Em 22 de dezembro de 1979, cerca de 25 militantes, em sua maioria de Minas Gerais e do Rio Grande dos Sul, reuniram-se em São Paulo para fundar a organização Democracia Socialista (DS), uma corrente política que tem continuidade sem interrupções no que hoje é a tendência do Partido dos Trabalhadores (PT), Democracia Socialista.
O congresso fundacional compunha-se basicamente de militantes-representantes de duas vertentes revolucionárias: o grupo autodenominado como O. (de Organização e que se expressava como Centelha no movimento estudantil) baseado em Minas Gerais; e o agrupamento que dirigia a Tendência Socialista do MDB no Rio Grande do Sul (que se expressava como Peleia no movimento estudantil). Os dois grupos eram formações que surgiram na crítica ao stalinismo e às experiências brasileiras do reformismo do PCB e do vanguardismo armado, na defesa do socialismo democrático.
Colocavam especial ênfase na democracia exigida na organização interna e na necessidade da construção de um partido revolucionário no Brasil com capacidade de se enraizar na classe trabalhadora. Eram críticos do varguismo, que representou uma experiência de organização trabalhista sem independência de classe. Ainda que contassem com militantes mais experientes, não eram cisão de outra organização. Nasceram pelo esforço de autoconstrução. Somaram-se ainda militantes remanescentes do Partido Operário Comunista-Combate (POC).
A fundação da Democracia Socialista fortaleceu-se a partir do trabalho comum em torno do jornal nacional Em Tempo e da sua plataforma programática, em especial a defesa de um Partido independente da classe trabalhadora. O Em Tempo iniciou em 1977 como alternativa ao jornal Movimento – influenciado pelo PCdoB – que tinha no seu ideário a defesa de uma frente política democrática em conjunto com uma suposta e esperada burguesia nacional, na época expressa no MDB.
O Em Tempo começou como uma frente de jornalistas e organizações de esquerda e dividiu-se inicialmente face à questão partidária: MDB ou um partido de trabalhadores; e, em seguida sobre o caráter do partido dos trabalhadores em construção: socialista ou não.
A visão programática da organização expressava uma trajetória singular na história recente das esquerdas brasileiras e isso ficou explícito em sua própria denominação – “Democracia Socialista”.
Entre aquele ato inicial em 1979 e 1982, três grupos de origem trotskista se fusionaram com a organização: a Organização Revolucionária dos Trabalhadores (ORT), um grupo do Rio Grande do Sul e o Comitê de Ligação dos Trotskistas Brasileiros (CLTB). Ao final desses processos, a organização passou a se denominar Organização Revolucionária Marxista – Democracia Socialista (ORM-DS). A partir daí, ao longo dos anos, a Democracia Socialista passou a aglutinar militantes de distintos Estados e regiões do país, trazendo a riqueza de seus debates e seu enraizamento nacional.
A denominação Democracia Socialista ecoava o debate que acontecia nesse período em nível internacional. Sob influência do eurocomunismo muitos Partidos Comunistas (PCs), ao abandonarem a fórmula stalinista que deformou a concepção da “ditadura do proletariado”, acabaram descartando o horizonte revolucionário, num rumo parecido com o que a social-democracia havia feito décadas antes. A DS buscou defender a concepção marxista de transição ao socialismo distinguindo-a da ditadura burocrática e da renúncia à revolução que caracterizou a social-democracia e o eurocomunismo. Essa denominação correspondia à resposta estratégica dada no documento “Democracia socialista e ditadura do proletariado”, elaborada pelo marxista belga Ernest Mandel e assumida como resolução pela IV Internacional.
Formada às vésperas da fundação do PT, a Democracia Socialista teve papel de destaque nesse processo e nesse partido. Simultaneamente à construção do PT, a DS foi igualmente ativa na fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Tratou-se de uma intervenção dupla na conjuntura. Nos formamos rejeitando a estratégia de continuar o legado varguista no movimento operário, que iria se expressar na fundação do PDT e na figura de Leonel Brizola. Os militantes da DS foram ativos na convocatória do encontro no Colégio Sion, em São Paulo, para a fundação do PT em 1980 e a militância sindical da DS teve papel chave no processo de convocação da Conclat (Conferência Nacional da Classe Trabalhadora), de 1981, e do Congresso que fundou a CUT em 1983.
A DS combinou construção da organização com intervenção na luta de classes e na construção do PT e da CUT. Intérpretes de Lenin em terras brasileiras, a experiência se fortaleceu com um jornal frentista, Em Tempo, que arranca em finais de 1977 e que irá se decantar para passar a ser um órgão vinculado à construção do PT, sob direção de militantes que viriam formar a DS.
O Em Tempo teve grande importância na denúncia dos crimes da ditadura militar e nas reportagens sobre a luta de classes que estava em ascensão e vinha se convertendo em luta política pelo poder no país, anunciando uma disputa pela transição à democracia.
O jornal também foi fundamental para o processo de construção do partido, colocando debates importantes como o tema da democracia interna, o método da composição proporcional das instâncias e o reconhecimento do direito de tendências internas. Desde logo, defendeu o feminismo e o papel central da luta das mulheres na perspectiva socialista, com a implicação decisiva de um partido socialista, democrático e feminista. Atuou ainda nas disputas dentro do movimento operário em torno à decisão de fundar a CUT (Central Única dos Trabalhadores), que foi tomada no Conclat unitário de 1981, mas que as direções pelegas e reformistas buscavam boicotar.
Duas referências internacionais foram fundamentais também. A revolta dos operários do sindicato Solidariedade (Solidarność) na Polônia e a Revolução Sandinista na Nicarágua. Uma revolução antiburocrática e uma revolução democrática e antiimperialista oxigenavam o ambiente no qual se constituiu a identidade do PT, que nasceu um partido socialista, que questionava tanto a experiência stalinista como a social-democrata.
Desde suas raízes a DS desenvolve vínculos com o marxismo revolucionário, aquele que se nutriu de pensadores como Lenin, Rosa Luxemburgo, Leon Trotsky, Ernesto Che Guevara, José Carlos Mariátegui, do pensamento e ação feminista, a experiência da revolução cubana, a teologia da libertação e apoiava a revolução sandinista em curso. A DS se aproxima da produção teórico-política de intelectuais vinculados à IV Internacional, como o belga Ernest Mandel (1923-1995), o italiano Livio Maitan (1923-2004), o francês Daniel Bensaid (1946-2010) e o espanhol Miguel “Moro” Romero (1945-2014).
As reformulações programáticas do congresso da IV Internacional de 1979 facilitaram essa aproximação. A IV elaborava tanto a ideia de que uma futura internacional de massas seria a convergência ampla de várias correntes revolucionárias – superando a obsessão pela unificação do trotskismo como via de construção internacional, como reconhecia dinâmicas revolucionárias nacionais e regionais. A relação frutífera da DS com a IV Internacional desenvolveu-se por mais de duas décadas.
A visão de uma vanguarda política compartilhada entre diferentes correntes foi fundamental para que a DS desde o começo se visse como parte de um projeto coletivo, o PT. Este nunca foi para a DS uma aposta tática. A aprovação da resolução “PT e Partido Revolucionário”, em 1982, constituiu-se na definição fundamental da nossa corrente e expressa esse esforço de elaboração. Nele defendemos a tese leninista da necessária construção de um partido revolucionário e, ao mesmo tempo, a possibilidade de ser um partido fortemente enraizado na classe trabalhadora. Distinguia-se assim da concepção em voga na esquerda brasileira de que um partido revolucionário seria necessariamente uma organização de quadros e normalmente clandestina. Além disso, e igualmente fundamental, afirmamos que a construção do partido revolucionário é uma luta necessariamente consciente e que enfrenta obstáculos internos e externos, o que implica a exigência de existir uma organização que luta claramente por esse objetivo e na busca de unificar nessa mesma organização os marxistas no PT para levar essa luta até o fim.
Em 1987, no 5º Encontro Nacional do PT, o partido avançou política e organizativamente em várias direções que a DS vinha impulsionando desde 1980. Destacam-se a construção de uma estratégia de luta pelo poder e pela transformação socialista da sociedade, superando o espontaneísmo que vinha desde a fundação e muitas vezes se expressava na ideia de partido que representa os movimentos. Avançamos também no reconhecimento do direito de tendências. Esse processo se completa em 1991, no 1º Congresso do PT, com o reconhecimento do direito à representação proporcional das correntes de opinião interna. Depois do Encontro de 1987, dois representantes integram a Executiva Nacional, um da DS e outro do PRC (Partido Revolucionário Comunista), que juntos impulsionaram a plataforma Alternativa Operária Popular, ainda sem corresponder à proporcionalidade, o que viria a acontecer somente depois com a regulamentação do direito de tendência. Desde aquele momento a DS integra a Executiva Nacional do PT.
Em sua 1ª Conferência de 1988, a DS assume o caráter de tendência e passa a se chamar Tendência do PT Democracia Socialista. O documento central desta 1ª Conferência estabelece a passagem de organização a tendência, compreendendo que a forma organizativa expressava um novo e decisivo período na construção do PT como partido revolucionário com vitórias extremamente significativas da DS. O seu grau de identidade com o PT, portanto, aumentava e, nesse sentido, essa relação melhor se expressava como tendência do partido e não mais na forma de organização e partido.
A aprovação de uma estratégia política que colocava em perspectiva a ruptura democrática no caminho para a realização do objetivo socialista do partido cobrava muitos desafios. Mesmo que de forma limitada, o ensaio portoalegrense de orçamento participativo, como experimento de democracia direta era resultado direto da visão da necessidade de superar os limites impostos pelo sistema de representação. Os anos desde a fundação da DS até o 1º Congresso foram de intensos debates e resultaram na consolidação da visão de construção democrática do partido e de uma perspectiva revolucionária na sua estratégia.
O ano de 1989, uma década depois daquele reagrupamento inicial, a maior greve geral da história do país e a quase eleição do Lula na disputa presidencial foram sinais claros de que aquela aposta estratégica de dez anos atrás foi correta e que a construção que fora empreendida tinha sido vitoriosa.
Uma nova constituição federal tinha sido aprovada em 1988, com avanços sociais mas ainda configurando uma democracia restrita. Em breve, se abriria a era neoliberal com a aventura reacionária do governo Collor. A DS teve participação ativa na resistência ao neoliberalismo e no processo que resultou na eleição de Lula em 2002.
Fomos parte da experiência dos governos petistas (2003-2016) tendo militantes da DS assumido responsabilidades e tarefas importantes neles. Entendemos essa experiência como parte orgânica da história da classe trabalhadora, refletindo suas potencialidades e seus impasses. Por isso, superamos o risco de cisão acontecido em 2003 quando um conjunto de companheiros/as descontentes com algumas das primeiras medidas tomadas pelo governo Lula rumaram para a fundação do PSOL em junho de 2004. Foi também o momento em que a direção da IV Internacional optou por um caminho estranho à nossa parceria de duas décadas.
Fazer parte de uma experiência da classe trabalhadora brasileira não significa se adaptar nem reduzir horizontes estratégicos. Desde o marxismo revolucionário trata-se de fazer a crítica como parte de uma militância e construção em comum. Os governos liderados pelo PT mostraram imensas potencialidades – no combate à pobreza, na construção de uma política externa soberana, na reconstrução do Estado na economia, na promoção da igualdade no acesso a bens públicos como educação e saúde, entre outras – mas também limites que acabaram abrindo espaço a impasses, recuos e o mesmo o golpe de estado de 2016.
A proposição estratégica de que os governos petistas deviam abrir caminho para uma revolução democrática ou que sofreríamos o efeito de uma contrarrevolução neoliberal foi sendo construída por nós ao longo desses anos. Fomos críticos das visões que em nome da governabilidade propunham conviver com práticas tradicionais no Estado brasileiro (a corrupção incluída). Em finais de 2014 e todo o ano de 2015 a DS expressou de forma clara e contundente que a opção da presidenta Dilma, com o apoio tácito da maioria da direção partidária, por uma política de ajuste econômico neoliberal ao invés de dar uma trégua ao governo assediado pela direita, levaria à perda do único bastião que defendia o projeto – o povo pobre. Tendo elaborado desde décadas atrás que para avançar estrategicamente precisamos de um novo Estado, aberto e subordinado à participação popular direta, certamente ficamos aquém na formulação das transformações que devíamos fazer e, sobretudo, o como impulsioná-las. A combinação desses três impasses foi o que permitiu deslanchar a estratégia da contrarrevolução neoliberal.
O segundo turno da eleição presidencial de 2014 foi um primeiro ensaio de frente de esquerdas necessária para derrotar a direita que esteve muito perto de conquistar o governo federal. A oposição ao golpe de 2016 foi um segundo momento importante. O segundo turno da eleição presidencial de 2018 foi um terceiro evento de destaque. O frentismo está colocado como uma necessidade estratégica para o período histórico aberto pela contraofensiva da direita que tomou impulso de massas desde 2013.
Há um gigantesco legado de experiências, debates e elaborações dessas últimas duas décadas para a continuidade da construção, aquela que começamos em 1979-80: dotar a classe trabalhadora de uma organização política independente e de um programa para a revolução socialista, isto é, de um partido revolucionário. Ao que se agrega agora, com mais ênfase do que em nenhum outro momento, a necessidade da construção de uma política e cultura frentista que combine a luta democrática contra a extrema direita que se insinua na contrarrevolução neoliberal com a afirmação de um programa de transição, de revolução democrática, com um horizonte socialista.
Fomos parte da experiência de governo e da resistência ao golpe. Enfrentamos os desafios de criar as condições para uma contraofensiva ao giro reacionário que tomou a conjuntura após 2016 e que resultou na eleição de um candidato de extrema direita.
São 40 anos de construção, de resistência à opressão e de esperanças de emancipação. A DS, corrente interna do PT, é parte de um amplo campo político com capacidade de hegemonizar a sociedade brasileira e de conduzi-la à emancipação. É uma tarefa árdua, mas sempre a militância da DS soube que é a luta permanente a que permitirá finalmente romper com a exploração capitalista, com as opressões políticas, sociais, culturais e morais, e abrir o tempo do socialismo no Brasil e à escala mundial.
por GTn
Grupo de Trabalho Nacional da Democracia Socialista
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