A gentrificação que transforma radicalmente grandes cidades contemporâneas, impulsionada por políticas neoliberais de financeirização do espaço urbano, pode ser mais plenamente compreendida quando inserida num quadro histórico mais amplo de desenvolvimento do capitalismo. Para essa empreitada, voltar a autores clássicos da crítica anticapitalista, como o alemão Friedrich Engels (1820-1895), oferece uma ferramenta analítica poderosa para desvendar a natureza cíclica e estrutural desses processos de expropriação espacial.

Frequentemente lembrado como um dos fundadores, ao lado de Karl Marx, do materialismo histórico, em sua obra seminal A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, publicada em 1845, longe de representar apenas um registro histórico das condições do proletariado no século XIX, é, acima de tudo, um relatório sensível e analítico sobre como a industrialização reorganiza o espaço urbano e a vida cotidiana das classes populares. Ainda que escrita num contexto histórico muito distinto do atual, o livro oferece categorias e intuições que permanecem surpreendentemente úteis para compreender um fenômeno atual: a gentrificação nas cidades submetidas às lógicas do neoliberalismo. Longe de sugerir uma equivalência histórica total, o exercício que proponho aqui é o de extrair dos procedimentos analíticos de Engels, como a atenção às relações entre capital e habitação, trabalho, saúde, moralidade urbana, etc., pistas para decifrar como a circulação do capital reconfigura territórios, faz deslocar populações e transforma usos do solo em mercadoria.
Engels descreve com uma inédita precisão a morfologia social das cidades industriais: confinamento de trabalhadores em habitações insalubres, sobreposição de função residencial e produtiva, ausência de infraestrutura adequada e uma visível violência simbólica e material contra a vida dos pobres. Importante para o diagnóstico contemporâneo é a visão de Engels sobre o capital como agente transformador do espaço. A cidade não é uma mera cena onde ocorrem conflitos sociais, mas o próprio produto das relações de produção. A sua denúncia da especulação imobiliária ainda incipiente, da “lógica do lucro” que determina onde e como vive a população, encontra nos processos de gentrificação do século XXI uma continuidade.
Pelo menos três elementos do diagnóstico engelsiano permitem alguns paralelos conceituais que ajudam a iluminar a gentrificação. Primeiro, a commodificação do abrigo e a produção de moradia como mercadoria. Engels já assinalava como o preço e a qualidade das habitações eram determinados por interesses capitalistas. Hoje, a moradia foi ainda mais profundamente mercantilizada, o alojamento torna-se ativo financeiro, alvo de investimento e especulação, o que eleva preços e transforma bairros populares em oportunidades de lucro. Outro elemento é segregação socioespacial. A descrição de bairros operários, suas margens e canalizações de pobreza, lembra as transformações contemporâneas onde áreas centrais e históricas, antes marginalizadas, tornam-se alvo de intervenções que privilegiam classes de maior poder aquisitivo, expulsando os antigos moradores. E o terceiro aspecto são os riscos à vida e à saúde como externalidades. Engels relacionava condições de habitação com mortalidade, morbidade e desestruturação social. A gentrificação contemporânea produz externalidades sociais semelhantes: aumento do custo de vida, perda de redes de sociabilidade, precarização residencial e efeitos negativos sobre a saúde mental e física de populações deslocadas.
A gentrificação constitui um processo essencialmente violento de transformação urbana, movido pela ambição econômica e sustentado por forças políticas paralelas enraizadas em justificativas ideológicas de renovação, ressurreição e limpeza social da cidade. Este tem sido um dos principais mecanismos neoliberais de políticas urbanas e arquitetura do mercado. Embora Engels não tivesse previsto instrumentos atuais — títulos lastreados em hipotecas, fundos de investimento imobiliário, turismo de curto prazo, parcerias público-privadas, incentivos fiscais à requalificação imobiliária — sua ênfase nas regras do capital explica o surgimento desses mecanismos. As administrações neoliberais, ao priorizar atração de investimentos privados e “revitalização” via mercado, promovem políticas que convergem com os interesses da propriedade: requalificação de áreas centrais com isenções fiscais, transformação de uso do solo para consumo e moradia de luxo, privatização de espaços públicos e estímulo à economia criativa como justificativa cultural para intervenções que têm, no fundo, função de valorização imobiliária. O resultado é um ciclo: investimento → valorização → expulsão → nova oferta voltada a público com maior renda.
Engels olhava também para dimensões morais e culturais, tais como formas de vida, hábitos, higiene, etc. como campos de disputa. No presente, a estética urbana (cafés “artesanais”, boutiques, galerias e etc.) funciona como uma linguagem de legitimação para a transformação de bairros. Assim, a requalificação estética mascara a função social real (aumento de renda do solo) e produz narrativas de “revitalização” em que a presença popular é descrita como “obstáculo” ao progresso. A gentrificação articula, assim, estética e economia em uma estratégia que naturaliza a expulsão.
Engels não só diagnosticava, mas indicava a necessidade de organização coletiva e ações políticas para enfrentar a miséria. Transposto ao tema da gentrificação, esse legado aponta para a centralidade de políticas públicas orientadas pela garantia do direito à moradia, regulação da ocupação do solo, controles de aluguel, e iniciativas comunitárias que preservem o tecido social, além de formas de mobilização popular que denunciem a privatização do espaço comum. Ler Engels hoje, portanto, não é projetar mecanicamente sua época sobre a nossa, mas aproveitar sua sensibilidade analítica: observar como o capital se inscreve no espaço urbano, transforma moradias em mercadorias e cria condições de vida adversas para as classes populares. Engels oferece categorias — exploração, acumulação, produção social do espaço — que permanecem heurísticas poderosas para interpretar a gentrificação contemporânea quando articuladas às especificidades do neoliberalismo financeiro.
Erick Kayser é Mestre em História e Membro da Executiva e Secretário Geral do PT de Porto Alegre