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Reflexões sobre a revolução: de 1959 até hoje

Fonte: Agencia Nodo Sur
Tradução: Lúcio Costa

SENHOR ALONSO, O QUE MAIS CRITICA EM SEU PAÍS?

As coisas que mais critico são as relacionadas com a estrutura da economia, as limitações e o estancamento do processo de aperfeiçoamento democrático da institucionalidade do Poder Popular e a necessidade de encontrar uma democracia socialista, tema no qual tenho a impressão de que Cuba vai ficando para trás em relação aos demais esforços latinoamericanos: Venezuela, Equador e Bolívia, principalmente. Se logram obter êxito, se lançam raízes e continuam avançando, Cuba pode ficar à retaguarda apesar de ser a experiência socialista pioneira em nossa América e de haver contado com duas figuras notáveis como são Che e  Fidel.

PODES FALAR UM POUCO DO PODER POPULAR CUBANO?

O sistema do Poder Popular cubano buscou diferenciar-se do soviético com elementos de participação popular que aquele não possuía. Todavia, para além disso não avançou, são muito poucos e funcionam somente nas esferas de base. É um sistema demasiado centralizado administrativamente, no qual os municípios carecem de recursos próprios de domínio sobre a economia local. Existem políticas muito democráticas como, por exemplo, a eleição desde a base, sem a intervenção de partidos e outras instituições, de delegados nas assembléias municipais, o que não tem equivalente na forma de eleição da Assembléia Nacional do Poder Popular. Por outro lado, os municípios não possuem nenhum poder, nenhum poder! Não tem nenhuma capacidade resolutiva. Os delegados municipais se tornam vítimas do sistema político.

Quando eu escrevo estas críticas, elas não são publicadas. Eu critico o Partido, que é o meu Partido, e do qual não pretendo ir-me, porque acredito que vivo com lealdade meu compromisso militante. Faço a crítica dura desde dentro e não de fora. O Partido tem que mudar, democratizar-se também como partido se deseja manter-se como regime de partido único – o que não é tão relevante como desejamos acreditar. O importante não é tanto que o partido seja único, mas sim que se constitua com coerência uma vanguarda, coisa que acredito que nem sempre somos. Somos outra coisa.

Existem artigos meus em que digo tudo isso e que trato de publicar-los aqui e se não posso, faço fora, através de livros e outras formas. Mas minha intenção sempre é que publiquem aqui. O poder da censura quem exerce é o político, nunca o intelectual, que quando assume cargos de poder corre o risco de transformar-se.

OS CHAMADOS “COMUNISTAS VELHOS” TÊM INFLUÊNCIA SUFICIENTE PARA PARALISAR TODO UM PROJETO INTELECTUAL PROGRESSISTA QUE CADA DIA CRESCE MAIS EM CUBA?

Sim, têm todo o poder. Além disso, na reciclagem que vem se dando com a passagem do poder de Fidel a Raul, o que tem sido feito até agora é levar ao primeiro plano de direção a personagens mais velhos que ainda mantém o discurso dos sessenta. Parece que não se aprecia positivamente a necessidade de renovação geracional.

GRAZIELA POGOLOTTI FALA, EM SUA ANTOLOGIA “POLÊMICAS CULTURAIS DOS SESSENTA”, DE UM DEBATE SOBRE OS MANUAIS SOBRE MARXISMO. ESTES DEBATES APORTAM ALGO PARA A REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE A REVOLUÇÃO CUBANA HOJE EM DIA?

Acredito que o debate existiu e segue existindo. Aqui seguem publicando coisas, apesar de que os órgãos de imprensa cubanos seguem sendo tutelados oficialmente. O Partido tem esta política amparada no guarda-chuva de que a Revolução tem que se defender dos ataques. Isso dito dessa forma parece justo. No entanto, quando analisas, acabas por te perguntar o que é definível como “ser contra” e, onde está a fronteira do “contra”. Neste momento, começas a dar-te conta de que os que administram a política movem a fronteira do “contra” até onde eles querem e te estreitam a fronteira até onde desejem.

EM FINS DOS ANOS SESSENTA DO SÉCULO PASSADO EM CUBA TEVE INÍCIO UM PERÍODO QUE MARCOU DE MANEIRA NEGATIVA OS ANOS SEGUINTES AO ASSASSINADO DE CHE EM 1967.

Acredito que te referes ao que Ambrosio Fornet batizou como o “Qüinqüênio Cinza”. Na realidade não foram cinco anos, salvo no sentido persecutório que imprimiu a gestão, infelizmente, dogmática de alguns funcionários. O prazo qüinqüenal faz referência ao campo da criação literária e artística, o que ocorreu guardava correspondência com o que ocorria no campo do pensamento.

No entanto, noutro plano, no da restrição ideológica ao estilo soviético, chegou a abarcar duas décadas. No terreno da criação, penso que havia dois projetos: um defendia o realismo socialista e outro propunha uma abertura menos limitada nas formas de produzir arte, o qual dialogava com muitos setores: o cinema, a criação literária, as artes plásticas.

O ICAIC (INSTITUTO CUBANO DEL ARTE E INDUSTRIA CINEMATOGRÁFICOS) SEMPRE FOI UMA INSTITUIÇÃO QUE TEM PODIDO, ATÉ HOJE EM DIA, MANTER UMA POSIÇÃO MAIS OU MENOS INDEPENDENTE…

Sim, graças a isso se converteu desde cedo no “espinho na garganta” para o Conselho Nacional de Cultura e o aparato que controlava a cultura e a educação no Partido. O atacaram com muita força. E, em boa medida, graças à sua capacidade de resistência, o “Quinquênio” foi apenas um quinqüênio.

Alfredo Guevara teve a capacidade e a valentia de enfrentar tudo isso – junto com outras pessoas, mas, sobretudo ele – e de contribuir para que se nomeasse o ministro de Cultura –,  ao institucionalizar-se uma estrutura estatal vazada em moldes soviéticos em 1976. Não conforme o previsto, um “velho comunista” que iria sistematizar o realismo socialista com toda segurança, mas sim, a Armando Hart Guevara soube evitar uma padronização do pensamento e da criação cultural.

Ambrosio Fornet fala em “Quinquênio”, e o chamam “Cinzento” porque, em realidade, ninguém foi assassinado. Não foi a experiência estalinista na qual, dependendo do estilo do chefe dos órgãos de segurança que designava Stalin, ou te retiravam de cena durante uma época ou te fuzilavam.

Não sofremos uma repressão policial sistemática. Ocorreram casos extremamente lamentáveis, como o de Herberto Padilla, que, em 1971, foi encarcerado por haver publicado um livro de poemas supostamente antirrevolucionário. Mas casos como esse foram poucos. Não ocorreram como norma.

Penso que nem para o Kremlin, ou para o politburo soviético e tampouco para o bureau político cubano, era tão importante que na criação cultural dominasse o “realismo socialista”. A influência de Alfredo, somada à de Hart como primeiro Ministro de Cultura, foi decisiva. Mas não podiam incidir no campo da ideologia, no marco dos anos setenta e oitenta era impossível retificar.

Coisa distinta representava o terreno da ideologia. Daí que no terreno da  doutrina marxista não tenha existido uma abertura. A doutrina tocava a política e em política também iria se desenvolver uma tendência crítica em relação ao sistema, desde dentro do sistema. Por isso, repito, para a ideologia não houve um “Quinquênio Gris”, mas sim, foram duas décadas.

FALEMOS DE SEUS TEMPOS COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UNIVERSIDADE DE HAVANA QUANDO UM GRUPO DE JOVENS SE UNIU PARA BUSCAR UMA NOVA VISÃO DO MARXISMO.

Começamos a desenvolver uma crítica dos manuais soviéticos e a mudar, a experimentar estas mudanças nos programas de ensino de marxismo, chegando a um processo de maturação que culminou no ensino de um currículo de história do pensamento marxista em lugar de um programa de filosofia marxista, ou seja, de materialismo dialético e histórico.

Nós buscamos mudar aquela concepção doutrinária. Pensávamos que era mais importante ensinar qual havia sido o contexto histórico de Karl Marx e de Frederico Engels; qual havia sido sua história pessoal, como através de seus acertos e frustrações chegaram à doutrina; em que coisas essa doutrina estava presa a sua época e no que seguia evoluindo; o que aconteceu depois que eles morreram; o que ocorreu e por que a Rússia chegou a converter-se em centro revolucionário da Europa; que papel desempenhou Lênin como gênio político e criativo dentro da tradição marxista; qual foi o papel de Trotsky – teve um grande papel – e de outros.  Chegamos também à Revolução Chinesa, a perguntar-nos qual o papel sobre o papel de Mao e de Fidel Castro e da Revolução Cubana. Era esse marxismo que ensinávamos e que tratávamos de confrontar com o ensino dos manuais soviéticos.

COMO SE DEU ESTA CONFRONTAÇÃO?

Havíamos tido vários confrontos, debates nas reuniões com professores. Em uma dessas reuniões, esses professores nos dizem que iriam publicar um artigo em sua revista criticando nossas posições. Naquela época havia várias revistas. As escolas do Partido tinham uma revista teórica que se chamava “Teoria e Prática”. Nós tínhamos uma que se chamava “Pensamento Crítico”. Nacionalmente, a revista deles tinha maior circulação que a nossa, mas nós tínhamos muito mais articulação na América Latina, era a revista mais procurada. Havia ainda outras revistas.

Em função desse artigo crítico, pergunto-lhes se publicariam em sua revista uma crítica minha ao artigo. Eles se viram obrigados a dizer que sim e, quando o tive pronto, publicaram. Aí começou uma polêmica, que ao final interrompi porque senti como caminhar em um terreno minado. Essa polêmica sobre os manuais de filosofia teve muito impacto, sobretudo na França e na Alemanha, foi publicada por Hans Magnus Enzensberger en Kursbuch, n. 18 de 1969, dedicado a Cuba, à Revolução.

Logo depois ocorreu o fechamento de “Pensamento Crítico” e do grupo de filosofia que adotava um marxismo antimanualista.

E COMO É SUA SITUAÇÃO HOJE EM DIA?

Eu publico o menos possível na revista “Casa das Américas” porque é a revista que faço; nela publico resenhas e outros textos similares. Quanto a meus textos mais críticos, prefiro não publicá-los na revista da “Casa”, pois não me agrada que se acredite que me aproveito de minhas responsabilidades na revista com essa finalidade. Além disso, não quero comprometer sua linha editorial, pois “Casa das Américas” não é uma revista ideológica nacional, não é uma revista para discutir sobre o socialismo em Cuba. Em varias ocasiões tenho mandado textos para publicações que têm se negado a publicá-los. Quando insisto, às vezes, me responde alguém amavelmente: “Aurélio, teu artigo é bom, mas o problema é que tu fazes críticas a temas muito delicados”.

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