“Sou: estou e canto”
– Thiago de Mello –
Até meados do século XIX, as manifestações massivas de rua protagonizadas pelos trabalhadores e desvalidos se realizavam com o objetivo explícito de derrubar o regime vigente. Não tinham hora para terminar, enquanto o objetivo não fosse alcançado. Era comum o ataque às vidraças de lojas, cafés etc. A situação começou a mudar no momento em que as classes subalternas perceberam ser factível obter vitórias eleitorais, embora a repressão capitaneada pelo Estado. Descobriu-se que a tomada do poder poderia seguir uma via pacífica. A Social-Democracia passou então a formar cordões de isolamento nas passeatas e atos contrários ao status quo para, de um lado, impedir a infiltração de agentes provocadores e, de outro, coibir o vandalismo contra o patrimônio privado ou estatal. Sob a ditadura militar no Brasil (1964-1985), os movimentos utilizavam-se de idêntico artifício por cautela.
Na revolta do Maio de 68, as mobilizações deixaram um rastro de destruição em Paris. Quarenta anos depois, os protestos de jovens dos periféricos banlieues parisienses (O Globo, 14/07/2009), convocados pela internet, quebraram as companhias de seguros de automóveis ao tocar fogo em mais de trezentos carros, em pontos urbanos nunca sabidos de antemão pela repressão policial. Esse capítulo da história dos movimentos sociais ainda hoje reaparece em países como a França e a Espanha e, no comportamento dos Black Bloc, com viés anarquista. Na Europa, suas demandas não são desqualificadas pelos meios de comunicação que, em geral, restringem-se à descrição objetiva da ira das multidões, sem emitir um juízo de valor em favor das forças de segurança na aparente desordem civil. C’est comme ça!
Em geografias autoritárias, com a mídia controlada por oligopólios pertencentes às classes dominantes, sob censura até mesmo nos períodos ditos democráticos, a cobertura jornalística toma partido por princípio contra os manifestantes. Inclusive se, estes, expõem a justa indignação em defesa da vacina frente ao genocídio da população por incúria das autoridades na pandemia, denunciando a necropolítica de um desgovernante que viola os direitos da cidadania, para a felicidade predatória do capital. “Si hay pueblo, soy contra!”, é seu lema ao desempenhar o papel de “cão de guarda da burguesia”, na expressão do revolucionário republicano Andrés Nin, ao comentar os jornais espanhóis na década de ascensão do fascismo franquista.
É o que se observou na imprensa brasileira diante das manifs ocorridas em mais de duzentos municípios no último sábado (29/05), com a bandeira-síntese “Fora Bolsonaro”. Os jornalões do centro do país simplesmente não estamparam na capa a grande virada do ano, por receio de jogar água no moinho da oposição e, de Lula, em particular. Como se as redes sociais não se encarregassem da tarefa, para maior descrédito dos veículos midiáticos convencionais na opinião pública. Coube à imprensa internacional (Estados Unidos, França, Alemanha, etc.) destacar o caráter democrático das procissões políticas que seguiram as regras sanitárias, e o crescente isolamento do Palácio do Planalto. Cachorro fazer xixi no poste não é notícia, vá lá. Contudo, o poste recusar a condição de mictório seria notícia em todo lugar…
As massivas manifestações, em oposição ao desgoverno bolsonarista, não contaram com cordão de proteção para conter possíveis depredações da propriedade. Tiveram, sim, medidas preventivas para frear a disseminação do vírus, a iniciar pelo uso obrigatório de máscaras por parte dos partícipes em reconhecimento do perigo que já produziu quase 500 mil óbitos no Brasil, dos quais um terço eram evitáveis. Trata-se de uma diferença crucial em relação ao modus operandi do verde-amarelismo, que apresenta-se em espaços públicos para declarar “Eu autorizo o presidente”. Declaração que afigura-se um cheque em branco à política genocida, fundada na estratégia de imunidade de rebanho, como se – apesar dos pesares – a doença pandêmica continuasse comparada a uma “gripezinha” pelo negacionismo.
Para além da política dual entre a esquerda e os democratas versus a extrema-direita, o perfil das manifestações revela a distinção fundamental entre uma concepção de mundo centrada no respeito à vida e, outra, marcada pelo descaso com o imperativo ético-moral do “amor ao próximo”. A primeira opção é uma demonstração radical de apreço pela humanidade. Ponto. A segunda: a) cita exemplos avulsos para corromper a ciência, cujas verdades são atestadas pela comunidade científica organizada em cada saber e; b) corrompe o espírito da religião que tem o sentido de “re-ligar” o humano ao divino para a prática do Bem. Ao estabelecer uma estúpida linha divisória entre os que temem e os que não temem desafiar a Covid-19 em aglomerações sem uso de máscaras, à revelia das consequências letais para a saúde de si e dos demais, os neofascistas imaginam-se acima dos comuns. São Supermen de quadrinhos.
“Um movimento social não pode ser reduzido à luta contra contradições”, sejam políticas ou econômicas, negacionistas ou realistas, falsas ou verdadeiras, sublinha Alain Touraine (La Voix et le Regard, 1978). Com efeito, os movimentos sociais sinalizam paradigmas de sociedade que contrapõem discricionários e igualitários, bárbaros e civilizadores como vimos no fim de semana. O bolsonarismo não será derrotado manu militari, mas pela força da civilização moderna que se acha no conhecimento, na cultura, nas artes e na empatia. – Por isso não passarão!
- Luiz Marques é professor universitário, UFRGS