O documento a seguir foi apresentado no debate de conjuntura na reunião do Diretório Nacional do último dia 06 de agosto pela Democracia Socialista. Durante a discussão, os companheiros da Ação Popular Socialista fizeram pequenas emendas ao texto e passaram a defendê-lo conosco, que foi apresentado, de forma resumida, como uma proposta de resolução. O documento aprovado, apresentado por Tarso Genro e Ricardo Berzoini está disponível no Portal do PT.
Foi apresentada também outra proposta de resolução, com encaminhamentos relativos ao filiados envolvidos em casos de corrupção, ao comportamento do partido sobre estes casos e sobre o Processo de Eleição Direta. Reproduzimos também esta proposta.
A questão do partido na crise atual
A questão central na sociedade brasileira continua posta na tríade dependência externa-desigualdade social-Estado a serviço das classes dominantes, ou, de outra forma, na construção da sua superação: desenvolvimento nacional e nova ordem internacional-distribuição de renda-democracia participativa. É da incapacidade de o governo Lula fazer avançar a resolução deste tríplice desafio que nasce a crise atual. E a incapacidade do governo reflete a incapacidade do partido.
O balanço do governo Lula sempre foi contraditório, revelando suas limitações e possibilidades de avanço. Face a dependência, ao mesmo tempo que bloqueou o processo ALCA acentuou a submissão ao FMI e ao capital especulativo; ao mesmo tempo que avançou em algumas reformas distributivas e no nível de emprego estabeleceu patamares de lucro altíssimos para o capital, especialmente o financeiro, e alimentou a continuidade da concentração de renda; ao mesmo tempo que dialogou com os movimentos populares manteve intacta a estrutura política do Estado, suas instituições e suas práticas.
Nesse processo, os avanços sempre foram menores que os recuos. E dentre estes o mais grave foi o retrocesso ideológico-programático do partido.
A esquerda partidária de modo geral, e nós em particular, enfrentou essa situação buscando disputar os rumos do partido e do governo, vale dizer, buscando dialogar com a história do PT e com sua base social, com o movimento social que elegeu Lula e buscando imprimir um rumo de esquerda ao processo, sem renunciar, portanto, à disputa.
Este processo foi interrompido com as denúncias de corrupção que vem revelando, por um lado, o quanto é fundamental para um projeto de esquerda a democracia participativa como instrumento de mudança do Estado e de enfrentamento de práticas antigas de corrupção. Por outro lado, expôs o partido à sua maior crise. Ela é uma crise da direção do PT constituída através do campo majoritário, que instituiu e desenvolveu por cerca de 10 anos um modelo partidário que alijou a esquerda das funções principais de direção do partido e que afastou a militância do controle da sua direção e transformou o partido em máquina eleitoral cada vez mais integrada ao Estado. Combinada com a renúncia programática produziu-se uma grande crise. E enquanto não se produzir uma grande superação, isto é, uma nova direção e um novo modelo partidário é uma crise de todo o partido, mesmo que o seu conjunto não esteja envolvido nas decisões tomadas pelo núcleo dirigente do campo majoritário.
Refundar o partido
Defendemos que a crise por que passa o PT é a crise da direção constituída em 1995 e desenvolvida por 10 anos. E que essa crise tem origem no rompimento sucessivo por essa direção de princípios caros à história do PT: democracia interna, militância social, perspectiva socialista. Mais de uma vez afirmamos que levado ao limite o curso dessa direção, proclamada ostensivamente como “campo majoritário”, implicaria em uma refundação do partido, pela direita. Hoje essa situação chegou ao limite, de uma forma inusitada e até inesperada. Sempre pensamos em um conflito programático mais claro. A questão posta hoje é programática mas vem envolvida naquele sentido mais baixo da luta de classes, uma integração silenciosa ao Estado e à ordem.
Se a crise representa ruptura com a história do PT sua refundação não é simplesmente um movimento de volta às origens mas uma nova síntese onde a crítica do modelo “campo majoritário” ocupa um lugar central.
Refundar o partido, reconstruir o partido, é uma tese que inverte o problema colocado até pouco tempo pelo próprio (ex) “campo majoritário”: não é a esquerda que está fora de lugar ou quem deve deixar o partido, mas, ao contrário, quem se colocou contra o partido e quem deve deixar o partido é o núcleo central que dirigia o ex-campo majoritário.
Estamos em uma situação parecida com a que formulamos recentemente sobre as tarefas da esquerda face à crise do neoliberalismo: não basta dizer que um novo mundo é possível mas qual novo mundo é possível.
Do mesmo modo, nossa tarefa central agora é dizer qual nova direção do PT é possível. Ela não pode estar centrada no antigo campo majoritário. Ela deve contar, sim, com uma parcela expressiva que fazia parte ou apoiava aquela composição mas que não cooperou com o seu núcleo central e que hoje cobra mudanças.
Essa nova direção deve estar fundada no esforço da esquerda partidária de defender o programa socialista e democrático histórico do PT, por isso é uma direção de esquerda. Mas não é uma mera somatória dos setores de esquerda.
É preciso produzir a síntese básica de uma direção para o PT antes do PED e sua forma não está definida. Podemos avançar na sua constituição com a elaboração de um programa de reconstrução ou refundação. Podemos avançar colocando esta questão de uma forma clara. Nesse sentido, propomos um movimento de reconstrução socialista do PT e uma conferência nacional para construir uma plataforma comum e definir os setores básicos do esforço para constituir uma nova direção.
Um programa para a refundação do PT
I – Porque refundação do PT?
Primeiro, pela necessidade de uma nova síntese programática.
No seu terceiro ano, o potencial transformador do governo Lula está estruturalmente contido por três dimensões: a força crescente da oposição liberal-conservadora, a presença de posições liberais na gestão da macroeconomia, e a sustentação da governabilidade em alianças conservadoras no Congresso Nacional. Foi à falência a proposta dominante no governo de conjugar o conservadorismo liberal na gestão macroeconômica com processos moleculares de transformações setoriais nas políticas sociais e administração de uma base político social que ia da esquerda a posições conservadoras. Enquanto a oposição liberal-conservadora já se encontra com força para disputar a reunificação de sua base político-social, o governo Lula está em contradição evidente com sua base histórico social. Sem conquistar um novo horizonte programático de transformações para o governo Lula, ele será desmoralizado ou derrotado. O fundamento desta renovação programática só pode ser o PT.
Segundo, pela necessidade da formação de um novo sistema de direção partidária.
Ocorreu uma falência do chamado Campo Majoritário que dirigiu o partido desde 1995. É todo um ciclo histórico da direção que se esgotou, com seu programa, seu modo de dirigir o partido , suas principais lideranças públicas. A expressão deste esgotamento é a quebra da relação básica de confiança do chamado Campo Majoritário com os petistas, com a sociedade democrática brasileira. Toda proposta de renovação da direção partidária que for construída a partir principalmente de uma relação com o chamado Campo Majoritário está fadada a fracassar por se apoiar principalmente em compromissos com o que tem de ser superado.
Terceiro, pela necessidade de uma reconstrução da relação do petismo com sua base histórica.
Há hoje uma forte crise pública de sua identidade programática (seu compromisso real de realizar as transformações que prometia), de sua integridade ética e mesmo da veracidade de seu discurso. As relações de diálogo e interação com a intelectualidade progressista e de esquerda do país, com as lideranças dos movimentos sociais, da Igreja popular estão sob risco de ruptura.
Por que refundar o PT e não criar um outro partido?
Porque estão ainda no campo petista, de sua história, de seus valores, de suas raízes sociais, de suas lideranças os principais fundamentos da esquerda brasileira. A crise do PT é uma crise da experiência mais avançada da história da esquerda brasileira. Entender a crise do PT como terminal seria assumir de partida um horizonte histórico de grave redução da acumulação programática, social e internacional da esquerda brasileira. Por outro lado, seria negar a priori a possibilidade de renovação do petismo antes da experiência ter chegado ao seu limite. Antecipar artificialmente este desfecho implicaria em iniciar um novo período histórico de diferenciação e fragmentação da esquerda brasileira em vários projetos partidários concorrentes. A luta pela renovação do petismo é um processo público de disputa programática que terá no desfecho da crise atual o seu momento inicial.
Toda a dificuldade da situação atual está em que um sistema de direção partidária está falido e nenhuma tendência minoritária tem capacidade por si mesma de substituí-la. Não se trata de encontrar uma liderança pública capaz de sintetizar a resolução da crise. Não existe tal liderança hoje e seria personalizar e mediocrizar a resposta aos desafios colocados pretender cria-la artificialmente. Por isto, a refundação do PT exige a convergência das correntes minoritárias de esquerda do PT e daqueles setores do campo majoritário que podem interagir positivamente com este processo.
O processo de refundação do PT não pode ser concebido como intra-partidário e externo à dinâmica da luta de classes. As suas possibilidades estarão profundamente condicionadas pelo desfecho da crise política atual. Uma vitória das forças neoliberais, com um eventual impeachment do presidente e a desmoralização pública do PT, limitará estruturalmente o campo social imediato desta refundação. Por isto, este processo de refundação se inicia já com a disputa pela saída da crise. O início do processo de refundação do PT é, ao mesmo tempo, a possibilidade de superar a crise política atual derrotando e interrompendo o processo de acúmulo de forças liberal-conservadora.
O processo de refundação programática do PT deve envolver cinco temas conjugados: a renovação e atualização do socialismo petista; uma nova síntese programática de transformação do Brasil; a reconstrução da democracia petista, inclusive de suas organizações de base; a rediscussão do financiamento das campanhas petistas; a renovação das relações do PT com os movimentos sociais.
II – A refundação do PT e a superação da crise política
O grande desafio está em elaborar uma narrativa sobre as origens e saídas da crise alternativa à liberal-conservadora, que vem guiando em geral a cobertura da mídia e o posicionamento do PSDB e PFL. Segundo esta narrativa, a origem da crise está no caráter instrumental e anti-democrático, tendencialmente totalitário, da relação que o PT, chegado ao centro do Estado brasileiro, construiu. Teria se criado, a partir daí, um verdadeiro sistema de corrupção que seria inédito, por sua extensão e volume, na história política brasileira. Este diagnóstico justificaria a desmoralização democrática do PT e, de modo crescente, até o impeachment do presidente Lula, hipótese cuja aproximação se tornaria cada vez mais possível a partir da demonstração das relações de responsabilidade do presidente com o sistema de corrupção montado. Apesar de captar elementos fortes de realidade, o que esta narrativa faz é programatizar o ponto de vista liberal para a saída da crise : a sua superação exigiria o retorno de uma coalizão liberal ao governo capaz de retomar um programa virtuoso de Estado mínimo, capaz de ir extirpando as áreas da corrupção. Este grande retorno do neoliberalismo relegitimado seria conjugado com reformas políticas do sistema partidário eleitoral que permitissem estabilizar o domínio dos partidos liberais-conservadores na cena política brasileira.
Toda a dramaticidade da situação está em que o governo Lula e o sistema de direção petista foram incapazes, por limites programáticos, de construir uma narrativa alternativa à liberal. O segundo foi praticamente paralisado com a desmontagem de seus principais quadros. E o governo Lula, após tentar trilhar o caminho de uma negociação com a oposição liberal-conservadora, construiu um posicionamento para a crise que, na verdade, alimenta a narrativa liberal. Entre os primeiros movimentos estavam o “déficit zero”, o enxugamento dos ministérios, a “despetização” do governo e o diálogo com a oposição. Em seguida, os posicionamentos foram de que a crise estaria centrada no PT e o reforço das alianças conservadoras no Congresso. É interessante como discursos petistas aceitam o campo da narrativa liberal: a origem do problema estaria restrito ao PT ou até mesmo à prática de uma “ética bolchevique”.
Qual a narrativa que responde, de um ponto de vista democrático, às graves denúncias que se avolumaram neste período sobre o governo Lula e o PT?
Em primeiro lugar, não é exato que se trata apenas de erros partidários: trata-se, na verdade, de um sistema de erros a partir da relação do partido com o sistema eleitoral e do governo com sua base parlamentar.
Em segundo lugar, as acusações que pesam sobre o PT e o governo não são excepcionais mas típicas do sistema político e governativo brasileiro: financiamento de campanha, maiorias parlamentares a qualquer preço, métodos de gestão pública. Elas são exatamente típicas do funcionamento e práticas dos partidos liberais e conservadores, como o PSDB e o PFL. Elas resultam do rebaixamento programático do governo Lula aos modos antigos de governar, cristalizados na estrutura do Estado brasileiro e, de modo especial, no governo federal. Não é verdade que utilizou-se de meios conservadores ou instrumentais para apoiar um programa de esquerda no governo.
Se este diagnóstico é correto, resulta:
– os pedidos de impeachment de Lula e de cassação do registro do PT por parte do PSDB e PFL são anti-democráticos e devem ser questionados em sua legitimidade pois estabelecem uma punição diferencial para crimes que são generalizados no sistema político e governativo brasileiro; o compromisso do governo Lula e do PT com a democracia brasileira seria o de permitir a ampla investigação ( o que nunca foi permitido pelos partidos liberais ou conservadores), afastar e punir os responsáveis e construir as condições e compromissos para que tais erros não se repitam.
– a saída para crise está em reformas democráticas do sistema eleitoral (financiamento público de campanha), do funcionamento dos partidos ( fidelidade partidária), de novos modos de gestão pública (com participação ativa da cidadania, controle externo e transparência). Estas reformas não devem ser pensadas como originadas pelo próprio sistema político que resistirá a elas: só pode vir de uma campanha pública pela ética na política e na gestão pública, como foi a campanha das diretas já.
– na linha da “Carta ao povo brasileiro”, o governo Lula deve se movimentar em direção ao cumprimento de suas grandes metas de transformação do país, superando os constrangimentos impostos pela gestão da macro-economia, recompondo a sua legitimidade e base de apoio com os movimentos populares e a sociedade democrática brasileira.
III – Refundação do PT e retomada dos valores socialistas
A crise hoje vivida pelo PT está diretamente relacionada à perda de centralidade ou diluição dos valores socialistas na cultura petista. Esta perda é visível em quatro dimensões da experiência do governo Lula.
Em primeiro lugar, os temas que mais se relacionariam a uma lógica histórica de transição ficaram completamente subordinados na agenda de governo Lula: a democracia participativa e o controle social do Estado; as formas da economia solidária e de auto-governo dos produtores associados; a expansão dos direitos do trabalho contra as prerrogativas do capital exacerbadas no período neoliberal; o avanço das políticas públicas, democraticamente geridas, contrapostas à dinâmica de mercantilização de bens e serviços básicos. Os avanços conseguidos na reforma agrária e na política externa nunca conseguiram ir ao centro da agenda de governo, tendo que superar a cada momento os constrangimentos da agenda liberal da gestão macroeconômica.
Em segundo lugar, a base política de governo, concebida de modo conservador, passou a incorporar partidos fisiológicos que nenhuma relação tem com qualquer luta progressista do povo brasileiro. Em terceiro lugar, o PT aumentou de modo qualitativo a sua dependência dos grandes financiadores empresariais de campanha, em detrimento de sua autonomia programática e organizativa.
Por fim, dirigentes e práticas partidárias passaram a mimetizar comportamentos, atitudes, formas de consumo incompatíveis com um partido de trabalhadores.
O princípio de que a cultura política de um partido não conhece vácuo tem sido amargamente experimentado pelo PT. Se a cultura da emancipação não é permanentemente renovada, os valores mercantis dominantes na sociedade vão ocupando terreno.
Assim, o processo de refundação ou renovação das perspectivas do PT passa sobretudo e em primeiro lugar por renovar as fontes da utopia petista. Vivemos a sólida necessidade da utopia.
O último grande momento de síntese da utopia petista deu-se em 1990 com o documento “socialismo petista”. De lá para cá, o partido e o movimento antiglobalização capitalista viveram experiências ricas que podem alimentar um novo ciclo de renovação das utopias.
IV – A refundação do PT e uma nova síntese programática para o governo Lula
É fundamental para o processo de refundação do PT atualizar o diagnóstico sobre o governo Lula.
É na relação com o governo Lula e o seu futuro que serão centralmente definidas as perspectivas do PT, de sua autonomia a seu horizonte programático, de sua capacidade de renovar o diálogo com suas bases sociais históricas.
Em meio a sua mais grave crise política, em contradição programática ou descolado de suas bases sociais mais importantes, a situação hoje do governo Lula diferencia-se qualitativamente da situação anterior em que a lógica dominante na gestão macro-econômica, com seu poder estrutural de condicionar toda a experiência, sofria o impacto de várias dinâmicas contraditórias advindas de ministérios chaves e estruturantes. O governo Lula esgotou, por sua lógica interna, mesmo apoiada por pressões sociais externas, sua capacidade de renovar-se.
A comunicação midiática direta de Lula, com o movimento sindical e os movimentos populares, é defensiva e carece de uma base política real. A estratégia de concentrar a saída da crise em sua liderança pessoal tem fôlego curto porque não revela uma estratégia que crie uma sintonia e perspectiva de futuro com as lideranças democráticas e populares.
Neste contexto, o reposicionamento do governo Lula em relação a suas bases históricas e sociais é a única garantia de sua continuidade e depende do processo de resgate das bandeiras históricas do PT.
A defesa do governo Lula dos ataques da oposição liberal-conservadora só terá efetividade política se o PT tiver a coragem histórica de declarar para a sociedade brasileira que o programa implementado pelo governo Lula está em contradição e aquém do programa histórico do partido em várias questões fundamentais. Ao mesmo tempo, o PT deve defender – como partido, nas suas bancadas, nas manifestações públicas e no apoio aos movimentos sociais – que o governo se coloque à altura de suas possibilidades históricas, que transite para um novo compromisso programático, ressoldando a sua governabilidade junto a sua base histórica e social e abrindo novas perspectivas para a disputa política no país, incluindo a disputa eleitoral de 2006.
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