A etnia Juma tinha mais de 12 mil pessoas. Aruka Juma – que agora faleceu – foi um dos poucos sobreviventes do extermínio que sofreram na década de 60. Mais um canto foi enterrado.
Ilustração: Bennet
Gosto de livrarias, sebos e feiras. Feiras de todos os tipos.
As feiras de antiguidades, no geral, são mais organizadas do que alguns sebos. Mas esta conversa é para outro momento.
Quando viajo e tenho a oportunidade, visito feiras e entre elas – ninguém deve deixar de visitar [faz parte do catálogo turístico] – a Feira de Tristán Narvaja, que ocorre todos os domingos na cidade de Montevidéu.
Visitei-a muitas vezes.
Muitos domingos ensolarados e, às vezes, com intenso frio, estava eu nas bancas de discos e de livros da Tristán Narvaja. Passava ali parte das minhas manhãs de domingo.
Nas bancas desta feira, comprei Baladas ou Cantares, de Manuel Scorza, escritor, poeta e militante político peruano, infelizmente muito pouco conhecido no Brasil.
As Baladas ou Cantares é composta por cinco livros que relatam a luta e a rebelião dos camponeses de origem indígena na região de Cerro de Pasco, nos Andes Centrais, no Peru.
Scorza, nos anos 1960-61, participou dessa rebelião e denuncia – nestes Cantares – a matança executada pelo Estado peruano, a mineradora norte-americana Cerro de Pasco Corporation e os grandes latifundiários da região.
Redoble por Rancas é a Balada primeira; e a partir dela vem os demais Cantares, Garabombo, el invisible, El jinete insomne, Cantar de Agapito Robles e La tumba del relâmpago. Para quem quer conhecer um pouco da literatura e da história da América do Sul é uma leitura imprescindível.
Todos já foram lançados no Brasil e, alguns deles, são encontrados no “Estante Virtual”.
Montevidéu é a cidade em que cuidador de carros te indica livros para ler. Aconteceu comigo.
Parei o carro próximo à Tristán Narvaja e o cuidador de carros notou ser eu brasileiro e, de maneira geral, os uruguaios, logo puxam uma conversa.
No curto diálogo disse a ele que iria visitar o setor de venda de livros e de discos (LPs). Ele não teve dúvida: acompanhou-me até uma banca de livros usados e passou a sugerir-me alguns títulos e escritores.
O conceito dele – do que é livro bom – coincidia com a minha.
A terra é fundamental para o povo “indígena”. Sem ela não há vida e pela – terra – vida lutam. Nas Américas lutam, e continuam lutando, desde que os colonizadores aqui chegaram.
Os Cantares registra a luta pela preservação da natureza. Os povos originários se entendem como parte da natureza.
O homem branco é que se acha superior.
Há – nas Américas – muitos Cantares e cantos denunciando os crimes dos vários Estados, empresas e latifundiários.
Há cantos e cantares – em livros e discos – que denunciam os crimes, cantam a luta e a esperança.
O disco (LP) O Canto da Terra, Canções que Nascem das Raízes de um Povo – Antonio Gringo e Conjunto Quatro Ventos – é um destes “cantares” de denúncia e esperança:
A classe roceira e a classe operária / Ansiosa esperam a Reforma agrária / Sabendo que ela é a solução / Para a situação que está precária / Saindo o projeto do chão brasileiro / E cada roceiro plantar sua área / Sei que na miséria ninguém viveria / …
No O Canto da Terra tem uma dedicatória:
Aos companheiros
de luta, H. e C.,
com muita esperança,
Antonio Gringo
02/04/88
A dedicatória é do ano de 1988, antes do massacre de Eldorado dos Carajás, que ocorreu no dia 17 de abril de 1996.
Passado 25 anos do massacre – quando foram assassinados 21 trabalhadores – e de impunidade, tudo piorou, outras chacinas ocorreram, como a de Pau D’Arco, em maio de 2017, também no Pará, onde 9 camponeses e uma camponesa foram assassinados de forma brutal.
Com Bolsonaro – que incentiva a violência – tudo piorou e o massacre se dá em todos os sentidos: queimadas, desflorestamento, não atendimento a saúde, assassinatos de milhares de espécimes da flora e da fauna e de gente, etc..
Nos seus Cantares, Scorza denuncia a construção de uma hidrelétrica pela mineradora norte-americana Cerro de Pasco Corporation. Apesar do tempo transcorrido, por lá e por aqui não é diferente.
A hidrelétrica de Tucuruí foi para patrocinar a ação de grandes empresas, entre elas a de mineração. Empresas que vêm invadindo e destruindo áreas indígenas e de preservação ambiental.
Neste massacre executado – há séculos – morreu semana passada, de Covid-19, o último indígena homem da etnia Juma, em Rondônia.
Enterrou-se mais um canto.
A etnia Juma tinha mais de 12 mil pessoas. Aruka Juma – que agora faleceu – foi um dos poucos sobreviventes do extermínio que sofreram na década de 60. Hoje só restam duas filhas dele, as últimas da etnia.
O caro leitor ou a cara leitora que leu até aqui deve estar se – ou me – perguntando: qual a relação entre gostar de feiras, sebos, livros, dedicatórias e a morte de Aruka Juma?
Nada ou tudo.
Com algum esforço pode encontrar alguma relação.
Quanto à dedicatória esclareço: este LP nunca foi objeto. É sim marca de período histórico de lutas pela terra e da história de vida de um casal.
- Dr. Rosinha é médico aposentado e ex-deputado.
Publicação original:www.plural.jor.br/cronicas/florisvaldo-fier/o-canto-da-terra/
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