Evo Morales é o favorito para vencer eleições, mas pode de novo ser vítima do sistema eleitoral boliviano, que coloca nas mãos do Congresso o segundo turno, se nenhum dos candidatos obtiver 50% dos votos. Morales pode ganhar no primeiro turno e não ser eleito pelos parlamentares. A análise é do colunista Emir Sader.
A Bolívia é um país extraordinário, sobre o qual conhecemos muito pouco ou quase nada. Passa o mesmo que com o Uruguai, o Equador, a Venezuela, a Colômbia, a Guatemala, o Haiti – para não ir mais longe. Ganharíamos muito em conhecê-los, para conhecermos melhor a nós mesmos.
A Bolívia foi o cenário de uma extraordinária revolução, em 1952, que realizou a reforma agrária, nacionalizou as minas de estanho, acabou com o exército e o substituiu por milícias populares – fenômeno que é totalmente desconhecido dos nossos livros escolares e da mídia brasileira. No entanto foi o processo revolucionário mais importante depois da revolução mexicana e antes da revolução cubana.
Mais adiante, em 1971/72, a Bolívia foi o palco de uma Assembléia Popular, com representação direta dos trabalhadores do campo e da cidade, que começou a colocar em prática um processo profunda de reformas no país, até ser derrubado por um golpe militar similar aos que vitimaram os outros países do cone sul latino-americano.
Temos de novo excelente oportunidade de conhecer a Bolívia, pelo acontecimento político mais importante no que resta do ano para o continente – junto com a adesão formal da Venezuela ao Mercosul: as eleições presidenciais de 18 de dezembro deste ano. Como resultado de uma prolongada crise do país, que passou pela derrubada do último presidente eleito – Sanchez de Losada -, assim com do seu vice, Carlos Meza –, embora tivesse se iniciado com a luta vitoriosa dos camponeses bolivianos que, em 2000, impediu a privatização da água. Conscientes da sua força, os movimentos sociais passaram a lutar por uma política soberana também na área da exploração dos hidrocarburos, por uma Assembléia Constituinte e por um governo popular e democrático.
Ao longo dessas lutas, foi se fortalecendo o movimento popular – de camponeses, indígenas, trabalhadores urbanos -, desenvolvendo-se um partido de esquerda – o MAS, Movimento ao Socialismo -, dirigido pelo líder cocalero Evo Morales. Morales já havia concorrido à presidência, nas eleições anteriores, em que foi para o segundo turno, mas foi derrotado, pela maioria direitista no Congresso, que elegeu a Sanchez de Losada.
Desta vez Evo Morales é favorito, mas pode de novo ser vítima do sistema eleitoral boliviano, que coloca nas mãos do Congresso o segundo turno, se nenhum dos candidatos consegue obter 50% dos votos. Na eleição passada, Morales e Sanchez de Losada foram ao segundo turno. Quem olhasse para a cara de Morales, totalmente similar às feições da grande maioria do povo boliviano – além da sua linguagem, dos seus valores, dos interesses que representa – e olhasse para o sotaque de gringo de Sanchez de Losada, sua pele branca, das minorias do país, o programa neoliberal que havia implementado anteriormente e a promessa de retomá-lo, poderia imaginar que a vitória do candidato do MAS era segura. Pois deu o contrário: uma esmagadora vitória de Sanchez de Losada. Como também se poderia imaginar, durou pouco o seu governo, derrubado pelo movimento popular boliviano.
Evo Morales pode ganhar no primeiro turno, mas não ver seu triunfo reconhecido pelo Congresso, para cuja eleição corre muito dinheiro na campanha, especialmente da burguesia de Santa Cruz de la Sierra, que prega o separatismo dessa região – a mais rica da Bolívia. Além das ameaças que provêm das tropas dos EUA no Paraguai, que voltam seus alvos para a Bolívia e seus hidrocarburos, em que não puderam colocar as mãos.
O Brasil deve ter um papel importante na garantia do respeito da vontade dos bolivianos. Evo Morales visitou o Brasil e esteve com Lula e com representantes do Ministério de Relações Exteriores, recebendo garantias nesse sentido. Os movimentos sociais e a esquerda brasileira, assim organizações que se preocupam com a legitimidade dos sistemas políticos no continente, devem estar presentes no dia 18 de dezembro na Bolívia, para zelar pela transparência do pleito e pela garantia de triunfo do candidato a quem o povo boliviano decidir entregar a direção do país. Em uma hora crucial para a integração da região, com a expansão do Mercosul e a fundação da Comunidade Sulamericana de Nações, a eleição de um governo boliviano com amplo respaldo popular é fundamental para o futuro do continente.