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O efeito Pablo Marçal | Luis Fernando Vitagliano

Nosso sistema partidário fragmentado permite que forasteiros entrem com facilidade no sistema com objetivos claros de ganhos pessoais.

Foto: Tan Danh

Nosso sistema partidário fragmentado permite que forasteiros entrem com facilidade no sistema com objetivos claros de ganhos pessoais

Quando um desacreditado Donald Trump crescia nas primarias do partido republicano em 2016 e ninguém acreditava muito na sua ascensão, um artigo ficou famoso por antecipar sua vitória. Não se tratava de previsão, mas de uma análise que apresentava “cinco razões pelos quais Trump será o próximo presidente”[i] de Michael Moore para o Huffington Post e argumentava em favor da força política que Donald Trump estava adquirindo e que muitos de nós não víamos.

A quinta razão apontada por Michael Moore talvez ajude a explicar o efeito Pablo Marçal das eleições paulistanas e o momento político das eleições municipais: vamos chamar de “efeito Jesse ‘Body’ Venture”, o performático ex-governador de Minnesota.

Em 1998, o candidato Jesse Ventura, do Partido da Reforma (uma espécie de partido independente sem expressão nos EUA), venceu com 37% dos votos a eleição para governador do Estado de Minnesota, deixando os concorrentes do partido Republicano com 35% dos votos e do Partido Democrata com 28%.

Jesse Venture, quando anunciado o resultado da sua vitória, discursou algo que soa familiar aos ouvidos brasileiros em tempos de ascensão da extrema direita: “Nós vamos chocar o mundo. Vamos parar com o jogo político feito por republicanos e democratas e fazer o que é certo para as pessoas”.[ii] Críticas ao sistema político, invocação à autenticidade, a “parar o jogo político” seja lá o que essas palavras queiram dizer em termos de conteúdo estão entre os trejeitos dos candidatos da antipolítica que ganham muita audiência em tempos de campanha eleitoral e são péssimos administradores.

O improvável Jesse “The Body” Ventura foi ator, lutador profissional de wrestler (aquelas lutas livres coreografadas) e apresentador de televisão. Tinha fama, popularidade e aquela típica revolta contra o sistema político, com palavras de ordem firmes e acalentadoras. Politicamente era inexperiente, não tinha base social nem formas de organização política, não havia sido candidato a nada e aparentemente se meteu em política mais por vaidade ou falta de opção do que por interesse em participar da vida pública coletiva.

Jesse Ventura foi pioneiro na plataforma digital da anti-establisment, antimídia, antipolítico de carreira[iii]. O resultado da administração Jesse Ventura, assim como sua ascensão, faz parte deste padrão conhecido e ignorado: aparece como uma grande novidade que vai resolver todos os problemas da política, faz uma gestão confusa e fracassada para não conseguir para contrariar também as expectativas posteriores e não conseguir a reeleição.

Jesse Ventura não se elegeu à base das cultuadas fake news ou com ajuda dos algoritmos das redes sociais, tinha a internet como aliada e inovações na propaganda de televisão e, principalmente, sabia chamar a atenção. Seus grandes aliados eram a fama pregressa e o discurso virulento da antipolítica – a internet lhe deu um palco maior que anteriormente alguém de fora das instituições tradicionais não teria.

Recorrer a essa história e lembrar aos analistas de última hora que a internet é fator impulsionador, mas não a causa da ascensão política de outsiders da antipolitica é importante porque mostra relações de causa e efeito reais, e não as justificativas imaginadas pela incompreensão da conjuntura.

Dito de modo explícito: ascensão de Pablo Marçal nas eleições municipais de São Paulo tem elemento de conteúdo (discurso) e capacidade de comunicação explosiva e as redes sociais são elementos que se agregam a isso de forma satélite. Embora a forma e o conteúdo possam convergir e se alimentar, a questão aqui é o tipo de narrativa que se concentra em questões da antipolítica e não da gestão cotidiana.

Pablo Marçal tem discurso ajustado às frustrações com a política e usa as redes sociais e a comunicação digital, como principal trunfo para fazer coro a um sentimento popular de que a política é algo sujo e nefasto ao se propor a fazer política sem a política. Em relação a essa estratégia, estamos lidando com uma tentativa de capturar um sentimento consolidado, muito presente nas redes sociais e, nesse sentido, difícil de dissipar.

A forma mais eficiente de lidar com isso não é vencer o debate nas redes. Porque não dá tempo de reverter isso em menos de dois meses. Além disso, o que se coloca nas redes sociais nem sempre é o que se considera nas urnas. Por isso, é importante direcionar o debate para a política e chamar a atenção para as consequências concretas das ações. Isso porque existe certa infantilidade nas eleições que ganham foco nas redes sociais: todos querem os benefícios sem considerar os custos. Por isso, é importante prometer menos e mostrar mais os efeitos das escolhas de gestão.

É preciso reconhecer que a internet usada a partir das ferramentas digitais das big techs não é um espaço de democracia, mas de opressão da diversidade pelo volume de publicação (que nem podemos chamar de maioria). Nesse ambiente, Pablo Marçal sabe tornar suas ideias estapafúrdias em dominantes.

É a primeira vez que a família Bolsonaro encontra alguém que supera sua falta de limites na disputa por atenção digital. Aliás, um elemento do engajamento é justamente ser estapafúrdio para se tornar engajado e com isso ganhar volume. O volume faz as máquinas da internet entender aqueles conteúdos como verdadeiros.

Ciente desse mecanismo, Pablo Marçal não precisa ter argumento ou razão, precisa ter engajamento. Mas, engana-se quem considera isso como falta de argumento. Voltemos ao caso Jesse Ventura. A forma mais rápida de engajar é pregar a antipolítica. Isso permite chamar a atenção e gerar polêmicas que alimentam o debate no sentido que quer o forasteiro.

A respeito das dificuldades atuais da esquerda em lidar com esse quadro, que permite a aparição dos influencers candidatos de primeira viagem, permita-me o leitor um comentário bastante pessoal a respeito desse debate: o que mais me impressiona é que passados pelo menos oito anos do impacto do uso das plataformas digitais  pela extrema direita, as forças progressistas ainda se deparem com a dificuldade e o estranhamento em lidar com as campanhas digitais se mostrando verdadeiros dinossauros em tecnologia.

Enfim, lidar com esses aproveitadores é cada vez mais comum em tempos de impulsionamento da internet. A fórmula que associa a fragilidade institucional com o alcance das plataformas digitais permite efeito perverso na democracia: aproveitadores passando-se por democratas. No Brasil, com as redes sociais, pode ser cada vez mais comum a candidatura de Dória’s, Bolsonaro’s e Marçal’s.

Sistemas políticos mais sofisticados colocam crivos entre as pretensões egoístas dos forasteiros e a capacidade que desenvolvem para furar a representação coletiva institucional e se aventurarem individualmente no espaço público. Nosso sistema partidário fragmentado permite que forasteiros entrem com facilidade no sistema com objetivos claros de ganhos pessoais. De modo geral, as democracias mais antigas e consistentes tem longa tradição em lidar com os aventureiros.

Em síntese, o que produz um Pablo Marçal não são seus discutíveis trejeitos de gestor, mas o contexto estridente de subcelebridade digital forjado na internet e que rompe o filtro das instituições, mas a atual crise de representação que não é capaz de responder a demandas populares concretas. A resposta política ao avanço das redes sociais não tem que ser eminentemente nas redes sociais, mas na realidade concreta, na boa defesa de propostas com base em diagnósticos que tenham impacto no cotidiano.

Pablo Marçal não tem que ser vencido na internet. Tem que ser vencido no voto. Isso passa pela internet? Em certo sentido, sim. Mas, não com o mesmo tipo de campanha que ele faz. Não é preciso ter mais engajamento que ele. É preciso ter mais objetividade que ele. Nem sempre popularidade de rede se converte em popularidade de votos.

Ser um coach pode fascinar uma legião de pessoas. Uma parte dela pode até se confundir achando que as mesmas habilidades que tornam um coach virtual rico, o fariam bom prefeito, mas essa correlação não é direita, nem consensual e, quando convidadas as pessoas a refletir, facilmente desmontável. Basta ver que esses aventureiros em geral não se reelegem, porque fazem uma administração pífia.

Então, uma coisa é a política. Que vai definir que vai representar certos ideais na disputa eleitora em São Paulo. Parece claro que o representante das propostas progressistas, de esquerda e centro-esquerda estão representadas na candidatura de Guilherme Boulos. Cabe saber se a ingerência midiática de Pablo Marçal terá folego para colocá-lo em condições de disputar o espaço da direita na disputa municipal. Isso é um problema que as propostas do neoliberalismo terão que discutir, cabe a campanha das esquerdas se posicionar em relação à cidade.

Pablo Marçal é um problema da direita. Das pessoas que não acreditam que a política está sempre errada e as empresas sempre certas, das pessoas que não consideram a necessidade das instituições regularem o espaço publico. Nunes não é tão diferente, embora se posicione com menor intensidade, mas também é um indivíduo sem história e sem compromisso que concorre a um cargo público para ganhar vantagens individuais – oferece vantagens individuais para ganhar o orçamento da cidade. Se esses valores se sobrepuserem ao valor público da democracia, Guilherme Boulos ou qualquer candidato progressista não terá a menor chance.

Precisamos oferecer propostas alternativas e uma visão de espaço público clara. Nessa disputa que estão no submundo da disputa principal das eleições estamos muito atrasados na internet, que tem se tornado campo de expansão de ideologias devastadoras dos ideais republicanos – especialmente no Brasil onde esses ataques encontram menos resistência e onde a direita tem discutido estridentemente temas do neoliberalismo; enquanto as esquerdas se apequenam nessa disputa. Que é parte do argumento que sustenta que saímos sempre atrasados nas disputas das redes.

No final, uma coisa acaba se somando a outra e o risco desta campanha na cidade de São Paulo é contagiar o país com mais um revés através do efeito Jesse Ventura, que faz com que o debate caminhe para a criminalização da política, que elege uma pessoa despreparada e mal intencionada para a gestão pública e deixa como herança mais uma gestão desastrosa, que alimenta a antipolítica e se soma ao ciclo de desestabilização da principal cidade do país numa rota da decadência social, política e econômica.

Luís Fernando Vitagliano é cientista político e professor universitário.

Via A terra é redonda

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