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Para resgatar os sentidos de uma só saúde | Túlio Batista Franco

Conceito de origem ameríndia foi incorporado pela OMS. Mas, ao fazê-lo, a agência secundarizou elemento central: a unidade indivisível da natureza com o corpo humano. Retornar à radicalidade do termo exige combater a ganância do capital.

Fotografia de Araquém de Alcântara, em seu livro Amazônia das Crianças

Volto ao tema porque tem sido frequente a citação do conceito da Organização Mundial de Saúde (OMS), de One Health, traduzido para “Uma só Saúde”, ou “Saúde Única”. Mas vejo que, embora muito discutido, o termo ao ser incorporado pela OMS foi desidratado do seu sentido original ameríndio, e ganhou uma simplificação que lhe tira a força disruptiva sobre a ação predatória e necropolítica da economia neoliberal.

Nossa discussão começa por lembrar os termos da OMS sobre o conceito de “Uma só Saúde”:

[…] uma abordagem integrada e unificadora que visa equilibrar e otimizar de forma sustentável a saúde de pessoas, animais e ecossistemas.
Ao vincular humanos, animais e o meio ambiente, a One Health pode ajudar a abordar todo o espectro do controle de doenças – da prevenção à detecção, preparação, resposta e gerenciamento – e contribuir para a segurança da saúde global. (OMS)1

A OMS se inspira no pensamento indígena para formular o conceito “uma só saúde”, mas ao transportar a ideia original para suas páginas, não o apresenta na sua forma genuína, onde a natureza é constitutiva do corpo, como se pode ver no pensamento do povo amazônico do Alto Rio Negro:

Uma expressão usada pelos kumuã [pajés] quando me falaram sobre os elementos imateriais que constituem o corpo foi manhsã kahtise. A expressão era para dizer que as formas de luz, floresta, terra, água, animais, ar eram os elementos constitutivos do corpo humano. Este é o sentido adotado nesse trabalho, que o corpo é síntese de todos os elementos. (Barreto, 2021)2.

Na cosmologia ameríndia o corpo é uma unidade cósmica, indivisível, dando formação a um corpo-natureza, ou como diz Eliane Brum, “corpo-floresta”. Sendo assim, a defesa das vidas deve pressupor a convivência harmônica entre humanidade e natureza, o que coloca em questão o sistema extrativista predatório, que se coloca acima dos interesses humanitários de “bem-viver”.

Bem-viver é um conceito que tem origem nos povos andinos Kíchwa, e propõe uma ruptura civilizatória calcada na utopia de uma vida saudável, tão necessária em tempos distópicos, e na urgência de se construir sociedades verdadeiramente solidárias e sustentáveis, como nos diz o ex-ministro do Equador, Alberto Acosta. A solidariedade entre os povos tem sido pensada como um antídoto à centralidade da concorrência neoliberal, e deve ser um vetor de construção de políticas governamentais direcionadas à proteção da vida. Uma política que tem os pressupostos de “uma só saúde”, que supõe a preservação do ambiente, proteção das comunidades autóctones, não seria uma política setorial – ou seja, mantida apenas pela Saúde – mas de todo governo, contando ainda com o protagonismo da participação social.

“Uma só Saúde” tomando por referência a radicalidade do conceito, tal como na sua origem ameríndia, enfrenta a ganância do capital seja na sua política extrativista, seja em manter sistemas produtivos altamente tóxicos ao ambiente. Impedir a extração de nióbio com tem sido feito, por estar localizado em território indígena e dentro das áreas de proteção ambiental, da mesma forma questionar a exploração de petróleo na Bacia da Foz do Amazonas, situada dentro da margem equatorial, são questões que estão à frente da ideia de proteção à vida nos termos do conceito “Uma só Saúde”.

Voltando ao termo tal como concebido pela OMS, considero um avanço importante incorporar ao conceito de saúde os componentes da defesa da vida de animais e o ambiente, além dos humanos. No entanto, é preciso recuperar a força original de “Uma só Saúde”, e adotar ações orientadas por esta ideia. Denunciar mais enfaticamente a ação agressiva e danosa à vida perpetradas pelas grandes corporações e propor medidas para frear sua ação predatória. Vivemos em um mundo em que ninguém tem mais segurança sobre o seu futuro, já que nossa era, Antropoceno, é caracterizada pelo avançado aquecimento global. Ele alterou a conformação físico-química do planeta, por ação humana, ocasionando eventos climáticos extremos, como se vê, além de vivermos sob ameaça de novas pandemias. A perda de vidas que tem origem no desequilíbrio ambiental já é uma triste realidade, e precisa de ações enérgicas dos governos para alterar o curso desta história.

Niterói, 03.09.2024

Túlio Batista Franco é professor titular e Diretor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense. Membro da Frente pela Vida.

Via Outras Palavras.

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