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Raúl Zibechi fala da expectativa sobre o governo de Tabaré Vázquez no Uruguai

Entrevista Raúl Zibechi

Pouco mais de um mês depois da posse de Tabaré Vázquez, o Uruguai vive a experiência de ter, pela primeira vez em sua história, um governo de esquerda. A chegada da Frente Ampla ao poder provocou expectativas em todo o continente, suscitando comparações com os casos brasileiro e argentino. Para saber como começou o governo por lá, entrevistamos Raúl Zibechi, jornalista, escritor e estudioso dos movimentos sociais na América Latina. Zibechi é editor internacional do semanário uruguaio Brecha, uma das principais referências para a esquerda naquele país.

Uruguai de olho em Tabaré Vázquez

Como você avalia, de modo geral, o primeiro mês do governo Tabaré Vázquez? O que se prenuncia para o próximo período?

O novo governo entrou pisando forte. Sobretudo em matéria de direitos humanos, já que decidiu no primeiro dia entrar nos quartéis para investigar se ali haviam sido enterrados cadáveres dos presos da ditadura que são dados por desaparecidos.

Também em outros aspectos há um impulso forte para mudanças, sobretudo no estilo, na linguagem e nos modos de se comunicar com a população. Três dias depois de assumir, deu-se uma primeira crise no sistema financeiro, com o fechamento temporário de um banco cooperativo. A resposta do governo foi muito clara: o Estado não põe dinheiro para salvar bancos, marcando uma diferença muito grande com o governo Jorge Batlle.

Como se dá a relação de governabilidade de Tabaré Vázquez?

O atual governo, diferentemente do de Lula, tem maioria absoluta no parlamento, nas duas câmaras, e portanto não precisa fazer acordos nem alianças com outros partidos. Ainda assim, antes de assumir, a Frente Ampla tentou um acordo com o Partido Nacional e o Partido Colorado para chegar a um consenso em algumas matérias como educação e economia.

Tabaré foi eleito com base em um programa de mudanças. Quais as prioridades e quais as contradições deste programa?

A prioridade é o Plano de Emergência, para atender à pobreza extrema. Mas o Plano ainda não está desenhado, só se conhecem aspectos muito parciais. Ainda que a pobreza seja uma das prioridades, a situação do Uruguai não é tão grave como a do Brasil nem a da Argentina. Este é um país que ainda tem uma enorme classe média – em decadência, mas com recursos culturais e materiais para evitar os aspectos mais terríveis da miséria.

Em todo caso, a prioridade é por em pé um país de produção e não um mercado financeiro como o que sustentou os governos anteriores. A partir daí, falta um debate sobre o que se entende por país produtivo: crescer para fora ou ampliando o mercado interno? A primeira opção significaria exportar mais e mais soja transgênica, carnes e lãs. A segunda implica um desenvolvimento endógeno que representaria uma verdadeira mudança de orientação.

Assim como no Brasil, foi indicado um moderado para o Ministério da Economia (no caso uruguaio, Danilo Astori). Isso pode embargar a implantação do programa de mudanças?

Sinceramente, não vejo mudanças de grande alento. O Uruguai não é o Brasil, e aqui as mudanças não têm o mesmo sentido que aí. O que seria mudar de verdade? Seria o que mencionei antes. Ter um projeto de país, que o Uruguai ainda não tem. E sobretudo crescer para dentro, para o povo uruguaio, não para as multinacionais do agronegócio.

Mas esta virada tem duas contradições: uma externa, já que um país pequeno como o Uruguai não pode fazer uma mudança de orientação sem o apoio de seus vizinhos. A outra tem a ver com a situação interna. Mudar implica prejudicar certos setores, não só as elites, mas também setores das classes médias. Um exemplo: com o neoliberalismo, não se beneficiaram somente as elites, a burguesia, como também um importante setor de profissionais, empregados bancários, inclusive operários de alguns setores, todos eles sindicalizados e que apóiam a esquerda.

Ou seja, o problema de fundo é que há duas esquerdas desde o ponto de vista social: os que ganharam e os que perderam com o modelo neoliberal. A primeira é uma esquerda social sistêmica, a que controla a universidade, as organizações profissionais e uma parte substancial dos sindicatos. A outra ainda não se organizou. No Uruguai não há, como no Brasil, movimentos sociais que representem os excluídos. E enquanto isso não acontece, as mudanças não virão.

Uruguayans cheer as President Tabare Vazquez passes through the center of Montevideo, soon after he was sworn in to office, March 1, 2005. Vazquez was sworn in to head the first leftist government in Uruguay's history. REUTERS/Enrique Marcarian
Mirando o futuro. População nas ruas de Montevidéu assiste à posse do novo presidente, no início de março.

O Uruguai tem uma das maiores proporções dívida/PIB, o que se apresenta como um complicador. Como o governo Tabaré Vázquez vai lidar com esta condição?

O Uruguai deve mais do que o PIB anual, algo como 110%. Isso é totalmente impagável. Quando houve oportunidade de fazer uma reestruturação, como na Argentina, não se fez, e o atual ministro da Economia apoiou essa ação do governo anterior.

Agora, seguindo o exemplo argentino, busca-se fazer alguns arranjos: baixar as taxas de juros, alargar os prazos de pagamentos, e alguns outros. No entanto, isso não aborda o problema de fundo, que é o fato de a dívida ser impagável. A médio prazo, inclusive Argentina e Brasil enfrentarão problemas para pagar, já que tudo depende de que não haja grandes alterações na economia mundial. Ou seja, que não se interrompa o fluxo de exportações, nem o fluxo de capitais etc. Essas políticas nos fazem cada vez mais dependentes do que acontece no mundo, o que agrava nossa vulnerabilidade.

Como se darão as relações com o Brasil?

As relações com o Brasil serão boas, ou pelo menos tão boas quanto podem ser numa situação de grande debilidade do Mercosul. Reparem que ainda que Lula e Kirchner tenham excelentes relações, não conseguem chegar a um acordo em temas elementares como Mercosul. Há diferenças estruturais que não se modificam somente com boa vontade, senão liberando nossos governos da influência das multinacionais. As relações comerciais entre Brasil e Argentina estão atravancadas por essas por essas lógicas, e assim nunca sairemos à frente.

Há também uma questão delicada: o Brasil participa na integração regional em pé de igualdade ou pretende subordinar o resto dos países à burguesia paulista? Isso me parece fundamental, sobretudo para os que não somos brasileiros e lembramos como nos anos 60, durante a ditadura militar, falávamos aqui do “subimperialismo brasileiro”. O Brasil é o único país da América Latina que tem uma burguesia que não é uma burguesia nacional, mas uma burguesia que mora no Brasil e que explora brasileiros porque é o campeão mundial da desigualdade. Então, devemos discutir se fazemos uma integração regional sob medida dos povos ou das elites.

Como se portará o movimento social uruguaio frente às contradições que surgirão no governo Tabaré Vázquez?

Não podemos falar de um movimento social. Por um lado, o movimento não foi muito ativo na crise de 2002. A Frente Ampla chega ao governo no período mais baixo, de maior refluxo. Nisso é quase uma fotocópia do Brasil.

Contudo, o principal é que a exclusão urbana é muito recente, dos anos 90, e ainda não surgiu um novo movimento dos excluídos. Aqui não existe algo como o MST ou os sem-teto. Enquanto o velho movimento sindical mostrou seus limites como força das mudanças, não nasce uma substituição que deve ser o movimento dos SEM – os que não têm nada a perder, como dizia Marx. Dessa forma, estamos em um período de transição, de refluxo e de substituição. Não será fácil, é uma das debilidades que temos.

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