Das guerras de independência à eclosão dos processos guerrilheiros na década de 60, do período das ditaduras militares à década de predominio quase absoluto das concepções e políticas neoliberais nos anos 90. As elites latino-americanas no entanto sempre buscaram se afirmar de costas umas para as outras, mirando primeiramente a Europa e posteriormente os Estados Unidos. Hoje, vivemos um novo momento em nossa história, em que o surgimento de uma ampla onda antineoliberal no continente possibilitou a vitória de diversos governos progressistas. Nos quase duzentos anos em que nosso continente tem vida enquanto nações independentes, esta conjuntura é a mais promissora em termos de seu potencial emancipadr. A revolução democrática pressupõe o entendimento de que não é possível a construção soberana do país sem que haja um forte processo de integração regional em todos os níveis: econômico, político, social e cultural. A integração regional pode somar as capacidades técnicas e científicas dos setores de trabalhadore mais especializados, a base tecnológica e industrial construída em períodos anteriores, a enorme disponibilidade recursos naturais e energéticos, criando um bloco econômico e político em condições de afirmar uma política própria. Nesse sentido, fortalecer o Mercosul, a Comunidade Sul-americana de Nações e outros mecanismos de integração, como vêm fazendo de forma decisiva o governo Lula, é parte essencial da revolução democrática. Para tanto, é indispensável combinar-se a busca de unidade entre os governos progressistas da região, com a necessária compreensão das assimetrias existentes e das particularidades dos distintos processos políticos e sociais que se desenvolvem em cada país. Para tanto, é necessária a construção de um amplo movimento de caráter político  e social que, combinado com a ação dos governos progressistas, impulsione na sociedade este processo.

2- Não é possível tampouco se pensar a afirmação do Brasil enquanto nação sem uma forte presença no cenário político internacional, como vem sendo desenvolvida pelo governo Lula. O incremento das relações Sul-Sul, a formação do G-20 e outras iniciativas são fundamentais para o enfrentamento do Império e da hegemonia neoliberal, na luta pela paz e na busca de um mundo multipolar, com instituições internacionais democratizadas.

II-5 – A revolução democrática e o socialismo democrático

1- Há amplas linhas de ligação entre a revolução democrática e a construção do socialismo. No plano social, trata-se de aumentar a coesão, a consciência dos direitos, a força política dos trabalhadores e dos oprimidos. No plano político, trata-se de aprofundar a qualidade, a extensão e a a profundidade da democracia para além dos marcos elitistas do liberalismo. No plano econômico, trata-se de não apenas submeter o capital a uma nova ordem de regulação, como de ir criando, no plano macro e micro-econômico, através da ação democratizada do Estado e de fundos públicos, a economia do desenvolvimento. No plano cultural, trata-se de alentar os valores afins ao socialismo democrático, da liberdade, da justiça social, da fraternidade, da emancipação das mulheres, da superação do racismo. No plano internacional, apoiar todos os movimentos emancipatórios em favor de uma nova ordem mundial, a construção de organismos internacionais democráticos frente ao poder das potências imperiais e, em particular, desenvolver a comunidade latino-americana.

2- Uma experiência de transição democrática ao socialismo é inédita na história da humanidade.  Contra os argumentos de que ela é impossível frente à resistência violenta e ao poder econômico, é preciso confiar na força da vontade democrática das grandes maiorias, na capacidade da democracia de vencer opressões históricas, nas dimensões criativas que só um pluralismo autêntico pode gerar, na legitimidade que a democracia confere ao uso circunscrito e controlado da força contra atos que firam a legalidade democrática. No contexto latino-americano, devemos reconhecer a especificidade dos caminhos da emancipação a percorrer, democrática e soberanamente decididos pelos povos, recusando erros historicamente já cometidos de estreitar a pluralidade de caminhos e ritmos em modelos e padrões únicos. Contra o ceticismo e o enfraquecimento das utopias que assola a cultura contemporânea, é preciso resgatar a dignidade dos sonhos generosos de emancipação contidos na tradição do socialismo e das lutas populares, reorganizar as pontes entre a política e a cultura, entre política e ética, entre a busca da felicidade pessoal e a felicidade coletiva.

3- A experiência da revolução democrática do povo brasileiro insere-se na crise de civilização da humanidade, motivada por uma ordem mundial capitalista que é incapaz de resolver segundo seus próprios valores os problemas fundamentais que gerou. A noção de uma transição democrática, na qual não apenas os caminhos mas os destinos estão em permanente construção, impede que se trace uma estratégia definida a priori para o socialismo. O socialismo democrático requer a plena superação dos domínios do capital e como tal se insere nos grandes desafios históricos da humanidade. Como conquista democrática do povo brasileiro, como auto-construção da civilização brasileira ela se comunica com o imprevisto e o indeterminado que são a própria expressão da liberdade na história.

Socialismo democrático e republicano

1- As resoluções “O socialismo petista” e “Socialismo”, aprovadas no 7 Encontro Nacional e no I Congresso do PT, devem ser justamente valorizadas como marcos centrais da história e da cultura petistas. Elas foram fundamentais para garantir a sobrevivência da identidade e a unidade do PT em anos marcados pela forte pressão conservadora e neoliberal. Afirmaram a legitimidade democrática do PT em seu caminho para o governo central do país, projetando as suas contradições e tensões com a ordem política brasileira para um caminho histórico construtivo de aprofundamento qualitativo da democracia. Mas, principalmente, enriqueceram a cultura do socialismo democrático com princípios e formulações alternativos às grandes linhas das experiências autocráticas de construção do socialismo ou adaptativas à ordem capitalista da social-democracia.

Entre estes princípios e formulações, podem se destacar:

– a crítica à noção de “ditadura do proletariado”, com a afirmação de um pluralismo estratégico e não restrito aos partidos operários, a defesa da necessidade de um Estado de Direito, da legitimação majoritária do poder político bem como o respeito às minorias e à alternância de poder, do direito à diversidade política, cultural, étnica, sexual e religiosa;

– a crítica da social-democracia que “acredita  na neutralidade do Estado e adota como horizonte máximo a luta por reformas no interior do próprio capitalismo”;

– a defesa da combinação entre formas da democracia direta, de gestão política e econômica, com os mecanismos de democracia representativa e com mecanismos ágeis de consulta popular;

– a postulação de um planejamento estratégico e democrático do desenvolvimento, diversificando as formas de propriedade ( estatal, coletiva, social, pública, particular, mista), gestão e controle social, privilegiando as formas de propriedade social e estabelecendo limites para a propriedade individual. Uma nova economia exigiria “fortalecer o controle da sociedade civil sobre o Estado também no terreno econômico, impulsionando a socialização e a democratização do Estado, e o desenvolvimento das esferas públicas no âmbito da própria sociedade civil”

– a recuperação “da dimensão ética da política como condição essencial para o restabelecimento da unidade entre socialismo e humanismo”;

– a visão de que o PT se nutre de diferentes correntes do pensamento democrático e transformador como “o cristianismo social, marxismos vários, socialismos não-marxistas, democratismos radicais, doutrinas laicas de revolução comportamental etc” e que o socialismo que queremos construir deve “se inspirar concretamente na rica tradição das lutas populares da história brasileira”, devendo ser capaz inclusive de integrar em seu centro a língua e “a canção secularmente contida (mas também sempre cantada) da resistência negra”;

– a defesa de um “novo internacionalismo, fundado em novos valores, em novos sujeitos e agentes políticos, que estejam empenhados em construir uma nova civilização” e um compromisso especial com a luta pela emancipação na América Latina;

– a incorporação inicial mas de fundamentos das relações entre a luta pelo socialismo e a ecologia, com o ponto de vista de que “os recursos naturais não podem ser apropriados sob regime de propriedade privada, mas sim de forma coletiva e democrática, em sintonia com o meio ambiente e solidária com as futuras gerações”.

Todas estas conquistas programáticas devem inspirar o PT no momento de atualização de sua visão sobre o socialismo.

2-  Após dezessseis anos de novas e decisivas experiências, o avanço na elaboração sobre o socialismo responde a necessidades resultantes da construção de sua identidade pública, em alguma medida afetada pela crise vivida e pela campanha acusatória movida por grandes órgãos de mídia. A condição de governar o Brasil, elevando ao mais alto grau as tensões entre a cultura petista e as tradições do Estado brasileiro, o processo recente e potencial de forte e inédita expansão da consciência popular, as pautas colocadas pelos novos movimentos sociais altermundistas e as novas experiências na América Latina, o aprofundamento da consciência ecológica permitem enriquecer e projetar o socialismo petista em dimensões fundamentais. Uma retomada do socialismo na cultura do PT responde também às carências suscitadas por todo um período marcado pela pressão neoliberal e pelo esforço pragmático de chegar ao governo do país e exercer a função de governo em condições desfavoráveis de correlação de forças. Esta retomada não é apenas importante, do ponto de vista dos valores e das perspectivas, mas para inspirar a própria prática contemporânea do PT, concebida como um criativo esforço histórico de inovar no diagnóstico e na superação dos grandes problemas nacionais e internacionais.

3- Assim como qualificou a sua perspectiva socialista com os valores da democracia, o PT tem hoje diante de si o desafio de renovar e aprofundar a sua projeção socialista com os valores do republicanismo. O socialismo é um princípio de civilização alternativa ao capitalismo, requer não apenas a construção de outro modo de produção e distribuição e de outro paradigma de Estado mas a organização de um outro modo de vida social. A cultura do PT já construiu a noção de que o socialismo pelo qual luta é democrático, isto é, não pode ser imposto pelo despotismo, pelo autoritarismo. É fundamental que ele responda de modo mais claro ao desafio de esclarecer que este socialismo democrático não é estatista, como acabou predominando nas várias culturas da social-democracia e das vertentes dominantes que resultaram da revolução russa, mas também não abraça a apologia do mercado como faz o liberalismo. A resposta a este desafio passa pelos valores republicanos e pela noção central de esfera pública.  Este desafio ficou mais evidente com a experiência de governar o país: a necessidade de formular de forma mais profunda a distinção entre partido e Estado, de construir uma ética da política ou uma ética pública, de construir as mediações institucionais e de gestão capazes de permitir o avanço das transformações e, enfim, compreender a sua experiência no interior e à luz dos impasses fundantes e históricos da república brasileira.

Socialismo democrático e republicanismo

4- A crítica à confusão entre as instâncias do partido único e o Estado já faz parte das resoluções do socialismo petista. Esta dimensão de recusa a uma prática incompatível com os valores pluralistas da democracia precisa agora ganhar um sentido histórico positivo e preciso. Em seus primeiros anos, o PT, para marcar a sua identidade, em seu período de primeira inserção na institucionalidade do Estado brasileiro, concebeu um modo petista de governar, uma ética petista diferenciada dos outros partidos tradicionais e, de modo geral, um modo petista de fazer política, recusando a separação elitista entre a ordem da política e os movimentos sociais. Pelas inovações que trouxeram à democracia brasileira, pelo aprendizado que permitiram, pelo potencial crítico à transição negociada e, depois, aos anos de domínio neoliberal, este modo de formular a questão da relação entre o PT e o Estado brasileiro cumpriu um papel histórico decisivo. Mas à medida em que se aumentava a inserção do PT no Estado brasileiro, ela revelou-se insuficiente.

5- O impasse se revelava assim: se os valores e as práticas que apresentávamos à democracia brasileira em construção eram típicos e exclusivos do partido, como pretendíamos que eles fossem institucionalizados como universais em um quadro de multipartidarismo e pluralismo? Esta contradição não resolvida tinha, na verdade, duas portas de saída, que acabaram se cruzando na prática do partido à medida em que mais aumentava a sua inserção no Estado: as tendências de adaptação ao próprio Estado, dissolvendo-se as diferenças entre a cultura e a prática petistas em relação aos outros partidos; as tentações de utilização instrumental da institucionalidade do Estado para fins estratégicos do PT ou de grupos e projetos pessoais dentro do PT.

6- A construção de instituições e procedimentos republicanos, a partir dos valores do socialismo democrático, é o caminho tanto para superar a adaptação do PT ao Estado brasileiro quanto a sua instrumentalização para fins partidários ou particularistas. Estas instituições são republicanas, constituem uma nova esfera pública em formação, exatamente na medida que são governadas por critérios avançados de democracia participativa (portanto, pluralistas) e são regidas e servem a interesses universalistas, isto é, para todos, como apontou já o principal slogan do primeiro governo Lula. Se a democracia participativa avançada é insubstituível para quebrar o controle dos grandes grupos econômicos sobre o Estado, para destronar privilégios, para combater a corrupção sistêmica, a dinâmica de interesses universalistas indica o caminho de uma larga integração dos direitos dos trabalhadores e populares às suas funções.

7- As teorias mais recentes da democracia têm enfatizado as suas dimensões comunicativas, discursivas, deliberativas recolocando em um plano central a construção de uma esfera pública de opinião. Os desenvolvimentos recentes da tecnologia da informação criam novos desafios e potencialidades. Temas como os da veracidade, da credibilidade, do direito ao pluralismo da informação, da construção e renovação das agendas públicas através do diálogo democrático exigem integrar cada vez mais os meios de comunicação de massa aos princípios normativos da democracia. Assim, o tema da construção da esfera pública de opinião deve ocupar um lugar central nas formulações do socialismo democrático, através da legitimidade da ação democrática e pluralista do Estado, da regulação democrática da mídia privada e de uma expansão qualitativa da capacidade de vocalização, debate e informação dos setores populares e dos trabalhadores.

8- Como partido socialista democrático, o PT tem no interior da democracia brasileira o seu programa, a sua cultura, sua base social e seus interesses partidários legítimos. Seria um erro, no entanto, defender que as instituições da democracia brasileira devam aderir ou se conformar a um código ético de sentido particular ou exclusivista do PT. Como principal partido interessado na construção da esfera pública, o PT deve lutar pela fundação de uma ética pública, de sentido democrático e universal, para as instituições do Estado brasileiro. A sua crítica ética das instituições do sistema político e do Estado brasileiro, a sua cobrança forte dos desvios patrimonialistas e das práticas de clientelismo, corrupção e privatização dos partidos neoliberais e conservadores, deve ser critério fundamental também para a avaliação democrática de sua própria prática e posicionamentos.

9- A experiência de governar o Brasil sob a pressão da dinâmica econômica neoliberal – forte pressão financeira em uma situação de grande vulnerabilidade externa – e com instituições ainda marcadas por regras e procedimentos advindos ou do período do regime militar ou do período neoliberal, evidenciou quanto é importante o PT desenvolver uma estratégia que fortaleça a economia do setor público, controlado e gerido com procedimentos democráticos. Sem o desenvolvimento desta economia do setor público, com a macro-economia do país ainda regida sob o império das grandes corporações nacionais e internacionais, não é possível avançar em uma estratégia de desenvolvimento acelerado com distribuição de renda. Por definição, a economia do setor público é o caminho histórico da transição democrática para o socialismo.

10-  A construção da economia do setor público envolve a expansão da ação econômica do Estado, sob controle social e democrático, um nova regulação da ação mercantil com critérios universalistas e a constituição de  dinâmicas expandidas de economia solidária, cooperativas, de agricultura familiar. É fundamental que um sistema público de financiamento de longo prazo se institucionalize e que se crie um forte sistema nacional de inovações, pois o controle democrático das finanças e das inovações constituem elos imprescindíveis da dinâmica econômica contemporânea. Toda uma economia do bem estar social, voltada para prover os bens básicos de civilização para todos os brasileiros, pode e deve se desenvolver sob a direção do setor público. Uma reforma agrária, capaz de corrigir as históricas distorções da concentração fundiária brasileira, será fundamental para renovar as perspectivas ecológicas, produtivas, de emprego e distributivas da economia brasileira. Nesse sentido. é fundamental a ampliação do Conselho Monetário Nacional, como defendem a CUT e o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, e o controle da entrada e saída do capital de curto prazo, que é apenas especulativo e instável. A consecução vitoriosa do Programa de Aceleração do Crescimento, parte fundamental da consecução de um projeto nacional que a um só tempo integra os estados e potencializa as suas economias, contribuirá decisivamente para alcançarmos um novo patamar de desenvolvimento, colocando o Estado como indutor do crescimento econômico e como realizador de novas conquistas sociais aos trabalhadores e a toda a população.

11-  Uma cultura de separação e até de oposição entre democracia direta e democracia representativa, entre movimentos sociais e participação eleitoral tem levado a um duplo impasse: de um lado, a dificuldade de superar os limites locais ou municipais das experiências de democracia direta na base e, de outro, uma adaptação da cultura partidária e eleitoral aos parâmetros vigentes no sistema político brasileiro. A superação desta separação paralisante implica a construção de um conceito de democracia participativa na qual as experiências de democracia na base têm a sua comunicação com as formas mais institucionais de democracia representativa, no contexto em que uma cultura de partidos renovada se nutre de novos espaços de movimentos sociais não apenas reivindicativos, mas também propositivos e até co-governativos. Os avanços e a qualidade desta democracia participativa nucleiam o caminho da construção histórica do socialismo democrático.

12- O sentido republicano transcendente da experiência do governo Lula fica evidenciado quando compreendido à luz da história da república brasileira desde a sua fundação. A república entre nós nasceu sem povo, e por isso mesmo, incapaz de realizar atos históricos de reparação em relação aos ex-escravos, de democratizar o acesso à propriedade fundiária e de incorporar os direitos dos trabalhadores. A revolução de 30 e o primeiro período varguista, se avançou nas dimensões nacionais, do desenvolvimento econômico e de uma inclusão parcial dos direitos sociais, atentou gravemente contra os direitos políticos e as liberdades democráticas, inclusive sindicais. O experimento da democracia pós-46, já cerceado quase na origem pela cassação dos direitos políticos do PCB, foi marcado por uma grande expansão da cultura nacional, da eclosão da questão nordestina e da reforma agrária mas teve a sua dinâmica popular e redistributiva travada pela ascensão do regime militar. O nascimento da chamada “Nova República” não conseguiu realizar os grandes pleitos de justiça social e de democracia acumulados durante o regime militar, parcialmente contemplados pelo Congresso Constituinte de 1988. O período neoliberal, com suas dinâmicas antinacionais, antidemocráticas, anti-sociais e privatistas operou historicamente contra a própria noção de construção republicana do país.

13- A construção de uma verdadeira república no país, que consiga criar, de modo articulado, a soberania nacional, o aprofundamento da democracia e uma dinâmica irresistível de universalização da cidadania, que tenha como centro o reconhecimento dos direitos e da dignidade do trabalho, que enfrente de forma inovadora os problemas históricos da concentração fundiária, das heranças da escravidão,da opressão secular das mulheres, da concentração regional da renda, da ocupação desde sempre predatória da natureza, faz parte assim da construção do socialismo democrático. É o modo do socialismo democrático se enraizar na história brasileira cumprindo as tarefas históricas que nem as classes dominantes nem as forças políticas liberais tiveram interesse e capacidade para cumprir.

Raiz nacional do socialismo petista

14- A construção do socialismo democrático deve ser entendida como a experiência de auto-emancipação do povo e dos trabalhadores brasileiros na história. Como tal, ela se nutre das tradições da luta democrática, nacional, social e emancipatória deste povo desde a sua origem, mantém um diálogo crítico e amoroso com as dimensões culturais, sociais e religiosas deste processo de civilização e deve ser capaz de projetar as utopias e aspirações de felicidade comum.

15- A tradição das lutas emancipatórias do povo brasileiro, pela força mesmo das opressões e da violência, não se apresenta hoje incorporada como patrimônio ao cotidiano da vida cultural do país. No entanto, ela permanece no substrato da memória coletiva da Nação. Para os que lutam pelo socialismo democrático, é preciso generalizar a compreensão e a postura de que nenhum manifesto ou sonho de emancipação, nenhuma vida sacrificada ou expandida pela dignidade de todos, nenhum movimento social generoso deve se perder no esquecimento e na desvalia. Em particular, é preciso fazer dialogar as várias línguas, os regionalismos, as utopias religiosas e os sonhos laicos que compõem esta pluralidade de etnias que desde sempre constitui o povo brasileiro. Uma imaginação comum de vida social mais feliz também é um bem comum.

16- Faz parte da grande contribuição das lideranças modernistas, em particular da figura histórica de Mário de Andrade, a noção de que a civilização brasileira é originalmente universalista porque capaz de dialogar com outras culturas e experiências, de incorporar e  fraternizar-se com o diferente e o outro. Nesta perspectiva histórica, a cultura do socialismo democrático deve se propor ser tão brasileira como o samba e o choro, o carnaval e o futebol, o frevo e o baião, o gosto disposto ao lúdico e ao erótico.

17- Faz parte também da consciência crítica desta experiência civilizatória original compreender que a dignidade do trabalho, de seus valores e perspectivas classistas foram fundamentalmente oprimidas ao longo do tempo. Aqui se realizou, em maior escala e por mais tempo, a maior experiência da escravidão moderna. Às classes trabalhadoras, na maior parte do tempo, foram negados os direitos básicos, permanecendo hoje ainda um contingente expressivo submetido às situações degradantes do desemprego, subemprego ou emprego precário. No campo, a estrutura fundiária concentrada e a violência do latifúndio impediram a expansão nacional  e a estabilidade de um campesinato e produziram milhões de trabalhadores sem terra.

18- Daí porque valorizar na revolução democrática a formação da cultura classista, anticapitalista, comunista, trabalhista e socialista dos trabalhadores brasileiros. Da dura luta pioneira dos anarco-sindicalistas, dos comunistas, dos trabalhistas, dos socialistas, do chamado novo sindicalismo que esteve no centro da origem do PT à construção da CUT, da Ultab, das Ligas Camponesas ao atual Movimento dos Sem Terra, houve um processo histórico de construção de tradições, de instituições autônomas, que se relacionam com a eleição de um primeiro presidente operário metalúrgico do país. A situação histórica é, pois, propícia á retomada e a expansão das instituições e da cultura socialista dos trabalhadores brasileiros.

19- A cultura brasileira, em seus momentos maiores de criação estética, soube romper a divisão entre elite e massa, compondo o diálogo entre o erudito e o popular. Soube vencer a barreira das raças, das regiões, dos sexos, das classes compondo um patrimônio comum de identidade que convida à fraternidade dos brasileiros, em novas harmonias com a natureza. Excluído desde sempre da comunidade política, não encontrando dignidade no trabalho, foi no campo da cultura brasileira que o povo brasileiro,em seu pluralismo, recompôs-se, expandiu-se e projetou-se. A casa comum dos brasileiros, na temporalidade própria das grandes criações da cultura, já está imaginada em nossa identidade. Ao socialismo democrático cabe construí-la..

O socialismo democrático e o novo internacionalismo ( a desenvolver)
O socialismo democrático e um novo contrato com a natureza ( a desenvolver)

Um partido para a revolução democrática

1- A resposta aos imensos, complexos e promissores desafios da revolução democrática deve orientar as profundas mudanças necessárias no PT. O PT está se consolidando como partido central na democracia brasileira e sua evolução nos próximos anos condicionará, de modo estrutural, as possibilidades de avanço na revolução democrática.

2- A evolução do PT condicionará, em um sentido fundamental, a evolução da revolução democrática em cinco dimensões fundamentais:

– a sua capacidade de criar os espaços do protagonismo político e da cidadania ativa de centenas de milhares dos novos personagens na cena brasileira, dos trabalhadores e do povo que constituem a base social fundamental e em ampliação do governo Lula;

– a construção de um novo ascenso nacional dos movimentos sociais, que tem dificuldade de se produzir em contextos de separação entre as lutas políticas eleitorais e as ações reivindicatórias;

– a construção e estabilização de uma coalizão político-social, que permita alterações crescentes na correlação de forças na institucionalidade democrática;

– a superação dos impasses de fundamentos éticos na prática do sistema de partidos, que incentive um deslanche democrático na construção da esfera pública;

– a constituição de uma cultura socialista, democrática e popular no Brasil.

Esta renovação da capacidade do PT liderar a revolução democrática se relaciona, de modo decisivo, com a formação das novas vanguardas e partidos latino-americanos.

3- Para que o PT seja capaz de realizar a sua capacidade potencial de liderar a revolução democrática, é preciso superar impasses políticos, éticos e organizativos estruturais, que se vinculam às raízes da recente e profunda crise. Nos anos 90, o PT foi capaz de manter a presença nacional e a  unidade do partido em anos difíceis, conduzir com outras forças políticas e os movimentos sociais a resistência ao neoliberalismo, ganhar uma presença importante na institucionalidade, desenvolver experiências inovadoras de gestão e políticas públicas e, mais importante, projetar as condições da vitória de Lula em 2002. Estes feitos históricos e decisivos do PT, que não podem de modo algum ser relativizados, deram-se, no entanto, em um contexto de crescente estreitamento institucional da vida do partido, de acento em seu pragmatismo eleitoral, de enfraquecimento da cultura socialista na vida partidária e, de forma crescente, de um forte estreitamento da democracia partidária e da organização de base. De forma gradativa e mais acentuada em alguns estados, o partido sofreu um fenômeno de burocratização, de substituição da militância por cabos eleitorais, das instâncias partidárias pelos gabinetes, de secundarização da formação política e de crescente falta de transparência em suas finanças. As instâncias partidárias foram sendo substituídas por grupos paralelos dentro do partido e por projetos pessoais. Estas carências manifestar-se-iam de forma dramática na experiência do primeiro governo do presidente Lula. O PT não soube articular seu papel como  principal força de sustentação ao governo com a necessária autonomia como guardião de um programa, distanciou-se dos movimentos sociais, não apresentou alternativas concretas de políticas ao governo e, de certa forma, a própria discussão dos rumos do governo foi interditada em sua direção. E mais ainda, adotou práticas e condutas incompatíveis com a ética republicana, Até certo ponto, repetiu-se aquilo que sempre criticamos historicamente nas experiências do socialismo real: a transformação do partido numa correia de transmissão do Estado. Apesar de todos esses fenômenos, sofrendo todos os ataques de nossos adversários e no bojo da maior crise de sua história, o PED marca um momento de reação, em que a militância partidária mostrou que aqueles processos negativos em curso não estavam cristalizados e que há forças no interior do partido para, com base no melhor de suas tradições, superar os impasses e recuperar sua trajetória como partido de massas, democrático e socialista.

4- Passar de um paradigma de organização partidária pragmaticamente adaptado a um período de resistência ao neoliberalismo a um outro paradigma de construção partidária sintonizado com as potencialidades da revolução democrática é, pois, o desafio norteador. Esta necessidade imperiosa de mudança não pode ser relativizada pelo apego sectário e inercial às polarizações do período passado mas, em sua própria lógica, ela deve ser capaz de preservar a dignidade das tradições e militâncias que são inseparáveis das conquistas históricas do PT. O reconhecimento de que nenhuma tendência ou tradição petista isolada tem respostas aos desafios vividos, nem força e legitimidade exclusiva para encaminhá-las, deve levar ao entendimento de que este novo período de construção do PT demanda um novo campo de elaboração comum, capaz de novos pactos partidários, novos campos de unidade, novos consensos necessariamente pluralistas e democráticos.

5- Este novo paradigma comum de construção partidária demanda seis mudanças  estruturais:  uma nova inserção social  do PT;  a renovação  do pacto ético do PT em um quadro de transparência pública de suas finanças; avanços conceituais e práticos na cultura do socialismo democrático; reformas na inserção nacional de seu sistema de direção e na democracia partidária; nova ênfase ao papel das bases partidárias; nova ênfase no seu sistema de relações internacionais e um novo incentivo à participação das mulheres e negros na vida partidária.

Nova vida à prática social do PT

6- O estreitamento do PT na vida institucional, em grande parte decorrente da pressão das tarefas centrais de governo do país, de estados, no Congresso Nacional, tem neutralizado em forte medida a rica dialética que deve existir entre a sua vida e as dinâmicas mais criativas da sociedade brasileira, a expansão da consciência política entre as populações mais pauperizadas, a imensa rede de organismos, entidades, movimentos sociais, culturais, feministas, ecológicos, de economia solidária, de novos direitos libertários. Dar nova vida à prática social do PT é não apenas buscar um novo equilíbrio, mas principalmente dar um novo sentido e função à relação entre prática institucional e prática social do PT.

7- Além da participação nas eleições, a vida do PT, de seus filiados e de sua militância, deve se orientar para um protagonismo permanente em campanhas nacionais por novos direitos e reformas estruturais, em atividades político-culturais e em ações de voluntariado que contribuam para a imensa rede de solidarismo e comunitarismo tecidos pelo povo brasileiro.

8- Um novo alento da prática social do PT envolve centralmente uma nova relação com os movimentos sociais constituídos. Se o PT fez a opção histórica correta de não pretender transformar os movimentos sociais em correias de transmissão do partido, acabou prevalecendo na prática a tendência a separar a sua atuação institucional dos ciclos organizativos e reivindicativos dos movimentos sociais. Afastando-se dos modelos típicos do estalinismo e da social-democracia, o PT deve apostar em um novo sentido e formato das relações entre partido e movimentos sociais que contemple centralmente o processo de construção da esfera pública. Ao invés de replicar corporativamente, em cada segmento, em cada localidade, uma estrutura orgânica voltada para a especificidade de cada movimento, o PT deve estabelecer com as dinâmicas autônomas dos movimentos sociais uma relação político-cultural. Isto é, ele deve contribuir para que estes movimentos sejam capazes de transcender a esfera corporativa legítima de suas ações para funções de co-governo, de criação e ativação de novas agendas de direitos, e também para avançar em sua consciência do socialismo democrático.

9- O PT nasceu para quebrar a separação entre a atividade política elitista, especializada e profissional e a cidadania ativa dos trabalhadores e do cidadão comum. Os núcleos do PT eram na imaginação original do partido o lugar por excelência da socialização política. A revolução democrática cobra o espaço para a expansão da cidadania ativa dos socialistas. Os núcleos, em uma democracia renovada da vida do PT, tendo participação inclusive em seu sistema de decisões, organizados de modo flexível e adaptados às diferentes regiões e culturas do país, poderiam ser nesta nova fase da vida do PT a verdadeira raiz de sua energia transformadora.

Por uma prática de transformação competitiva do sistema político

10- Não  podem ser subestimados os efeitos sobre o PT do financiamento privado das campanhas eleitorais, do sistema partidário e eleitoral brasileiros, das regras de funcionamento nos parlamentos.

11- A dinâmica de transformação do sistema político brasileiro exige a combinação da centralidade da luta permanente pela reforma política, pensada historicamente de forma processual e acumulativa nos procedimentos e instituições da democracia, com a adoção de procedimentos, regras e códigos de ética que sinalizem claramente para a sociedade o compromisso prático do PT com as reformas democráticas e republicanas pelas quais luta. Entre estes procedimentos, deve ter um lugar central a dimensão mais coletiva das campanhas e dos mandatos parlamentares, a transparência das contas partidárias e a recusa em incentivar, partilhar ou usufruir de privilégios corporativos resultantes da maior inserção do PT na institucionalidade do Estado brasileiro.

Compromisso com a ética republicana

12- Nenhum partido, por mais compromissos que tenha com a ética republicana, está livre da ocorrência de casos de corrupção. O que diferencia os partidos em seu compromisso com a ética republicana é a postura pública assumida quando se descobrem casos de corrupção em suas fileiras. A conivência, a desresponsabilização, a condescendência são inaceitáveis: a honestidade no trato do patrimônio público do povo brasileiro deve ser sagrado para o PT. Se não aceitamos em geral a máxima que o número de votos conferido a um político acusado de corrupção o anistia dos erros cometidos, não podemos aplicar este preceito dentro do PT. O partido deve à sociedade democrática brasileira a renovação, prática e de princípios, de seus compromissos com a ética republicana.

Formação política

13- O trabalho de formação política é essencial para que o PT se capacite para liderar a revolução democrática. Num partido plural, que não tem ideologia oficial, o trabalho de formação deve necessariamente contemplar a diversidade de opiniões existente no interior do PT. Num país com as dimensões continentais do Brasil, em um partido com quase um milhão de filiados, o trabalho de formação política não pode se reduzir à realização de atividades e cursos centralizados a nível nacional ou estadual, por mais importantes que estes sejam. Para alcançar o conjunto dos filiados, e particularmente os dirigentes partidários de base espalhados por todo o país, é necessário que seja incentivada a produção de materiais, como cartilhas e DVDs, que possam ser amplamente distribuídos à base partidária, bem como que se utilize as novas tecnologias, como a internet, para a realização de atividades a distância.

14- A Fundação Perseu Abramo vem realizando um importante trabalho de investigação da realidade brasileira, de produção de materiais que subsidiam o trabalho de formação política do PT e de articulação dos intelectuais do campo progressista. No entanto, cabe a ela, em conjunto com a direção partidária, desenvolver esforços no sentido de ampliar o alcance de sua atuação, seja no que toca à sociedade em geral seja no que toca às bases partidárias.

Atualizar e aprofundar o socialismo democrático na cultura do PT

15- Após um período de grande pressão do neoliberalismo e de intenso pragmatismo, é preciso dar um novo impulso de raiz à presença do socialismo democrático na cultura petista. Isto implica centralmente em recriar os espaços de contribuições da esquerda intelectual do país na cultura do PT, de relação do partido com as culturas universitárias comprometidas com a transformação social, com os artistas e, principalmente, com a cultura popular brasileira. Cabe à Fundação Perseu Abramo um papel central no desenvolvimento desta tarefa. Um dos pontos chaves desta renovação da cultura socialista do PT está na relação entre a reflexão sobre as tradições socialistas, o cultivo crítico da sua dignidade, e a abertura para as inovações do socialismo promovidos  no interior da revolução democrática.

Renovar as instituições e a cultura da democracia petista

16- Desde o seu nascimento, o PT constituiu-se como um partido de raízes nacionais, mas tendo o seu eixo central de articulação em São Paulo. Com seu desenvolvimento histórico, ampliou-se a geografia do PT, com um crescimento forte em regiões como o Nordeste e a Amazônia, que não estão devidamente representadas nas esferas de poder do partido. Reconhecendo-se  a importância da contribuição de São Paulo na construção do PT, é imprescindível hoje o compartilhamento mais nacional das tarefas de direção do partido.

17- A nova realidade política e regional do partido exige que seja superada a visão de um  campo majoritário que impõe às instâncias nacionais as decisões tomadas a priori e em grupo,  para um sistema plural e democrático de direção, de construção de consensos progressivos e de acolhimento pleno da dignidade das correntes minoritárias.

18- É necessário que concomitantemente à luta pelo financiamento público de campanha se desenvolva uma nova política de finanças no interior do partido, mais transparente com relação à prestação de contas e mais democrática na aprovação e na gestão orçamentárias.

19- Os compromissos com a ética republicana devem ser aplicados no interior do partido. Para tanto, é necessário uma revisão estatutária e a aprovação de um código de ética do PT.

20- O PT inovou na política brasileira ao aprovar em seu I Congresso a política de cotas para a participação das mulheres em suas instâncias. Cabe um processo de avaliação desta experiência que permita que novas medidas sejam tomadas para impulsionar a participação das mulheres na vida política partidária.

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