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Teses sobre a questão internacional

Num contexto de crescentes dificuldades do imperialismo estadunidense, é na América Latina que têm surgido os processos políticos capazes, a uma só vez, de questionar a ordem mundial imposta pelo imperialismo dos EUA na saída da “Guerra Fria”; e apontar para a superação do neoliberalismo, retomando a perspectiva pós-capitalista, socialista.

Nos quase duzentos anos em que nossa região tem vida como nações independentes, esta conjuntura é a mais alvissareira em termos de seu potencial emancipador. No primeiro ciclo (1810-30), nossos países conquistaram sua independência política “formal”, mas ficaram presos à dominação econômica do imperialismo ascendente – o da Inglaterra. No segundo ciclo (1930-50), houve esforços pela industrialização, mas acabaram se esterilizando na estratégia do “desenvolvimento associado” ao imperialismo – fundamentalmente, o estadunidense. Houve ainda um terceiro ciclo aberto pela revolução cubana (1959), que, no entanto, não conseguiu superar o cerco de sangue e repressão que as oligarquias e os governos dos EUA impuseram à região através das ditaduras militares.

Cenário novo

As novidades do processo atual são: acontece em vários países latino-americanos ao mesmo tempo; envolve algumas das principais economias da região (Brasil, Argentina, Venezuela); e suas forças motrizes (governos, partidos, movimentos sociais) compartilham um campo político comum. Como em outros momentos históricos similares, neste, há também um elemento econômico propiciador: a alta conjuntural dos preços de matérias-primas e recursos energéticos existentes na região. Há um forte sentimento nacional de que é justo que nossas sociedades se beneficiem mais dessa vantagem – o que não é possível sob o programa neoliberal e a dominação imperialista.

Falamos de uma conjuntura e um processo regional, mas isso não deve ocultar que estamos falando de países e processos nacionais que têm profundas diferenças (não estamos discutindo aqui o caso cubano, que vem do ciclo anterior, mas que está em estreita aliança com os atores principais do atual):

– Brasil e Argentina são economias semi-industrializadas complexas e têm burguesias locais mais fortes e enraizadas que países como Venezuela, Bolívia e Equador, nos quais o Estado tem condições de controlar a principal atividade econômica (exploração de hidrocarbonetos, minérios, etc.), a qual suas burguesias parasitam.

– Esses processos políticos tiveram diferentes pontos de partida. Em alguns – Brasil, Uruguai, Nicarágua -, foram vitórias eleitorais em um ambiente de normalidade institucional. Em outros – Venezuela, Argentina, Bolívia, Equador -, as conquistas nas eleições foram precedidas e pavimentadas por profundas crises institucionais.

– Há casos em que as forças motrizes estão claramente lideradas por partidos políticos constituídos há tempos – Brasil, Uruguai, Nicarágua -, enquanto, em outros, a liderança do processo não é dos partidos – Venezuela, Equador, Argentina. Se analisarmos esses casos nacionais pelo viés das relações entre governo, partido(s), movimentos sociais e participação popular, teremos outro tanto de diferenças. Também são diferentes as perspectivas do desenvolvimento de formas participativas de poder.

– No Brasil, na Argentina e na Nicarágua, conquistou-se a presidência, mas não uma maioria no parlamento. Em conseqüência disso, a questão da governabilidade coloca o dilema de como conseguir maiorias legislativas. Na Venezuela, no Uruguai e na Bolívia, os setores progressistas conseguiram ambas. Junto com o problema da maioria eleitoral vem o da relação com as classes médias, conceito vago que abrange tanto profissionais liberais, empresários médios e pequenos e até setores da classe trabalhadora com melhores níveis de remuneração. Em processos anteriores (Cuba, 1959 e Chile, 1970), o imperialismo estadunidense manipulou amplamente o caráter ambíguo das classes médias (inicialmente democráticas, mostram pavor frente à emergência política dos setores populares mais pobres).

A tentativa – realizada simetricamente tanto por analistas conservadores como por setores esquerdistas – de “blocar” as experiências por meio de dicotomias do tipo “revolucionários X reformistas” ou “atrasados/populistas X modernos/adaptados neoliberais” impede a compreensão correta da situação e, se levada a sério, bloquearia o processo e não o desenvolveria.

Em todos os casos citados, observam-se melhorias nas condições de vida da população. Por isso, o eleitorado tende a propiciar sua continuidade (na esteira dessa tendência, Chávez e Lula foram recentemente reeleitos).

Integração necessária

O elemento que reúne todos esses processos é a necessidade da integração regional. Somente a complementaridade entre todos esses países poderá criar as condições para que se desenvolva uma dinâmica de superação do neoliberalismo e da dependência, para que se enfrente o imperialismo com chances de vitória, e se estabilize um projeto alternativo. A integração regional pode somar as capacidades técnicas e científicas dos setores de trabalhadores mais especializados, a base tecnológica e industrial construída nos períodos anteriores (sobretudo de Brasil e Argentina), a enorme disponibilidade de recursos naturais e energéticos, criando um bloco econômico e político em condições de afirmar uma política própria.

Defendemos que, para ser conseqüente, a luta pela superação do neoliberalismo e da dependência, bem como a luta para derrotar o imperialismo, têm de ter uma perspectiva socialista. Contudo, a maneira como essas dimensões vão se combinar dependerá de cada processo nacional, suas peculiaridades, suas forças motrizes, sua história.

A questão-chave para que o atual ciclo de lutas por emancipação nacional e social tenha êxito é a construção de um amplo movimento político e social em âmbito regional. Temos as ferramentas iniciais para isso, elas foram construídas no período anterior, na resistência. No plano partidário, o Foro de S. Paulo vem, desde 1990, reunindo um amplo leque de partidos progressistas e de esquerda, e inclui todas as forças políticas que impulsionam os processos acima citados. No Fórum Social Mundial/Fórum Social das Américas, têm-se reunido também os mais diversos setores sociais (e parlamentares e autoridades locais) que rechaçam o neoliberalismo.

Em ambos os casos, no entanto, faz-se necessário ir além da cultura de fóruns, de funcionamento de tipo “espaços” (aberto, como o FSM/FSA ou delimitado, como o FSP), para um grau de aprofundamento dos debates, das convergências concretas e dos compromissos sobre um programa e uma agenda de lutas. Redes e movimentos continentais (Via Campesina/CLOC, Marcha Mundial das Mulheres, Aliança Social Continental/Campanha Continental contra ALCA, ORIT/Fórum Sindical das Américas, etc.) apontam para essa direção.

Porém, devem-se descartar tentações que esterilizaram o internacionalismo no século passado. Não há nem deve haver “partido-guia” ou “país-farol”. A construção deve ser de uma direção política coletiva e compartilhada, respeitosa dos diversos ritmos e da diversidade político-ideológica que compõe esse ciclo.

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