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80 anos do assassinato de Trotsky | Erick Kayser

Neste último 21 de agosto, completaram-se 80 anos do fatídico dia em que Leon Trotsky perdia a vida, assassinado durante seu exílio no México. O crime, ordenado por Stálin, fora cometido pelo espanhol Ramon Mercader, agente do serviço secreto soviético, que após cumprir 20 anos de detenção em prisões mexicanas, seria condecorado pela URSS e morreria em Cuba, em 1978, velado como “herói nacional”, desfazendo as frágeis tentativas de Moscou em negar seu envolvimento direto no assassinato. Após a dissolução da União Soviética, com a abertura dos arquivos da NKVD, as provas documentais poriam fim a qualquer controvérsia ainda existente.

O impacto provocado pela morte de Trotsky foi proporcional ao peso daquela figura que, mesmo degradado e vítima constante dos ataques da poderosa máquina de propaganda soviética, conseguia se manter como das principais lideranças da esquerda revolucionária mundial. Se a eliminação física de Trotsky reforçou o poder autocrático de Stálin na URSS, permitindo uma desenvoltura ainda maior para eliminar toda e qualquer dissidência no interior do partido comunista; por outro lado, produziria alguns efeitos inesperados para os vitoriosos stalinistas. Morrera o homem, mas o mito em torno de sua figura e ideias, renasceria formidavelmente.

Para aqueles que davam crédito a campanha soviética contra o trotskismo, era difícil compreender a persistência da atração, mesmo que por vezes de forma periférica, de suas ideias. Mas, para buscar entender esta questão, recorremos a Paulo Lemiski. O poeta curitibano, certa vez, escreveu que  “Trotsky pertence às exterioridades solares da história. Não aos íntimos abismos da alma”. Seriam estas “luzes revolucionárias”, com a rebeldia que lhe é inerente, que tanto incomodavam aos stalinistas com seu realismo pragmático.

A figura do revolucionário bolchevique, exilado e assassinado, carregaria uma incontornável dose de romantismo a sua imagem, adicionando um importante componente para difusão e a adesão, ao redor do mundo, das ideias “trotskistas”. Para muitos simpatizantes do comunismo, os rumos tomados pela experiência soviética, após a chegada ao poder do stalinismo, era um fardo indesejável. O líbelo pela construção de um socialismo democrático seria o catalisador principal, para milhares de homens e mulheres que, de variadas formas, se inspirariam no “velho leão”.

Contudo, a “vitória” do stalinismo não se resume ao crime de 1940 em Coyoacán, na Cidade do México. Nos anos que se seguiram, os partidos comunistas “oficiais”, ou seja, alinhados as diretrizes de Moscou, seriam majoritários em quase todo o mundo. Os grupos trotskistas, como regra, ocupariam posições marginais no movimento operário, gozando melhor sorte junto a setores intelectualizados. Será esta penetração do trotskismo junto a meios acadêmicos e artísticos que ajuda explicar como, mesmo com toda a campanha difamatória produzida pelo stalinismo e sua baixa penetração orgânica em movimentos populares de massa, que a figura de Trotsky tenha se mantido em evidência.

A influência do pensamento de Trotsky se fará presente em muitas das mais ricas experiências de renovação crítica do marxismo do século XX. Noções como a do caráter “desigual e combinado” do desenvolvimento capitalista, que posteriormente ganharia maior consistência teórica através de variados autores, tais como o economista belga Ernest Mandel ou o brasileiro Ruy Mauro Marini, retêm inequívoca importância heurística e atualidade política. Sobre este aspecto de seu vigor político, talvez, baste mencionar que, um de seus desdobramentos lógicos é a recusa a certa visão “etapista” da história. O etapismo compreende que todas as sociedades deveriam seguir as mesmas “etapas” ou “estágios” de desenvolvimento econômico e social – invariavelmente idealizado mecanicamente no percurso europeu – para poder atingir ao “inevitável” estágio para o socialismo. As revoluções do século XX, protagonizadas na “periferia” do sistema capitalista, demonstraram o acerto desta perspectiva radicalmente dialética e não-evolucionista da história e dos processos políticos defendida por Trotsky.

Mas e hoje? Em termos gerais, 80 anos após seu assassinato, nesta segunda década do século XXI, tentar identificar qual seria o “lugar” de Trotsky é uma tarefa ainda em aberto e um tanto complexa.

Por um lado, se é verdade que suas obras jamais deixaram de ganhar traduções e novas edições ao redor do mundo, mas, a influência direta de seu pensamento, hoje é qualitativamente distinta da atração que ostentou décadas atrás. Em termos políticos e sociais, os variados “trotskismos”, com raras exceções, ocupam um espaço periférico ou irrelevante politicamente nos cenários nacionais. Mais do que isso, não parece haver um fenômeno semelhante ao que ocorre com Stálin, seu maior antagonista, que em alguns países, como EUA ou Brasil, se observa o surgimento de um “neostalinismo” que tem buscado atualizar, por vezes de forma meramente performática e com baixa consistência teórica, uma reabilitação da figura de Stálin como exemplo de “comunismo guerreiro”, disposto a combater na mesma linguagem militarizada a extrema-direita e os fascistas. Como uma perversa ironia da história, a verdade factual é invertida de forma mais do que curiosa. Ainda que Trotsky tenha criado e comandado o Exército Vermelho durante a guerra civil que sucedeu a revolução bolchevique, tendo ele pessoalmente liderado batalhas em campo, contra invasores estrangeiros, mercenários e os “brancos”, sua imagem militarizada é pouco evocada ou revindicada. Stálin, ao contrário, mesmo não tendo acumulado nenhuma honraria militar no período revolucionário e jamais liderado qualquer vitória em campo, virou uma espécie de “herói dos memes”.

A imagem de Trotsky e, especialmente, dos diferentes “trotskysmos”, ainda é largamente associada ao divisionismo e ao sectarismo no âmbito da esquerda. Em parte, esta imagem possui boa dose de verdade, especialmente entre os continuadores de sua obra. A história do movimento trotskista, bem retratado no livro “Trotskismos” do francês Daniel Bensaïd, fala por si: os sucessivos rachas e divisões, alimentados por virulentas disputas internas, fragilizaram qualquer chance do movimento político em torno da IVº Internacional ter o vigor necessário para enfrentar, simultaneamente, aos capitalistas e ao stalinismo. Parte do problema talvez tenha suas origens na própria postura política polemista que Trotsky cultivou em vida, sendo replicada por seus seguidores.

A chama da polêmica sempre acompanhou com força o líder bolchevique. O britânico Bernard Shaw, disse certa vez, com seu conhecido sarcasmo, que Trotsky decapitava seus oponentes para mostrar que suas cabeças estavam ocas. Antes mesmo da revolução de 1917, por exemplo, nos longos anos de exílio, as controvérsias eram duras e frequente. Ele censuraria Lenin por suas inclinações “jacobinas” e por querer criar um partido militarizado e por sua indisposição em constituir movimentos amplos e unificados contra o czarismo. Contra os mencheviques, Trotsky se opôs ao crescente reformismo defendido por eles, retomando uma expressão de Karl Marx, afirmando a necessidade da “revolução permanente”, conceito que se converteria, anos depois, em uma de suas principais insígnias em seu embate contra a burocratização soviética.

Em nossos dias, de hegemonia neoliberal, defender uma “revolução permanente”, quando a própria agenda revolucionária não se apresenta na ordem do dia, pode soar um tanto quanto deslocado da realidade. Contudo, as revoluções são eventos, por vezes, quase que imprevisíveis. A continuidade do capitalismo e suas contradições, essa agenda poderá (ou deverá), em algum momento, ganhar novo impulso. Neste cenário, seguramente, as ideias de Trotsky poderão ser valiosas. Mais do que uma simples palavra de ordem, a noção de uma revolução permanente, coloca em tensão as amarras institucionais que propiciam fenômenos da burocratização.

Se é verdade que devemos rejeitar qualquer leitura dogmática de seus escritos e saber identificar seus limites, reconhecendo, por exemplo, que alguns debates foram superados pelo desenrolar da história, por outro, são muitas os elementos que podem e devem ser resgatados para as lutas contemporâneas. Trotsky, foi em seu tempo, uma espécie de “profeta da revolução”, aqui numa deferência a Isaac Deutscher e sua famosa trilogia sobre Trotsky – O Profeta Armado, O Profeta Desarmado e O Profeta Banido – foi um intelectual de rara capacidade analítica. Nós devemos aproveitar a riqueza deste instrumental crítico para fomentar a construção das lutas anticapitalistas em nosso tempo, onde, seguramente, sua obra deverá figurar como uma renovada fonte para a construção de um socialismo democrático.

Erick Kayser é historiador e secretário-geral do PT de Porto Alegre/RS.

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