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“Um dia melhor virá”: Poesia de mulheres afegãs que migram | Clarice Rangel Schreiner

Capire compartilha a poesia de mulheres do Afeganistão que precisaram sair de sua terra natal

Foto: Shamsia Hassani

Em agosto de 2021, o Talibã invadiu Cabul e reconquistou o controle governamental no Afeganistão. O avanço do grupo era noticiado desde 2015, quando o Talibã passou a ter controle de sua primeira província após sua suposta derrota em 2001. Atualmente, mais de 90% das pessoas no Afeganistão sofre com a insegurança alimentar, além da falta de liberdade de organização e expressão, dificuldade de acesso a educação, saúde, água potável e trabalho. Enquanto isso, todos os dias, pessoas fogem de suas casas e, em situação de perigo, atravessam fronteiras para países vizinhos na tentativa de obter vistos humanitários para diferentes partes do mundo ou, ainda, vão irregularmente para o Irã, Turquia e, possivelmente, para a Europa.

Além do desmonte promovido pela política fundamentalista do Talibã, o povo do Afeganistão também enfrentou recentemente graves catástrofes naturais em 33 das suas 34 províncias. Desde 10 de janeiro de 2024, mais de 166 mil pessoas foram afetadas por terremotos, enchentes, secas, deslizamentos de terra e avalanches, enquanto três décadas de guerra esgotam tanto as comunidades quanto a natureza ao redor.

As guerras tornam impossível continuar vivendo no território, devido à violência, à contaminação do solo, à pobreza, entre outros. Como última alternativa, as pessoas se deslocam em busca de uma vida com dignidade. Pessoas fugindo de conflitos violentos são vistas pelos governos de outros países como números, que devem viver temporariamente em seu território sem direitos, como mão de obra barata, ou que devem ser barradas nas fronteiras, às vezes até mesmo assassinadas ao tentar cruzá-las. Com a militarização das fronteiras e a falta de integração dentro dos países anfitriões, as pessoas que migram são privadas de sua própria autonomia.

Uma das primeiras políticas implementadas pelo Talibã foi a proibição da poesia e das artes. Escrever poesia está proibido no Afeganistão desde que o Talibã assumiu o poder. Para as mulheres, a situação é ainda pior: a prática é considerada vergonhosa e pode resultar em espancamentos e até mesmo na morte. As mulheres não podem sequer caminhar livremente sob o regime Talibã; elas devem estar acompanhadas por um mahram, um membro masculino da família. Assim, a poesia é uma ferramenta importante para a justiça social, especialmente em um momento em que é necessário imaginar novas possibilidades de integração e convivência.

A poesia oral reflete as experiências de vida das comunidades, adaptando-se às dinâmicas locais e regionais. Há uma história diversificada e rica de poesia entre tajiques, hazaras, uzbeques, aimaqs, turcomanos, baluchis, nuristanis, sadats, quirguizes e árabes, com suas tradições. Na poesia popular do Afeganistão, as mulheres são escritoras e criadoras ativas. As mulheres afegãs têm usado a poesia para se rebelar, expressar desigualdades e também como uma ferramenta de comunicação do movimento feminista.

Em A pérola de dari: poesia e personalidade entre jovens afegãs no Irã [The Pearl of Dari: Poetry and Personhood among Young Afghans in Iran] (2015),Zuzanna Olszewska explica como a poesia de pessoas refugiadas da década de 1980 abriu caminho para uma poesia lírica mais subjetiva, resultando em uma proliferação de formas, gêneros e estilos, com experimentação, crítica, questionamentos e descoberta de identidades. Existem alguns coletivos e plataformas virtuais que reúnem textos de mulheres afegãs, como Mulheres Escritoras Livres [Free Women Writers], Projeto de Escrita de Mulheres Afegãs [Afghan Women’s Writing Project], Garotas de Plaza [Plaza Girls], Poesia da Sala Vermelha [Red Room Poetry] e BaamDaad Casa da Poesia em Exílio [BaamDaad House of Poetry in Exile].

A poeta Somaia Ramish nos falou sobre o paradoxo de migrar para escapar de uma guerra: “apesar de nossos corpos estarem fora da geografia da guerra, nossas almas permanecem marcadas pela guerra”. Somaia também destaca a importância da poesia popular para sua mãe quando ela sentia saudade de casa: “Esses poemas tradicionais foram transmitidos de geração em geração. Essa poesia não está escrita em livros, mas existe nos corações de nossas mães e avós”. No poema abaixo, Somaia Ramish escreve sobre a “geografia da guerra”:

Carregue poemas como armas

Carregue poemas como armas – a geografia da guerra te chamapara se munir.
O inimigo não dá avisos,
contra-avisos,
cores
sinais
símbolos!Carregue poemas como armas –
cada momento é carregado
com bombas
balas
explosões
sons de morte –
morte e guerra
não seguem regras
você pode transformar suas páginas em bandeiras brancas
mil vezes
mas engula suas palavras, não diga mais nada.
Carregue seus poemas –
seu corpo –
seus pensamentos –
como armas.
As escolas de guerra se levantam
dentro de você.Talvez você
seja a próxima.

Para Somaia, seu país é uma parte de sua existência, e “o desejo de voltar para casa está enraizado no coração”. Segundo ela, a poesia pode criar novas realidades para um lar que foi destruído. A esperança de ver novamente o Afeganistão como um lugar com liberdade está presente na poesia de diferentes maneiras. Um poema escrito por outra autora, Hosnia Mohseni, expõe isso. Ele presta homenagem à escritora do século 10 Rabia Bhalki, conectando passado e futuro. Rabia foi a primeira mulher poeta persa de que há registros, e que foi morta por seu irmão por se apaixonar e por escrever poesia.

Um dia melhor virá

Irmã,
Chegará o dia em que você e eu voaremos
Sobre as montanhas orgulhosas de nossa terra.
Chegará um dia em que as portas não estarão trancadas
E se apaixonar não será um crime.

Você e eu deixaremos nossos cabelos voarem,
Usaremos vestidos vermelhos,
E inebriaremos as aves
De nossos desertos vastos
Com nossas risadas.
Vamos dançar entre as tulipas vermelhas de Mazar
Em memória de Rabia,
Esse dia não está longe.
Talvez esteja dobrando a esquina.
Talvez esteja em nossa poesia.

Clarice Rangel Schreiner é brasileira vivendo na Turquia e militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Via Capire.

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