A cultura do racismo continua hegemônica e predominante, porque nunca foi interesse das elites acertar as contas com o passado.
O Brasil foi o último país da América Latina a abolir o regime de escravidão. Ao longo de três séculos, a astronômica cifra de mais de 4 milhões de pessoas raptadas registra o número de seres humanos que foram arrancados do continente africano e transformados em escravos.
O sociólogo Jessé Souza, em sua obra “Como o racismo criou o Brasil”, traz à luz detalhes da sordidez desse processo de transformar mulheres e homens livres em peças da engrenagem do regime colonial que implantou o latifúndio no país. Segundo ele, assim que chegavam às fazendas eram espancados cruelmente sem motivo algum e com o único objetivo de lhes incutir o terror e o medo.
Mesmo assim, os negros jamais se submeteram docilmente à terrível condição a que foram submetidos pelos traficantes do capitalismo comercial em ascensão e resistiram heroicamente. Os quilombos – como o de Palmares, o mais célebre de todos, que resistiu durante cem anos às ferozes tentativas do poder dominante em aniquilá-lo – foram a expressão material dessa luta em defesa da dignidade e da liberdade humanas.
A historiografia tradicional brasileira, a serviço das elites, jamais aprofundou suficientemente os temas da escravidão e do racismo, que são centrais para a compreensão da formação social de nosso país. Os negros, que fundaram sob o jugo do açoite os pilares da formação econômica do Brasil, continuaram a viver em condições sub-humanas mesmo após a formalidade da abolição da escravatura (1888).
É isso que os historiadores e sociólogos progressistas chamam de racismo estrutural. Ou seja, nas relações econômicas e sociais estabelecidas no cotidiano, a cultura do racismo continua hegemônica e predominante, porque nunca foi interesse das elites acertar as contas com o passado e erradicá-lo de fato.
E essa mudança qualitativa jamais será possível sem uma verdadeira revolução democrática liderada pelas maiorias. Ela implica necessariamente em uma transformação profunda nas atuais relações econômicas, sociais e culturais, marcadas pela absurda concentração de renda e a desigualdade social que produz, além da violência simbólica que busca legitimar a cultura dominante.
Os números relativos à violência urbana são reveladores de um racismo secular que as elites cinicamente insistem em fazer de conta que não existe. Conforme o Atlas da violência 2020, em dez anos (2008 a 2018) a taxa de homicídios de negros aumentou 11,5%, enquanto a de não negros caiu 12%. A cada ano mais de quarenta mil pessoas são assassinadas. A metade são jovens de até 29 anos. A imensa maioria negros (73%). Em 2018, das 4.519 mulheres vítimas de feminicídios no Brasil (uma a cada duas horas), 68% eram negras.
É um extermínio similar ao ocorrido durante o regime de escravidão e naturalizado pela cobertura da grande imprensa. Ao chamado cidadão comum, que vive a violência em seu cotidiano ou que assiste a tudo estarrecido através dos telejornais, é vendida a ideia de uma violência em espiral que parece ter existido desde sempre e contra a qual não existe solução possível. Jamais se faz a relação com as suas verdadeiras causas e tampouco se questiona por que os negros são as suas maiores vítimas.
Da mesma forma são reveladores do racismo os dados de acesso aos postos de trabalho e à educação formal. Não existe denúncia mais evidente da exclusão social de que os negros são vítimas do que o fato de, mesmo representando mais da metade da população brasileira (54%), serem predominantes em postos de trabalho de pior remuneração e minoria nos bancos escolares em todos os níveis.
De acordo com o IBGE (2017), os afrodescendentes são maioria em setores com remuneração mais baixa: agropecuária (60,8%), construção civil (63%) e serviços domésticos (65,9%). Na área da educação, os números são alarmantes. Os negros são 71,7% dos jovens que abandonam a escola, em razão da necessidade de trabalhar para sobreviver. No ensino superior, representam apenas 7,12% dos matriculados.
Por conta disso, a questão da superação da discriminação racial se torna cada vez mais um tema central para a discussão em torno de um projeto de futuro para o país. E a resistência a mudanças que assegurem direitos expressa o quanto a manutenção do quadro atual interessa ao poder dominante. Os avanços construídos a partir dos governos de Lula e Dilma, como o reconhecimento das comunidades quilombolas, inserção digna no mundo do trabalho e a política de cotas nas universidades, dentre vários outros, sofreram duríssimos ataques dos setores conservadores. O bolsonarismo é a expressão contemporânea dessa cultura atrasada, impregnada de ódio, discriminação e intolerância.
Um Brasil verdadeiramente novo, somente será construído com a efetiva compensação histórica dos crimes cometidos contra nossos afrodescendentes. E essa reparação, passa não apenas pelo reconhecimento das atrocidades cometidas ontem e hoje como, fundamentalmente, pelo direito real de usufruir de todos os benefícios da riqueza material e da produção cultural da sociedade brasileira. Os desdobramentos dessa luta secular delinearão o modelo de país que legaremos aos nossos descendentes.
Jeferson Fernandes é deputado estadual (PT/RS)
Originalmente publicada em Sul21
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