(Algumas palavras para dirigir-me sobretudo às juventudes militantes das esquerdas. Recupero aqui reflexões de outros textos que escrevi sobre o Partido dos Trabalhadores que se encontra, há 42 anos de sua fundação, diante do maior desafio de sua história.)
Pedro Tierra
O fato político central nos últimos quarenta anos do conflito de classes na sociedade brasileira é a existência do Partido dos Trabalhadores.
Nessa sociedade criminosamente desigual é em torno desse fato – a existência do PT – que se posicionam, há mais de quatro décadas, à direita e à esquerda, as forças políticas relevantes do Brasil.
De um lado, os interesses dos segmentos sociais que pretendem por todos os meios, manobras e golpes, utilizar as instituições para perpetuar a estrutura de “apartheid social” e submissão colonial herdada da escravidão que caracterizam secularmente a sociedade brasileira.
No polo oposto, os atores sociais que buscam mobilizar a vontade popular, materializada em suas organizações, com o propósito de romper uma estrutura de privilégios que concentra 50% da renda nacional nas mãos de 1% da sociedade.
Milhares de mãos e sonhos de uma militância incomparável construíram um instrumento contemporâneo de luta democrática: um partido político que cumpre, nesse 10 de fevereiro, 42 anos de fundação.
Não se trata, portanto, apenas de recuperar a trajetória de mais de quatro décadas, desse Partido, desde o ponto de vista dos assalariados e de amplos setores marginalizados da sociedade. Trata-se de constatar uma realidade percebida a partir da visão do conjunto das forças que se movem contra ou a favor na disputa, para definir os rumos do desenvolvimento e do resgate da democracia no Brasil, sequestrada pelo golpe de 2016 e pela fraude eleitoral de 2018.
O PT constituiu-se, todos sabemos, como o estuário das forças políticas mais profundamente comprometidas com a resistência à ditadura militar – de 1964 a 1988, quando voltamos a contar com uma Constituição democrática – a partir das lutas concretas do movimento operário, dos trabalhadores do campo, dos movimentos reivindicatórios das periferias das cidades e das lutas dos negros, dos jovens e dos movimentos culturais.
Uma força social articulada a partir da base da sociedade, dos sindicatos, das associações populares, das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, de segmentos evangélicos tradicionais (Luteranos, Metodistas, Presbiterianos), dos intelectuais dentro e fora das universidades, dos movimentos das diversas linguagens artísticas em permanente luta contra o tacão da censura e em favor da liberdade de expressão.
O PT atuou de forma relevante – em certos momentos, de forma decisiva – em todas as mobilizações populares em defesa da democracia. Nas lutas por reforma agrária, por liberdade e autonomia sindical, condições dignas de trabalho, defesa e ampliação do poder de compra do Salário Mínimo, pelas “Diretas Já!”, em favor da Constituinte Livre e Soberana, nas mobilizações pelo “Fora Collor”, pelo não pagamento da Dívida Externa e a campanha contra a ALCA.
O Partido dos Trabalhadores desde as origens, entendeu como riqueza a diversidade das experiências das esquerdas que concorreram para sua construção. Soube constituir-se como um pacto político e não como um pacto ideológico atado a uma doutrina previamente definida. Essa flexibilidade foi a condição para assegurar o êxito na tarefa de organizar e representar um conjunto tão complexo de segmentos de uma classe trabalhadora heterogênea, submetida a uma multiplicidade de formas – das mais arcaicas às mais modernas – de exploração econômica, controle político e dominação cultural por uma elite patriarcal, filha da pilhagem e do tráfico negreiro.
O PT definiu-se, ao nascer, como uma força política radicalmente democrática e aprendeu no conflito interno das diferentes perspectivas que abriga, a aprimorar sua estrutura de forma a garantir a maior participação dos militantes, nas lutas para construir: “uma sociedade igualitária, onde não haja explorados e nem exploradores”, como está inscrito no seu Manifesto de fundação.
Distanciou-se da ortodoxia dos partidos comunistas e socialistas que o precederam ao estabelecer a proporcionalidade de representação das minorias nas instâncias de direção, ao criar as cotas de representação e constituir setoriais e secretarias das mulheres, negros e jovens, LGBTQIA+ nos seus diretórios.
Em suma, atento a uma realidade social em vertiginosa mutação, abriu nos seus estatutos espaços democráticos de participação proporcional nos centros de decisão, condizentes com as exigências de um partido político socialista e democrático contemporâneo.
Ao longo de vinte e dois anos se credenciou por sua ação em todos aqueles espaços e movimentos populares, sempre sob fogo cerrado dos inimigos de classe, e se viabilizou como força capaz de organizar a vontade política dos setores assalariados da sociedade para disputar o poder, algo inédito na História do país. Algo, também, intolerável para as oligarquias herdeiras dos senhores de escravos que monopolizam historicamente, o exercício da política no Brasil.
O Partido dos Trabalhadores é, portanto, parte inseparável da construção das organizações e movimentos populares – CUT, CMP, MST, MMA, MAB…, que caracterizam o tecido da sociedade civil das camadas populares da sociedade brasileira, nessas quatro décadas. Elas se constituíram e se consolidaram como o mais importante lastro para as conquistas democráticas inscritas na Constituição de 88 e no período de lutas que se seguiu para converte-las em realidade, no quotidiano dos brasileiros, por meio de políticas públicas de inclusão social até ao golpe de 2016.
Foi capaz de faze-lo respeitando as regras fixadas por um sistema político liberal em que sempre foi minoritário. Ocupou espaços nas Câmaras Municipais e Prefeituras, nas Assembleias legislativas e Executivos Estaduais. Depois de três derrotas em disputas pela Presidência da República, sem jamais contestar os resultados, até construir uma inquestionável maioria eleitoral. E vencer.
Em 2002, seu fundador e principal liderança – Luís Inácio Lula da Silva – subiu a rampa do Palácio do Planalto tendo ao lado um grande empresário do setor têxtil, o mineiro José Alencar. Negava na prática a pecha de sectarismo que a mídia corporativa sempre lhe imputou.
Encarnavam, os dois, uma aliança entre os setores mais avançados dos movimentos dos trabalhadores e um segmento do empresariado comprometido com um projeto de desenvolvimento ancorado na soberania nacional, distribuição de renda e consolidação de um forte mercado interno de massas no Brasil.
Esse Partido liderou a frente que governou o país de 2002 a 2016, tendo elegido por duas vezes consecutivas a primeira mulher, Dilma Rousseff, Presidenta do Brasil, que sucedeu Lula, deu sequência a sua políticas de governo e ampliou em alguns aspectos seu alcance.
Em pouco mais de uma década, o PT pôs em marcha um programa de reformas que mudou a face do país. Reformas voltadas para o combate à fome, à pobreza, com uma política de recuperação do poder de compra do salário mínimo, pela redução das desigualdades regionais, com investimento em educação, pesquisa, sustentabilidade ambiental, criação e ampliação das políticas públicas de saúde que resultaram na inclusão social de vastos setores da população marginalizada, como nunca ocorrera na história do Brasil. Desmistificou a falácia de que a esquerda não tinha capacidade para governar.
O Partido dos Trabalhadores foi atravessado pela revolução tecnológica dos últimos trinta anos. Mudança suficiente para varrer as relações de trabalho modeladas nas grandes plantas industriais que lhe deram origem.
Tem diante de si o desafio de decifrar essa revolução tecnológica que pulverizou a classe trabalhadora, submetida agora ao empregador invisível e à demolição do conceito de jornada de trabalho vigente desde o nascimento da indústria.
O desafio de expressar diante do conjunto da sociedade os interesses de uma nova classe trabalhadora atônita, submetida aos critérios robotizados dos aplicativos, da uberização utilizados contemporaneamente para radicalizar os processos de exploração do trabalho.
Esse Partido, maduro, provado nas lutas sociais e nas experiências de governo tem diante de si a responsabilidade de recuperar o legado que construiu e, ao mesmo tempo, reconhecer os limites que se impõem ao seu projeto de transformação, uma sociedade muito mais complexa do que aquela que lhe deu origem.
Movendo-se em círculos, ao longo do século XX, o Brasil ainda se debate para resolver, na terceira década do século XXI(!), às vésperas do bicentenário de sua primeira independência, o desafio de se afirmar como nação autônoma.
Celso Furtado formulou os termos dessa equação não resolvida. A soberania nacional depende fundamentalmente do grau de democratização real do Estado brasileiro. Considerando que as classes dominantes brasileiras não guardam compromisso com a democracia e tendem historicamente a uma consciência liberal cosmopolita desprovida de um projeto de nação, a resolução da questão democrática ganha centralidade no processo.
Há poucos anos, em 2011, sob o governo Dilma, o Brasil chegou a ser a sexta maior economia do mundo. Em 2021 foi remetida para 13a posição. Para um país que abriga hoje cerca de 211 milhões de habitantes, ocupa o quinto maior território, entre as nações, detentor reconhecido de vastos recursos naturais, e com uma planta industrial diversificada, não é compreensível, nem defensável. É necessário apontar as responsabilidades das elites antidemocráticas pela perpetuação desse estado semicolonial em que patina o Brasil.
A irrefutável vitória de Lula sobre seus perseguidores da operação lava-jato, consagrada pelo STF há um ano e agora arquivada pelos tribunais, a restituição tardia dos seus direitos políticos esbulhados pelo conluio entre o então juiz da 13a Vara de Curitiba e a quadrilha de procuradores liderados por Dallagnol, produziram, ao longo de 2021, uma reviravolta no cenário político do país.
Passados seis anos desde o golpe de 2016, as sondagens de opinião hoje projetam o ex-presidente Lula como favorito nas eleições de 2022 depois de perseguido, caluniado e levado ao cárcere por 580 dias para impedi-lo de disputar as primeiras eleições presidenciais depois do golpe de Estado, em 2018.
As mesmas pesquisas indicam o Partido dos Trabalhadores, igualmente criminalizado pelos oligopólios de comunicação a serviço das elites econômicas, como a legenda preferida de 28% dos eleitores brasileiros. Significa basicamente que os golpistas não conseguiram romper o laço entre o PT e os segmentos populares que lhe deram sustentação ao longo de quatro décadas.
Em 2022, o Partido dos Trabalhadores está desafiado a pôr-se à altura histórica do seu líder. Não pode ater-se a uma leitura burocrática do que está em jogo, a uma leitura de que se trata de uma simples troca de gerência. O Partido e sua militância devem estar preparados para uma disputa de poder real.
Aos movimentos que Lula desenvolve nos últimos meses para a composição de um vasto campo de oposição ao governo Bolsonaro, arrancando apoios ao centro e à direita, para isolar a extrema-direita, deve corresponder um conjunto de iniciativas da direção do Partido, muito além da mera afirmação do programa de mudanças anti-neoliberal – ancorado no combate à fome e à miséria, e no compromisso de reincluir o povo no orçamento público – a ser apresentado à sociedade.
Para não frustrar a ampla base popular que Lula desperta hoje no Brasil, com sua autoridade e capacidade de mobilização, é necessário ir muito além do objetivo de derrotar eleitoralmente o energúmeno que ocupa o Palácio do Planalto.
A simples derrota eleitoral de Bolsonaro, por importante que seja, não resolve por si só os gravíssimos problemas econômicos, ambientais, políticos, sociais, culturais e sanitários – agravados pela política genocida frente à pandemia da covid-19 – com que a base da sociedade brasileira, que buscamos representar, se viu confrontada desde o golpe de 2016.
Será necessário resgatar o Brasil sequestrado pela agenda neoliberal – teto de gastos, reforma trabalhista, privatizações, reforma da previdência, política de preços da Petrobrás – imposta ao país pelo governo golpista de Michel Temer e pelo governo neofascista do capitão-farofa. O Partido dos Trabalhadores deve se posicionar entre os principais instrumentos políticos desse resgate.
Mais do que nunca, o PT deve cumprir durante a campanha de 2022 e, em caso de vitória, dentro de um governo de coalizão como se desenha, o papel de educador político dos trabalhadores. Do fortalecimento dos seus sindicatos, associações e movimentos. A partir da constatação evidenciada pelo golpe de 2016 de que só a radicalização da democracia por meio da participação popular nos tornará capazes de superar o abismo em que o Brasil foi lançado pela aventura da extrema-direita.
O PT não pode se apartar de nenhuma inciativa de política pública de inclusão social e ali exercer o papel político-pedagógico que lhe cabe. Deve vincular-se estreitamente à defesa da participação popular nas decisões que dizem respeito à resolução dos problemas concretos das comunidades, da dignidade da política como método para converte-las em protagonistas a partir de baixo, da reconstrução e transformação social do país.
Será necessário apropriar-se dos conteúdos e métodos de educação popular como instrumentos permanentes de luta contra-hegemônica, para avançar na batalha de valores com a direita que detém os oligopólios de comunicação convencionais e a extrema-direita que, além das milícias digitais é a destinatária da política de montagem de arsenais bélicos operada sob o olhar indiferente das Forças Armadas, desde a posse de Bolsonaro.
As milícias de extrema-direita preparam-se claramente para contestar qualquer resultado que lhes seja adverso. Esse é o estágio em que se encontra a disputa pelos rumos do desenvolvimento do Brasil. Um país fraturado onde na prática se dissolveu o monopólio da força por parte do Estado, com a conivência de setores que constitucionalmente deveriam zelar por ele.
Quarenta anos de história cobrarão do Partido dos Trabalhadores nesse ano que se inicia, mais do que nunca “o pessimismo da razão e o otimismo da vontade”. Para reconduzir o Brasil à reconquista da democracia e, diante das ruínas herdadas pela demolição produzida pela aventura da extrema-direita, à reconstrução do projeto nacional inclusivo sustentável e soberano, capaz de devolver o bem-estar a nossa gente e recobrar, no ano do bicentenário da independência, a face altiva do país diante do mundo.
Brasília, 2 de fevereiro de 2022.
- Pedro Tierra é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.