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8 de março, dia de radicalizar a esperança no Brasil | Nalu Faria

As mobilizações ao redor do mundo no 8 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres, expressam a força e potência do feminismo e são uma marca contundente do seu alcance como projeto emancipador.

Essa grandeza nos conduz a olhar de forma muito aguda para a realidade vivida por nós, mulheres. De um lado, salta aos olhos como nós, mulheres, sustentamos a vida com o trabalho interminável, marcado por múltiplos afazeres simultâneos, precariedade, racismo, controles e imposições sem fim. Assim, as mulheres garantem o cuidado da vida na casa e na sociedade em geral, e atuam também na resistência aos ataques contra os territórios e às tentativas de destruição dos modos de vida.  Todo esse trabalho tem uma dimensão invisível: as mulheres estão garantindo conexões entre as pessoas, os tempos, as gerações, os conhecimentos, os afetos.

No 8 de março, expressamos a trajetória de denúncias, de resistência, de construção de respostas pelas mulheres. É cada vez mais revoltante a violência do sistema dominante, que não cabe em uma única palavra – por isso, nomeamos esse sistema como heteropatriarcal, capitalista, racista, colonialista e LGBTfóbico.

No Brasil, fizemos crescer a esperança, e agora nossos passos são para transformar o país. Estamos fortalecidas para recuperar a democracia, que sempre articulamos com a luta para derrotar o neoliberalismo e construir um projeto de país popular e soberano. Nessa trajetória, fomos protagonistas na resistência à ultradireita e na defesa de uma mudança de projeto, que se expressou em nossa presença nas lutas populares e no voto nas urnas.

Feminismo antissistêmico

Só com uma visão sistêmica poderemos entender a condição e as dinâmicas vividas pelas mulheres. Nossos corpos amortecem os impactos da crise, vivendo situações de estresse, tensões e adoecimento mental, em uma dinâmica de precarização da vida na qual se trabalha para viver e se vive para trabalhar. É uma dinâmica de imposição do mercado sobre nossas vidas e nossos corpos que provoca mais violência, mais feminicídio, mais controle, disciplinamento, racismo, pobreza e desigualdade. Para ter uma vida sem violência e perseguição, precisamos de democracia, de poder popular e valores libertários.

Não haverá democracia enquanto as corporações transnacionais ditarem como devemos viver, trabalhar e lidar com nossos corpos e sexualidades. Nós da Marcha Mundial das Mulheres expressamos essa crítica a partir de várias dimensões, como a medicalização e mercantilização promovidas pelas transnacionais farmacêuticas, que reduzem nossos corpos à reprodução e retiram nossa autonomia.

Essas lutas não se separam, estão sempre articuladas e devem ser radicalizadas pelo feminismo anticapitalista. Não há como acabar com a pobreza sem acabar com a exploração. É fundamental considerar que a exploração se dá de forma diferenciada pela divisão sexual e racial do trabalho. Essa imbricação faz com que as mulheres negras estejam concentradas nos trabalhos informais, empregos domésticos e de limpeza, sustentando uma estrutura servil de uma sociedade em que uma parte da população se desresponsabiliza pelo cotidiano.

Para alterar esse modelo, é preciso considerar a interrelação entre produção e reprodução da vida, e portanto visibilizar e reconhecer o trabalho doméstico e de cuidados realizado pelas mulheres, que garante a produção. Essa invisibilização é um dos principais mecanismos do capitalismo para ocultar o nexo econômico entre essas duas esferas.

O feminismo tem evidenciado como esse trabalho de reprodução da vida precisa ser reorganizado. Isso nos leva a questionar o modelo de produção para pensá-lo em função da sustentabilidade da vida e da natureza. Devemos nos perguntar:o que, como e para quem produzir? O novo modelo que queremos construir deve garantir a sustentabilidade da vida, colocando o bem viver no centro.

Igualdade feminista e antirracista

É muito importante aprofundarmos qual deve ser a estratégia de construção da igualdade. Não podemos cair em armadilhas, em propostas que se limitam a alterações nos marcos do modelo atual, ao reconhecimento e à representação das mulheres. Nossa visão de igualdade entre homens e mulheres também questiona as dimensões de raça e classe. É problemático que análises sobre a desigualdade partam de indicadores que reforçam ou naturalizam dinâmicas de opressão e exploração atuais como pontos de partida, sem observar as imbricações entre gênero, raça e classe.

Um exemplo: como devemos pensar sobre a consigna feminista reconhecida mundialmente “salário igual para trabalho igual” na realidade brasileira? Como se organiza a desigualdade salarial aqui? A primeira questão é a alocação das mulheres e pessoas negras nos trabalhos precários, de baixos salários. Nas empresas, o “trabalho igual” é registrado com diferentes funções, e isso dificulta a exigência de “salário igual”.

No Brasil, um elemento determinante para a desigualdade salarial é o valor baixo do salário mínimo. Ter uma política vigorosa de valorização do salário mínimo é fundamental para afrontar a desigualdade e como medida redistributiva em nosso país.

Autonomia dos nossos corpos, autodeterminação sobre nossas vidas

Outro tema emblemático para ser enfrentado é a autonomia sobre o corpo e o direito de decidir sobre a maternidade. Para isso, é fundamental a legalização do aborto como um direito garantido gratuitamente no serviço público. O movimento feminista historicamente reivindica a legalização do aborto como parte de uma política ampla de fortalecimento da autonomia das mulheres, que exige a atenção à saúde em todas as fases da vida e suas necessidades.

O grande desafio nesse momento é enfrentar os ataques da extrema direita, que inclusive tem impactos negativos no reconhecimento das mulheres sobre seu direito a autonomia diante de uma gravidez indesejada.

Nesse retrocesso político e social, reforçou-se a visão de que a maternidade define as mulheres. Também se incrementaram a culpabilização das mulheres e as práticas punitivas, desenvolvidas a partir da mesma hipocrisia e misoginia vigentes há muitos séculos. Vimos, inclusive, a perseguição institucional a meninas que engravidaram em decorrência de estupro, e que têm o direito legal ao aborto.

Há também uma pergunta que precisa ser tratada: por que tantas mulheres recorrem ao aborto no Brasil? Isso ocorre justamente porque as mulheres não têm garantida a autonomia em seu exercício da sexualidade, em função das práticas patriarcais e da falta de acesso adequado a anticoncepção e de controle sobre o próprio corpo. A utilização de anticonceptivos segue desresponsabilizando os homens, enquanto para as mulheres se intensifica o uso dos métodos hormonais, que podeme acarretar graves problemas para a saúde e reforçam o controle e lucro das transnacionais farmacêuticas.  O número de abortos em regiões do Norte global é consideravelmente menor do que o de regiões do Sul global. Segundo dados de 2018, a América Latina e o Caribe foram a região com maior número de abortos no mundo.

Políticas feministas para desmantelar as estruturas patriarcais

Não podemos, porém, fazer exigências pontuais, isoladas. Há um conjunto de políticas que hoje são necessárias para alterar a realidade rumo  à construção da igualdade plena.

Nesse sentido, as políticas de igualdade e diversidade devem ser implementadas de forma transversal em todas as esferas da sociedade, combatendo dessa forma o racismo, o machismo e a LGBTfobia estruturais. A construção da igualdade para as mulheres, em todas as suas dimensões e diversidade de classe, raça e sexualidade, necessita de políticas universais combinadas, com ações afirmativas de ruptura com a divisão sexual e racial do trabalho; de socialização do trabalho doméstico e de cuidados; de ações para erradicar as causas da violência contra as mulheres; e da defesa da autonomia das mulheres sobre seus corpos e sexualidade.

Nesse momento, é importante dar passos decisivos para garantir políticas para a igualdade. O desafio é construir respostas para as necessidades concretas do nosso povo: comida, terra, água, serviços públicos, direito de existir sem violência.

Com as políticas neoliberais intensificadas na pandemia, que precarizaram ainda mais a vida, todas as medidas emergenciais em curso, como o Bolsa Família, são extremamente necessárias. Mas é igualmente urgente garantir a revogação do teto de gastos, valorizar o salário mínimo e garantir um conjunto de mudanças na economia que altere a lógica de mercado dominante. Aqui, não faltam urgências: garantir a vida dos povos indígenas, da população negra, o desmatamento zero, a reforma agrária, a descriminalização e legalização do aborto, e muitas outras. É urgente garantir a defesa dos nossos corpos, territórios e trabalho.

A vitória política contra o neoliberalismo e a extrema direita foi fruto de um amplo processo de mobilização e construção de unidade de uma frente ampla dos movimentos e partidos. Entendemos que só um processo de participação popular enraizado em todos os territórios garantirá a força necessária para efetivar esse conjunto de mudanças. Por isso, estamos comprometidas com a construção de mecanismos de participação efetivos para que o povo seja protagonista desse processo.

Nossa esperança se espraia ao olhar para o papel do Brasil no cenário internacional. Precisamos um amplo movimento internacionalista para avançar rumo à integração dos povos, a processos de paz, e para enfrentar a crise sistêmica global, em particular colocando a centralidade da justiça climática.

No dia 8 de março, estaremos nas ruas nos mobilizando por esse projeto popular, feminista e antirracista. Para ser posto em prática, esse projeto precisa se ancorar permanentemente nas lutas e organizações populares. Por isso, seguiremos em marcha!

Nalu Faria é coordenadora da SOF Sempreviva Organização Feminista e integrante do Comitê Internacional da Marcha Mundial das Mulheres.

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