Combinando perdão imediato, mitigação de pena para a multidão e trava que impede a soma de crimes, o projeto aprovado pelo Congresso converte o maior ataque recente à democracia em um precedente permissivo. A mensagem enviada aos radicais é clara: vale a pena tentar de novo.

A votação ocorreu às 2h da madrugada desta quarta-feira (10), com placar de 291 votos a 148, após horas de negociações e pressão articulada. A aprovação consolida uma mudança estrutural na forma como o país reage a ataques contra o Estado democrático de direito — não só apagando o passado, mas facilitando o futuro.
E a intenção de apresentar a anistia como mera questão de “dosimetria” foi explicitada pelo próprio relator. Paulinho da Força disse ao ICL Notícias: “Eu só não chamo de anistia, mas libera todo mundo.” A frase desmonta a estratégia retórica construída no plenário e confirma, na prática, o objetivo político central da medida.
O advogado criminalista e mestre em direito Wellington Arruda explica que o texto cria dois tipos de benefício distintos. “Olha, o projeto gera dois tipos de benefício diferentes, e isso precisa ser separado para evitar ruído”, afirma. O primeiro é a anistia política: “A anistia alcança quem participou de manifestações políticas entre 30/10/2022 e a data de vigência da lei. Nesse ponto, o efeito é total: extingue o processo ou a pena.”
Ele reforça que não há lista de crimes automaticamente incluídos ou excluídos: “Quais crimes entram? Depende do caso concreto, porque precisa haver vínculo direto com o caráter político da manifestação. O texto não cria exceções específicas, então cada situação será analisada individualmente.”
O segundo bloco refere-se aos crimes cometidos em contexto de multidão. Segundo Arruda, “aqui o projeto prevê uma redução de pena de 1/3 a 2/3, mas só para quem não organizou, não financiou e não liderou nada. É para o participante comum”. Esses episódios podem envolver crimes como dano, incêndio sem resultado hediondo e associação criminosa comum, desde que vinculados ao tumulto coletivo. Complementando esse ponto, ele destaca que o texto determina que “quando vários crimes forem cometidos no mesmo contexto, aplica-se concurso formal — o que evita a soma de penas e naturalmente reduz o total”.
Para Arruda, esse arranjo jurídico replica de forma quase cirúrgica o ambiente do 8 de janeiro. “O ponto sensível está no efeito combinado dos dispositivos voltados a atos praticados em massa”, afirma. “O que o texto faz é: 1) conceder anistia política agora; 2) reduzir pena para quem agir em contexto de multidão sem liderança; 3) impedir a soma de penas quando vários crimes forem cometidos no mesmo episódio.” E conclui: “Esse tripé atinge diretamente o tipo de dinâmica que a gente viu no 8 de janeiro: muita gente sem papel de comando, cometendo vários crimes simultâneos dentro do mesmo tumulto.”
O criminalista também alerta para o impacto prospectivo: “Então, sim, o PL reduz o custo jurídico de uma nova mobilização golpista, porque: a massa (que é quem executa) ganharia redução de 1/3 a 2/3 da pena; os crimes praticados no mesmo episódio não seriam somados; e o precedente da anistia cria um incentivo político.” E completa: “Ou seja: não é que o texto ‘autorize’ um novo golpe, mas ele torna a punição futura muito mais leve para exatamente o tipo de participante que dá volume aos atos. A preocupação é legítima. A leitura técnica leva a essa conclusão.”
Diante dessa estrutura e das próprias declarações do relator, constitucionalistas avaliam que o projeto dificilmente sobreviverá ao controle do Supremo Tribunal Federal caso seja judicializado. A fragilização da proteção ao Estado democrático de direito é evidente no conjunto descrito por Arruda e se soma à análise do jurista Lenio Streck. Para ele, “uma eventual lei anistiando os golpistas condenados e os processados, como Bolsonaro e outros, é inconstitucional. Um crime de golpe de Estado não é como o que ocorre com crime comum. Fere os objetivos do Estado Democrático de Direito”.
Streck lembra ainda o precedente da ADPF 964, que discutiu o indulto individual concedido ao ex-deputado Daniel Silveira. “Na ocasião, a validade do indulto foi derrubada. Há importantes elementos na ADPF 964. Ali já se declara — inclusive — ser impossível fazer indulto coletivo para réus. Há limitações implícitas à anistia.” O raciocínio se aplica diretamente ao cenário atual: a anistia ampla para crimes contra o Estado democrático violaria limites constitucionais materiais que não podem ser ultrapassados pelo Congresso.
A combinação entre esses elementos — perdão imediato, abrandamento penal para a multidão, blindagem contra o acúmulo de crimes e a admissão do próprio relator sobre a intenção real do texto — produz, segundo especialistas, um sistema incapaz de dissuadir futuras rupturas institucionais. O maior ataque recente à democracia deixa de ser tratado como marco de responsabilização exemplar e passa a operar como manual: um roteiro de baixo risco e elevada tolerância institucional.
Com a aprovação do projeto, cresce a expectativa de que o STF seja acionado nos próximos dias. E, como aponta Streck, o desfecho jurídico parece previsível: a Corte tende a declarar a inconstitucionalidade da anistia por violação direta ao Estado democrático de direito, reafirmando limites que o Congresso decidiu ultrapassar.
Via ICL Notícias