A sociedade de mercado

Luiz Marques

A Revolução Industrial destampou a caixa das obras de ficção científica, em função das inovações tecnológicas postas em marcha. Dois séculos depois, a distopia é parte de nosso cotidiano. O filme alemão, Paraíso (2023), dirigido por Boris Kunz, excelente na avaliação da Netflix, é emblemático dos medos que nos espreitam sob a mercantilização ampla, geral e irrestrita qual uma pandemia. 

No longa, uma corporação global explora o desejo de ascensão social das criaturas em situação de vulnerabilidade, na Europa, comprando anos de suas vidas. Os doadores (refugiados) envelhecem enquanto os receptores (milionários) rejuvenescem. Na abertura, vê-se um funcionário persuadir um jovem a vender quinze anos de existência, em troca do conforto à família que torce pelo “sim”.

Para os neoliberais, a pobreza é um problema – dos pobres. Ao revés de políticas redistributivas do Estado, para aumentar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), postulam um acordo com o diabo para a mutilação corpórea (olhos, pulmões, etc) a fim de elevar a renda dos miseráveis com órgãos do corpo. Barrigas de aluguel são comercializadas. A travessia do Rubicão já aconteceu.

Em A tirania do mérito (2020), no capítulo “A retórica da ascensão”, Michel Sandel relata o debate em sala de aula, na Universidade de Harvard. “Meu tema era sobre os limites morais dos mercados. Manchetes haviam reportado a história do adolescente que vendeu um dos rins para comprar um iPhone e um iPad”. Essa é a versão prática da visão de mundo hegemônica, em tempos de cólera.

Vários estudantes assumem a posição libertarista de que se o doador concorda em vender um rim, sem pressão ou coação, não tem nada de errado. Outros discordam – é injusto os ricos prolongarem a vida com a máquina de moer do darwinismo social, às expensas dos desvalidos. Alguns ponderam que os ricos com posses, havendo galgado lugares proeminentes na rígida hierarquia, merecem a longevidade ao contrário da massa ignara. A discussão viola prerrogativas vitais e inalienáveis de cada pessoa. Exceção aberta para os gestos de genuína empatia ou amor por um ente querido.

“Fiquei surpreso com a aplicação descarada do pensamento meritocrático”, exclama o filósofo norte-americano. Nem era para tanto. Em templos religiosos, onde o evangelho da prosperidade se abriga, a saúde e a riqueza sempre foram abordadas como dádivas divinas. Hoje o que importa não é decifrar de onde viemos, quem somos ou para onde vamos. A pergunta que interessa é – quanto?

Em livro anterior, O que o dinheiro não compra (2012), o autor tinha ligado o alerta. “Vivemos a época em que quase tudo pode ser comprado ou vendido”. Cita escolas, hospitais e prisões inseridos no cálculo do lucro; terceirização da guerra a empresários militares privados (Afeganistão, Iraque); guardas particulares que somam o dobro da força policial pública (Estados Unidos, Grã-Bretanha). Acrescente-se o mercado de direitos de emissões de carbono no meio ambiente e os mecanismos de compensação. O que inicia na “economia de mercado” acaba na insensível “sociedade de mercado”.

Reativar a antítese

O sentimento de náufrago dos que sofrem o sequestro das funções do Estado beneficia o status quo. Dados os carecimentos objetivos e subjetivos, a mera reprodução da força de trabalho é um milagre. Continuar respirando, apesar da precarização trabalhista, demonstra fibra e resiliência. Porém, não uma consciência situacional no contexto em que se esvai qualquer chance para o pacto de classes.

Na batalha diária pela sobrevivência, a supercompetição exalta o vencedor (winner) e estimula os demais a fugirem da triste condição de perdedores (losers). O fato de achar energia todas as manhãs para levantar suscita a sensação de missão cumprida no batalhador: “aquele que trabalha muito”, segundo o Dicionário Houaiss. Quem labuta nos aplicativos exige o justo reconhecimento. Cabe interpelar e não atropelar a categoria em tela com um doutrinarismo abstrato, sem os pés no chão.

O mercado reinstaura o fosso entre “grandes” e “pequenos”; radicaliza o retrocesso civilizacional. O ritual democrático da “fila” se esvanece. Os passageiros de “primeira classe” do avião furam a série da checagem. Nos parques temáticos, um ingresso turbinado burla a sequência de acesso a shows e brinquedos. As políticas neoliberais de Margaret Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (EUA) legitimaram a arrogância meritocrática. Agora o poder do dinheiro compra as leis e refaz a ética.

Confrontada com a igualdade, a desigualdade passa a ser preferível para a potencialização das individualidades e das coletividades. A liberdade deixa de ser um predicado coletivo para elaborar um juízo autônomo, à medida que é apropriada por agentes econômicos. A fraternidade é suprimida da agenda institucional. A esfera social antes sólida, desmancha no ar. Prefeitos seguem a moda e privatizam os serviços em troca de publicidade à espera do lance maior no leilão – ou de propinas.  

Os riscos são repassados aos indivíduos, em vez de às empresas ou ao Estado. O álibi costuma ser a “modernização”: leia-se a retirada de direitos adquiridos, com o aval das instituições. O período de vida surrupiado da população, com a degradação dos meios de subsistência, é um crime de lesa-humanidade. No Mapa da Desigualdade, os moradores de Tiradentes no extremo leste de São Paulo morrem 23 anos mais cedo do que os de Moema, bairro elegante da capital paulistana. Iniquidades abreviam o finamento dos cidadãos, na periferia. O Bope é apenas a face truculenta do eugenismo.

Achille Mbembe trata o mote em Políticas da inimizade (2020). “A expressão máxima da soberania reside no poder e na capacidade de ditar quem deve viver e quem deve morrer”. No neoliberalismo, o cetro do soberano é o “necropoder” ou a “necropolítica”; preconceitos e extermínios decidem a mortalidade. Os critérios da mercadoria e a ideologia mercadológica se convertem em pilares da dominação atual. Aporofobia, racismo e sexismo servem à depuração na sociedade de mercado. 

O motivo para o vazio moral da política é o banimento dos ideais de bem comum e de participação popular, nos discursos públicos. Cabe à análise política contemporânea travar a disputa por valores para superar as fórmulas positivistas. Há que impedir uma banalização do mal para construir a nova “soberania”, com respeito à democracia pluralista e à diversidade do Homo sapiens em combinação com os princípios da República e da Natureza. É preciso reativar a antítese do sistema de opressão com políticas da amizade inclusivas, que universalizem direitos e coíbam privilégios. Sem anistia.

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.

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