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As Lutas de Classes na França (1848-1850): Introdução de 1895

A presente obra de Marx foi sua primeira tentativa de explicação de um fragmento da história contemporânea com a ajuda de sua concepção materialista e partindo dos dados econômicos que a situação implicava.  No Manifesto Comunista, a teoria fora empregada para fazer um vasto apanhado de toda a história moderna, nos artigos de Marx e meus publicados na Neue Rheinische Zeitung nós a utilizáramos para interpretar os acontecimentos políticos do momento.  Aqui, trata-se, em contrapartida, de demonstrar o encadeamento interno das causas no curso de um desenvolvimento de vários anos, que foi por toda a Europa tão crítico quanto típico, vale dizer,  no espírito do autor, de reduzir os acontecimentos políticos aos efeitos de causas, em última análise, econômicas.

Na apreciação dos acontecimentos e da sequência de acontecimentos tomados à história cotidiana, jamais se estará em medida de remontar até as últimas causas econômicas.  Inclusive hoje em dia, quando a imprensa técnica competente fornece materiais tão abundantes,  será ainda impossível, mesmo na Inglaterra, de seguir dia a dia a marcha mundial e as modificações surgidas nos métodos de produção, de maneira a poder, a qualquer momento, fazer o balanço de conjunto desses fatores infinitamente complexos e sempre mutantes, fatores que, a maior parte do tempo, os mais importantes agem, por sua parte, por muito tempo na sombra antes de se manifestar de forma repentina, violentamente, à luz do dia.  Uma clara visão de conjunto da história econômica de um período dado nunca é possível no próprio momento; não se pode adquiri-la senão após o golpe, após haver reunido e selecionado os materiais.  A estatística é aqui um recurso necessário e ela segue sempre em retardo.  Para a história contemporânea em curso muito comumente se estará obrigado a considerar esse fator, o mais decisivo, como constante, de tratar a situação econômica que se encontra no início do período estudado como dada e invariável por ele todo ou de não levar em conta as modificações a essa situação que resultam dos acontecimentos, eles mesmos evidentes, e aparecem então claramente eles também.  Em conseqüência, o método materialista deverá aqui muito seguidamente se limitar a ligar os conflitos políticos às lutas de interesse entre as classes sociais e as frações de classes existentes, implicadas pelo desenvolvimento econômico, e a mostrar que os diversos partidos políticos são a expressão política mais ou menos adequada dessas mesmas classes e frações de classes.

Está bem evidente que essa negligência inevitável das modificações simultâneas da situação econômica, vale dizer, da base mesma de todos os acontecimentos a examinar, é uma fonte de erros.  Mas todas as condições de uma exposição de conjunto da história que se faz sob os nossos olhos encerram inevitavelmente fontes de erros; ora, isso não impede a ninguém de escrever a história do presente.

Quando Marx se lança nesse trabalho, essa fonte de erros era muito mais inevitável ainda.  Acompanhar durante a época revolucionária de 1848-1849 as flutuações econômicas no mesmo momento em que se produziam, ou mesmo conservar uma visão de conjunto, era coisa puramente impossível.  A mesma coisa durante os primeiros meses de exílio em Londres ─ durante o outono e o inverno de 1849-1850.  Ora, esse foi precisamente o momento em que Marx começa seu trabalho.  E, apesar das circunstâncias desfavoráveis, seu conhecimento exato da situação econômica da França antes da revolução de fevereiro, bem como da história política desse país desde então, lhe permitiu fazer uma descrição dos acontecimentos que revela o encadeamento interno de uma maneira que permanece inigualável, descrição que passou brilhantemente pelas duas provas que o próprio Marx lhe impôs em seguida.

A primeira prova teve lugar quando Marx, a partir da primavera de 1850, reencontra o tempo livre para se dedicar aos estudos econômicos e empreende de imediato o estudo da história econômica dos últimos dez anos.  Assim, dos próprios fatos, ele tira uma visão totalmente clara do que até então deduzira, meio aprioristicamente, de materiais insuficientes: para saber que a crise comercial mundial de 1847 fora a verdadeira mãe das revoluções de fevereiro e março[1] e que a prosperidade industrial, restabelecida pouco a pouco desde a metade de 1848 e alcançando o seu apogeu em 1849 e 1850, foi a força vivificante na qual a reação européia adquire um novo vigor.  Essa foi uma prova decisiva.  Enquanto os três primeiros artigos (aparecidos nos fascículos de janeiro, fevereiro e março da Neue Rheinische Zeitung, revista de economia política, Hamburgo, 1850) passam ainda a esperança de um próximo novo impulso da energia revolucionária, o quadro histórico do último fascículo duplo (de maio a outubro) aparecido no outono de 1850 e que foi composto por Marx e por mim, rompe de uma vez por todas com essas ilusões: “Uma nova revolução só é possível após uma nova crise.  Mas ela é tão certa quanto esta.”  Essa foi por sinal a única modificação essencial a fazer.  Não havia absolutamente nada a mudar na interpretação dos acontecimentos dada nos capítulos precedentes, nem aos encadeamentos de causa e feito que estavam estabelecidos, assim o prova a seqüência do relato dado nesse mesmo quadro de conjunto e que vai do 10 de março ao outono de 1850.  Eis porque inseri essa seqüência como quarto artigo dessa nova edição.

A segunda prova foi mais dura ainda.  Imediatamente após o golpe de Estado de Louis Bonaparte de 2 de dezembro de 1851, Marx trabalha de novo na história da França de fevereiro de 1848 até esse acontecimento que marcava provisoriamente o fim do período revolucionário. (O 18 Brumário de Louis Bonaparte, 3ª edição, Meissner Hambourg, 1885.)  Nessa brochura, o período que ele expõe nesta obra é tratado de novo, ainda que de maneira mais breve.  Comparada com a nossa, essa segunda descrição escrita à luz do sucesso decisivo acontecido mais de um ano depois, constatar-se-á que o autor a alterou muito pouco.

O que dá ainda à nossa obra uma importância toda particular, é o fato de ela pronunciar pela primeira vez sob sua forma condensada a fórmula sob a qual, por unanimidade, os partidos operários de todos os países do mundo reclamam a reorganização da economia: a apropriação dos meios de produção pela sociedade.  No segundo capítulo, a propósito do “direito ao trabalho”, que é caracterizado como “a primeira fórmula indireta na qual se resumem as pretensões revolucionárias do proletariado”, pode-se ler:

“Mas por trás do direito ao trabalho há o poder sobre o capital,  por trás do poder sobre o capital a apropriação dos meios de produção, sua subordinação à classe operária associada, vale dizer a supressão do trabalho assalariado assim que do capital e de suas relações recíprocas.”

Portanto, pela primeira vez, encontra-se formulada aqui a tese pela qual o socialismo operário moderno distingue-se netamente tão bem de todas as diversas nuanças do socialismo feudal, burguês, pequeno-burguês, etc., quanto da confusa comunidade de bens do socialismo utópico e do comunismo operário primitivo.  Se, mais tarde, Marx ampliou a fórmula para a apropriação dos meios de troca também, esta extensão que, por sinal, ia por si mesma depois do Manifesto Comunista, exprimia apenas um corolário da tese principal.  Pois, algumas pessoas informadas na Inglaterra ainda acrescentaram ultimamente que se deve transferir também os “meios de repartição” à sociedade.  Seria difícil para esses senhores dizer quais são então esses meios de repartição econômicos diferentes dos meios de produção e de troca, a menos que se esteja falando de meios de repartição políticos, impostos, socorro aos indigentes, compreendida aí o Sachsenwald[1] e outras dotações.  Mas, primeiramente, esses já não são meios de repartição em posse da coletividade, do Estado ou da comuna?  E, em segundo lugar, nós não os queremos fazer desaparecer.

Assim que explode a revolução de fevereiro, nós todos estávamos, quanto à maneira pela qual concebíamos as condições e o curso dos movimentos revolucionários, impressionados pela experiência histórica passada, e notadamente a da França.  Não fora precisamente dessa última, que, desde 1789, havia dominado toda a a história da Europa, que tinha partido outra vez o sinal da sublevação geral?  Assim, era evidente e inevitável que nossas idéias sobre a natureza e a marcha da revolução “social” proclamada em Paris em fevereiro de 1848, da revolução do proletariado, fossem fortemente impregnadas pelas recordações dos modelos de 1789 e de 1830!  E, notadamente, logo a sublevação de Paris encontra seu eco nas sublevações vitoriosas de Viena, Milão e Berlim, depois que toda a Europa até a fronteira russa foi arrastada pelo movimento, logo em seguida no mês de junho a Paris a primeira grande batalha pelo poder se livra entre o proletariado e a burguesia, logo que a vitória de sua própria classe assusta a burguesia de todos os países ao ponto dela se refugiar novamente nos braços da reação monarquista-feudal que se acaba de derrubar, nós não podíamos nessas circunstâncias de então absolutamente duvidar que o grande combate decisivo havia começado, que era necessário livrá-lo num único período revolucionário de longa duração e pleno de alternativas, mas que ele só poderia terminar com a vitória definitiva do proletariado.

Após os fracassos de 1849, nós não partilhávamos em nada as ilusões da democracia vulgar agrupada em torno dos Governos provisórios in partibuis[2].  Estes contavam com uma vitória próxima, decisiva de uma vez por todas, do “povo” sobre os “opressores”, nós com uma luta prolongada, após a eliminação dos “opressores”, entre os elementos antagonistas escondidos precisamente nesse “povo”.  A democracia vulgar esperava o novo desencadeamento do dia na manhã seguinte; desde o outono de 1850, nos declarávamos que ao menos a primeira parte do período revolucionário estava encerrada, e que não havia nada a esperar até a explosão de uma nova crise econômica mundial.  É por isso que nós somos descartados como traidores da revolução pelos mesmos que, em seguida, fizeram quase sem exceção sua paz com Bismarck, até que Bismarck descobre que eles não valiam a pena.

Mas a história também nos deu uma reprimenda, revelou que nosso ponto de vista de então era uma ilusão.  Ela foi ainda mais longe: não somente dissipou nosso erro de então, ela fez igualmente uma reviravolta total nas condições em que o proletariado deve combater.  O modo de luta de 1848 é declinante hoje em dia sob todas as relações, e esse é um ponto que merece ser examinado de mais perto nesta ocasião.

Todas as revoluções até o presente trocaram a dominação de uma classe pela de outra, mas todas as classes dominantes até aqui foram uma pequena minoria em relação à massa do povo dominado.  Assim que uma minoria dominante era derrubada, uma outra minoria tomava o seu lugar no governo do Estado e transformava as instituições públicas segundo os seus interesses.  E, a cada vez, essa minoria era o grupo que se tornava apto ao poder e qualificado pelo estado de desenvolvimento econômico e era precisamente por isso, e só por isso, que em seguida à queda, a maioria dominada ou bem participava em favor da minoria ou pelo menos a aceitava passivamente.  Mas, se abstrairmos o conteúdo concreto de cada caso, a forma comum a todas essas revoluções era a de serem revoluções de minorias.  Mesmo quando a maioria colaborava, ela o fazia – conscientemente ou não – a serviço de uma minoria; mas por isso e também pela atitude passiva e sem resistência da maioria, a minoria tinha o ar de ser a representante de todo o povo.

Após o primeiro grande sucesso, a regra era que a minoria vitoriosa se cindisse em duas: uma das metades estava satisfeita com o resultado obtido, a outra queria ir ainda mais longe, colocava novas reivindicações que eram ao menos parcialmente do interesse real ou pretendido da grande massa do povo.  Essas reivindicações mais radicais se impunham em certos casos, mas freqüentemente apenas por um momento; o partido mais moderado retomava a supremacia, as últimas conquistas eram perdidas de novo total ou parcialmente; os vencidos gritavam então contra a traição ou atribuíam o fracasso ao azar.  Mas na realidade acontecia seguidamente assim: as conquistas da primeira vitória só eram asseguradas pela segunda vitória do partido mais radical; uma vez alcançadas estas, quer dizer, o que era momentaneamente necessário, os elementos radicais desapareciam de novo do teatro de operações e seus sucessos também.

Todas as revoluções dos tempos modernos, a começar pela grande revolução inglesa do século VII[3], apresentaram essas características que pareciam inseparáveis de qualquer luta revolucionária.  Elas pareciam igualmente aplicáveis às lutas do proletariado por sua emancipação; tanto mais aplicáveis que, precisamente em 1848, poder-se-ia contar as pessoas capazes de compreender, não fosse que de passagem, em que direção era preciso procurar essa emancipação.  Mesmo em Paris, as próprias massas proletárias não tinham ainda, após a vitória, absolutamente nenhuma ideia clara da via a seguir.  E no entanto o movimento lá era instintivo, espontâneo, impossível de sufocar.  Essa lá não seria precisamente a situação na qual devia necessariamente triunfar uma revolução conduzida, é verdade, por uma minoria, mas dessa vez não no interesse da minoria, mas no interesse mais imediato da maioria?  Se em todos os períodos revolucionários um pouco longos, as grandes massas populares podiam ser ganhas tão facilmente por simples superstições apresentadas de maneira plausível pelas minorias condutoras, como haveriam de ser menos acessíveis a ideias que eram o reflexo mais característico de sua situação econômica e não eram outra coisa senão uma expressão clara, racional, de necessidades delas que elas mesmas ainda não compreendiam e sobre as quais tinham um sentimento que ainda não distinguiam?   Esse estado de espírito revolucionário das massas, é verdade, quase sempre cedera lugar, seguidamente com rapidez, a uma depressão ou mesmo a uma reviravolta em sentido contrário, desde que a ilusão era dissipada e que a decepção se produzia.  Mas aqui não se trata de superstições, mas, ao contrário, da realização de interesses os mais específicos da grande maioria propriamente, de interesses que, é verdade, não estavam então totalmente claros para essa grande maioria, mas que logo deveriam tornar-se necessariamente bastante claros no curso da realização prática pelos aspectos convincentes de sua evidência.  E se, na primavera de 1850, como Marx demonstrou em seu terceiro artigo, o desenvolvimento da República burguesa saiu da revolução “social” de 1848, concentra-se o verdadeiro poder nas mãos da grande burguesia  ─ que era, por outro lado, de espírito monarquista ─ e que agrupara em contra todas as outras classes da sociedade, camponeses como pequeno-burgueses, em torno do proletariado, de tal sorte que na vitória comum e após ela não eram eles, mas o proletariado que havia aproveitado as lições da experiência e que deveria necessariamente tornar-se o fator decisivo ─ não estavam lá todas as perspectivas de transformação dessa revolução da minoria em revolução da maioria?

A história nos corrigiu todos os que pensavam de maneira análoga.  Mostrou claramente que o estado de desenvolvimento econômico no continente estava então bem longe ainda de estar maduro para a supressão da produção capitalista;  provou pela revolução econômica que desde 1848 ganhou todo o continente, que nesse momento não deu direito de cidadania a não ser à grande indústria na França, na Áustria, na Hungria, na Polônia e , ultimamente, na Rússia, e fez da Alemanha um país industrial verdadeiramente de primeira ordem ─ tudo isso sobre uma base capitalista, quer dizer, ainda muito capaz de expansão em 1848.  Ora, é precisamente essa revolução industrial que, pela primeira vez, por toda a parte esclareceu as relações de classe, suprimiu uma multidão de existências intermediárias provenientes do período manufatureiro e, na Europa oriental, saídos mesmos das corporações de ofício, engendrando uma verdadeira burguesia e um verdadeiro proletariado de grande indústria, e os colocando, um e outro, no primeiro plano do desenvolvimento social.  Mas é somente nesse momento que a luta dessas duas grandes classes, que em 1848, fora da Inglaterra, só se produzira em Paris e apenas em alguns poucos grandes centros industriais, se estende para toda a Europa, tomando uma intensidade ainda pouco imaginada em 1848.  Então, era ainda a plêiade dos evangelhos esfumaçados dos pequenos grupos com suas panacéias; hoje em dia, só a teoria de Marx é universalmente reconhecida, de uma clareza luminosa e que formula de maneira decisiva os fins últimos da luta; então, eram as massas separadas e divididas segundo as localidades e as nacionalidades, unidas somente pelo sentimento de seus sofrimentos comuns, pouco evoluídas, oscilantes entre o entusiasmo e a desesperança; hoje em dia, é um só grande exército internacional dos socialistas, progredindo sem cessar, crescendo a cada dia em número, organização, disciplina, clareza e certeza da vitória.  Mesmo se esse potente exército do proletariado nem sempre atinja o objetivo, se, bem longe de impor a vitória de um só golpe, for preciso progredir lentamente de posição em posição num combate duro, obstinado, a prova foi dada uma vez por todas de que era impossível em 1848 conquistar a transformação social por um simples golpe de mão.

Uma burguesia dividida em duas frações monarquistas dinásticas, mas que queria antes de tudo calma e segurança para seus negócios financeiros; face a ela, um proletariado vencido, é verdade, mas sempre ameaçador e em torno do qual pequeno-burgueses e camponeses se agrupavam de mais em mais ─ a ameaça contínua de uma explosão violenta que, apesar de tudo, não oferecia nenhuma perspectiva de uma solução definitiva ─, tal era a situação que se poderia dizer feita para o golpe de estado do terceiro ladrão, do pretendente pseudo-democrático Louis Bonaparte.  Servindo-se do exército, pôs fim em 2 de dezembro de 1851 à situação de tensão, assegurando à Europa a tranquilidade interior, mas premiando-a, em contrapartida, com uma nova era de guerras[4].   O período das revoluções pela base estava fechado no momento; um período de revoluções pelo alto lhe sucede.

A reação imperial de 1851 fornece uma nova prova da falta de maturidade das aspirações proletárias dessa época.  Mas ela mesma deveria criar as condições nas quais elas não poderiam deixar de amadurecer.  A tranqüilidade interior assegura o pleno desenvolvimento do novo ímpeto industrial, a necessidade de ocupar o exército e de desviar para o exterior as correntes revolucionárias engendra as guerras nas quais Bonaparte procura, sob o pretexto de fazer prevalecer o “princípio das nacionalidades”, a conseguir algumas anexações para a França.  Seu imitador Bismarck adota a mesma política pela Prússia; ele dá seu golpe de Estado, sua revolução pelo alto em 1866 face à Confederação alemã e à Áustria, e ao mesmo tempo face à Câmara de conflitos da Prússia.  Mas a Europa era muito pequena para dois Bonaparte, e a ironia da história queria que Bismarck derrubasse Bonaparte e que o rei Guillaume da Prússia instaurasse não somente o pequeno Império alemão, mas também a República francesa[5].  Ora, o resultado geral foi que na Europa a independência e a unificação interna das grandes nações, com a única exceção da Polônia, estabeleceram-se de fato.  È verdade que dentro de limites relativamente modestos ─ mas em proporções suficientes para que o processo de desenvolvimento da classe operária não encontrasse mais obstáculos sérios nas complicações nacionais.  Os coveiros da revolução de 1848, transformam-se em seus executores testamentários.  E, ao lado deles, se levantava já ameaçador o herdeiro de 1848, o proletariado, na Internacional.

Após a guerra de 1870-1871, Bonaparte desaparece da cena e a missão de Bismarck está terminada, de sorte que ele pode de novo descer ao grau do vulgar escudeiro.  Mas é a comuna de Paris que constitui o fim desse período.  Uma tentativa sinuosa de Thiers para roubar seus canhões à guarda nacional de Paris provoca uma insurreição vitoriosa.  Confirma-se de novo que em Paris a única revolução possível é a proletária.  Após a vitória, o poder se dispõe por si mesmo, de maneira indiscutível, à classe operária.  E pode-se ver uma vez mais o quanto nesse momento o poder da classe operária era ainda impossível vinte anos após a época que descrevemos aqui.  De uma parte, a França falta a Paris, assistindo ela sangrar sob as balas de Mac-Mahon; de outra parte, a Comuna se consome na querela estéril dos dois partidos que a dividem, os blanquistas (majoritários) e os proudhonianos (minoritários), todos os dois sem saber o que fazer.  O presente da vitória em 1871 não porta mais frutos do que o golpe de mão de 1848.

Com a Comuna de Paris, supõe-se o proletariado combativo definitivamente enterrado.  Mas, ao contrário, é da Comuna e da guerra franco-alemã que datam seu voo mais formidável.  A transformação total de todas as condições da guerra pelo envolvimento de toda a população apta a portar armas no exército, que passa a ser contado por milhões, as armas de fogo, os obuses e os explosivos de um efeito desconhecido até aí, de uma parte, finalizaram bruscamente o período das guerras bonapartistas e asseguraram o desenvolvimento industrial tranquilo, tornando impossível qualquer outra guerra que não fosse uma guerra mundial extraordinariamente cruel e cuja saída seria absolutamente incalculável.  De outra parte, devido ao fato das despesas de guerra crescerem em progressão geométrica, os impostos se elevaram a uma altura vertiginosa e as classes populares mais pobres caíram nos braços do socialismo.  A anexação da Alsace-Lorraine, causa imediata da louca corrida armamentista, excitou o chauvinismo das burguesias francesa e alemã, uma contra a outra; para os operários dos dois países, tornou-se um elemento novo de união.  E o aniversário da comuna de Paris foi o primeiro dia de festa universal de todo o proletariado.

A guerra de 1870-1871 e o fracasso da Comuna transferiram por um tempo, como Marx predissera, da França para a Alemanha, o centro de gravidade do movimento operário europeu.  Na França, é claro que seriam precisos anos para se recuperar da sangria de maio de 1871.  Na Alemanha, em contrapartida, onde a indústria, favorecida com o aporte dos miliardários franceses[7], se desenvolveu verdadeiramente como ferro em brasa a um ritmo sempre acelerado, a social democracia crescia com uma rapidez e um sucesso ainda maior.  Graças à inteligência com a qual os operários alemães utilizaram o sufrágio universal instituído em 1866, o crescimento surpreendente do Partido aparece abertamente aos olhos do mundo inteiro em cifras indiscutíveis.  Em 1871, 102.000; em 1874, 352.000; em 1877, 493.000 votos social-democratas.  Em seguida vem o reconhecimento desse progresso pelas autoridades superiores sob a forma da lei contra os socialistas[7]; o Partido foi momentaneamente dispersado, o número de votos cai em 1881 para 312.000.  Mas esse golpe foi rapidamente superado e, desde então, é sob a pressão da lei de exceção,  sem imprensa, sem organizações exteriores, sem direito de associação e de reunião, que a sua rápida ampliação vai verdadeiramente começar: 1884 – 550.00, 1887 – 763.000, 1890 – 1.427.000 votos.  Aí, a mão do Estado foi paralisada.  A lei contra os socialistas desapareceu, o número de votos socialistas chega a 1.787.000, mais de um quarto da totalidade dos votos exprimidos.  O governo e as classes reinantes haviam esgotado todos os seus meios ─ sem resultado, sem finalidade, sem sucesso.  A prova tangível da impotência que as autoridades, do guarda noturno ao chanceler do Império, tiveram que aceitar ─ e isso da parte dos operários desprezados! ─ essas provas se contam por milhões.  O Estado atingira o limite de suas possibilidades, os operários estavam no começo das suas.

Mas , além do primeiro serviço que constituía sua simples existência enquanto Partido socialista, o partido mais forte, o mais disciplinado e o que crescia mais rapidamente, os operários alemães prestaram ainda um outro grande serviço à sua causa.  Mostrando a seus camaradas de todos os países como se servir do sufrágio universal, forneceram-lhes uma nova arma, uma arma das mais afiadas.

Já há muito tempo, o sufrágio universal existia na França, mas caíra em descrédito em seguida ao mau uso que o governo bonapartista fez dele.  Após a Comuna, não havia partido operário para utilizá-lo.  Na Espanha também o sufrágio universal existia desde a República, mas na Espanha a abstenção nas eleições foi todo o tempo a regra entre todos os partidos de oposição sérios.  As experiências feitas na Suíça com o sufrágio universal eram nada menos que um encorajamento para um partido operário.  Os operários revolucionários  dos países romanos estavam habituados a olhar o direito de voto como uma armadilha, como um instrumento de escroqueria governamental..  Na Alemanha, foi de outro modo.  Já o Manifesto comunista proclamara a conquista do sufrágio universal, da democracia, como uma das primeiras e das mais importantes tarefas do proletariado militante, e Lassalle retomara esse ponto.  Quando Bismarck se viu obrigado a instituir o direito de voto[8] como único meio de interessar as massas populares em seus projetos, nossos operários tomaram logo isso a sério e enviaram Auguste Bebel ao primeiro Reichstag constituinte.  E, a partir desse dia, utilizaram o direito de voto de tal sorte que foram recompensados de mil maneiras e que isso serviu de exemplo aos operários de todos os países.  Eles transformaram o direito de voto, segundo as palavras do programa marxista francês,  de meio de moyen de duperie qu’il a été jusqu’ici en instrument d’émancipation[9].  E se o sufrágio universal não nos deu outros benefícios que o de permitir de nos contarmos a cada três anos, que o de crescer pelo aumento regularmente constado, extremamente rápido, do número de votos, a certeza da vitória entre os operários, na mesma medida que o mal-estar entre os adversários, e de se tornar assim o nosso melhor meio de propaganda; que de nos certificar exatamente sobre a nossa própria força, assim como a dos partidos adversários, e de propiciar assim à nossa ação um critério superior a qualquer outro, nos preservando tanto de uma pusilanimidade inoportuna como de uma loucura ardorosa totalmente superada ─ se esse fosse o único benefício que nós tivéssemos tirado do direito ao sufrágio, isso já seria mais do que suficiente.   Mas ele fez muito mais.  Com a agitação eleitoral, ele nos forneceu um meio sem igual para entrar em contato com as massas populares lá onde elas ainda estão longe de nós, para obrigar todos os partidos a defender diante de todo o povo suas opiniões e suas ações face a nossos ataques;  e, de outra parte, abriu para nossos representantes no Reichstag uma tribuna do alto da qual eles puderam falar a seus adversários no Parlamento assim como às massas em volta, com mais autoridade e mais liberdade do que na imprensa e nas reuniões.  De que servia ao governo e à burguesia sua lei contra os socialistas se a agitação eleitoral e o discurso dos socialistas no Reichstag constantemente a superava?

Utilizando assim tão eficazmente o sufrágio universal, o proletariado deu curso a um método de luta totalmente novo, que se desenvolve rapidamente.  Descobre-se que as instituições de Estado nas quais se organiza a dominação da burguesia fornecessem ainda possibilidades de novas utilizações, que permitem à classe operária combater essas mesma instituições de Estado.  Participa das eleições às diferentes Dietas, aos conselhos municipais, aos tribunais industriais, disputa com a burguesia cada posto, nos quais uma parte considerável do proletariado participava da designação do titular.  E foi assim que a burguesia e o governo chegaram a ter mais medo da ação legal do que da ação ilegal do Partido operário, dos sucessos das eleições do que dos da rebelião.

Pois, aí também, as condições da luta haviam-se transformado seriamente.  A rebelião de antigo estilo, o combate sobre as barricadas que, até 1848, fora decisivo em toda a parte, estava consideravelmente ultrapassado.

Não nos façamos ilusões a esse respeito: uma verdadeira vitória da insurreição sobre as tropas no combate de rua, uma vitória como na batalha entre dois exércitos é uma das coisas mais rara.  Mas era raro também que os insurgentes tivessem isso em vista.  Pra eles se tratava de amolecer as tropas influenciando-as moralmente, o que não joga nenhum papel, ou ao menos joga um papel muito menor, na luta entre os exércitos de dois países beligerantes.  Se isso for conseguido, a tropa se recusa a marchar, ou os chefes perdem a cabeça, a insurreição é vitoriosa.   Se isso não é conseguido, então, mesmo com tropas numericamente inferiores, é a superioridade do equipamento e da instrução, da direção única, do emprego sistemático das forças armadas e da disciplina o que se impõe.   O máximo que a insurreição pode esperar duma ação verdadeiramente tática é o estabelecimento das regras e da defesa de uma barricada isolada.  Apoio recíproco, constituição e utilização de reservas, em suma, a cooperação e a ligação de diferentes destacamentos indispensáveis já para a defesa de um bairro, com mais forte razão para toda uma grande cidade, só poderiam ser realizados de uma maneira totalmente insuficiente, e na maioria das vezes não se poderia realizar; a concentração das forças armadas sobre um ponto decisivo naturalmente não tem lugar.  A resistência passiva é, por consequência, a forma de luta predominante; o ataque, reunindo suas forças, acontecerá aqui e acolá, mas ainda de maneira puramente excepcional, avanços e ataques de flanco, mas como regra geral ela se limitará à ocupação das posições abandonadas pelas tropas que batem em retirada.  A isso se acrescenta ainda que do lado do exército se dispõe de canhões e de tropas especiais completamente equipadas e exercitadas, meios de combate que quase sempre fazem falta aos insurgentes.  Nada de surpreendente, então, que mesmo os combates de barricadas disputados com o maior heroísmo ─ em Paris em junho de 1848, em Viena em outubro de 1848, em Dresde em maio de 1849 ─ terminaram no fracasso da insurreição desde que, não sendo perturbados por considerações políticas, os chefes dirigindo o ataque agiram segundo pontos de vista puramente militares e que seus soldados permaneceram-lhes fieis.

Os numerosos sucessos das insurreições até 1848 devem-se a causas muito variadas.   Em Paris, em julho de 1830 e em fevereiro de 1848, como na maior parte dos combates de rua na Espanha, havia entre os insurgentes e os soldados uma guarda civil que, ou bem passa diretamente para o lado da insurreição, ou bem, por sua atitude hesitante, irresoluta, levava igualmente à hesitação as tropas e por outro lado fornecia as armas à insurreição. Lá onde essa guarda civil se coloca desde o início contra a insurreição, como em junho de 1848 em Paris, esta foi vencida.  Em Berlim, em 1848, o povo saiu vencedor, seja graças ao afluxo  considerável de novas forças armadas durante a noite e a manhã do 19, seja em seguida pelo esgotamento e mau aprovisionamento das tropas,  seja em seguida pela paralisia do comando.  Mas, em todos os casos, a vitória foi obtida porque a tropa recusa marchar, porque falta espírito de decisão entre os chefes militares ou porque eles estavam de mãos atadas.

Mesmo na época clássica dos combates de rua, a barricada tinha então um efeito mais moral que material.  Ela era um meio de quebrar a firmeza dos soldados. Se conseguisse ir até franquear, a vitória estava obtida; se não, ela estava batida.  (Tal é o ponto principal que é preciso guardar no espírito igualmente no futuro quando se examine a chance de eventuais combates de rua.)

Por sinal, as chances eram muito ruins desde 1849.  Em toda a parte, a burguesia passara para o lado dos governos.  “A civilização e a propriedade” saudavam e paparicavam os soldados que partiam contra os insurgentes.  A barricada perdera seu charme, os soldados não viam mais atrás delas o “povo”, mas rebeldes, agitadores, saqueadores, divisionistas, o refugo da sociedade; o oficial com o tempo aprendera as formas táticas do combate de ruas, ele não marchava diretamente contra a barricada improvisada de peito aberto, mas a contornava, servindo-se dos jardins, dos corredores, das casas.  E com alguma direção isso agora dava certo em nove de cada dez vezes.

Mas desde então muitas coisas ainda se modificaram e todas em favor dos soldados.  Se as grandes cidades atingiram uma extensão considerável, os exércitos cresceram ainda mais.  Desde 1848, Paris e Berlim não chegaram a quadruplicar, mas suas guarnições aumentaram para além disso.  Suas guarnições podem ser mais do que duplicadas em vinte e quatro horas graças às estradas de ferro, e crescer até se tornarem exércitos gigantescos em quarenta e oito horas.  O armamento dessas tropas enormemente reforçadas é incomparavelmente mais eficaz.  Em 1848, era o simples fuzil a percussão; hoje em dia é o fuzil de repetição de pequeno calibre que atira quatro vezes mais longe, dez vezes mais certeiro e dez vezes mais rápido do que o primeiro.  Antigamente, eram as granadas e os obuses de artilharia, relativamente pouco eficazes; hoje em dia, são os obuses a percussão, dos quais um só é suficiente para por em cacos a melhor barricada.  Antigamente, era a picareta para derrubar muros; hoje em dia, são os cartuchos de dinamite.

Do lado dos insurgente, em contrapartida, todas as condições ficaram piores.  Uma insurreição que conte com a simpatia de todas as camadas do povo dificilmente se reproduzirá; na luta de classes, todas as camadas médias sem dúvida jamais se reagruparão de uma maneira suficientemente exclusiva em torno do proletariado, de modo que, em contrapartida, o partido reacionário reunido em torno da burguesia desapareça quase completamente.  O “povo” aparecerá então sempre dividido e, portanto, será uma alavanca possante, de uma tão alta eficácia em 1848, que faltará.  Se do lado dos insurgentes vem um maior número de combatentes tendo feito seu serviço, seu armamento será mais difícil.  Os fuzis de caça e de luxo das lojas de armeiros ─ mesmo que a polícia não os torne de antemão inutilizáveis, retirando-lhe alguma peça ─  são na própria luta considerados longe de valer o fuzil de repetição do soldado.  Até 1848, podia-se fazer por si mesmo com pólvora e chumbo as munições necessárias; hoje em dia, o cartucho difere para cada fuzil e em toda parte só tem  um ponto em comum, a saber, que se trata de um produto da técnica da grande indústria e que, em consequência, não se pode fabricá-lo ex tempore [artesanalmente]; a maior parte dos fuzis são então inúteis desde que não se tenha a munição que lhe convenha especialmente.  Finalmente, os bairros construídos desde 1848 nas grandes cidades têm ruas longas, retas e largas, e parecem adaptadas ao efeito dos novos canhões e dos novos fuzis.  Seria insensato o revolucionário que escolhesse os novos distritos operários do norte e do este de Berlim para um combate de barricadas.  [Isso quer dizer que no futuro o combate de rua não jogará nenhum papel?  De jeito nenhum.  Isso apenas quer dizer que as condições desde 1848 se tornaram muito menos favoráveis para os combatentes civis e muito mais favoráveis para as tropas.  Um combate de rua não poderá, então, no futuro, ser vitorioso sem que essa inferioridade  de situação seja compensada por outros fatores.  Também, que se produzirá mais raramente no início de uma grande revolução do que no curso do seu desenvolvimento e que será necessário empreendê-lo com forças maiores.  Mas, então, estes, como durante toda a Revolução francesa, no 4 de setembro e no 31 de outubro de 1870 em Paris[10], preferirão sem dúvida o ataque aberto à tática passiva da barricada.]

O leitor há de compreender agora por que os poderes dirigentes querem de todo jeito nos levar para lá onde disparam os fuzis e estalam os sabres.  Por que nos acusam hoje em dia de moleza por não descermos diretamente às ruas quando temos de antemão a certeza da derrota.  Por que insistem em fazer de nós carne de canhão.

É inútil e sem razão que esses senhores desperdicem suas súplicas e suas provocações.  Não somos tão imbecis.  Eles poderiam também exigir do inimigo que na próxima guerra venha disposto em formação de linha como no tempo do velho Fritz ou em colunas de divisões inteiras à Wagram e à Waterloo[11], e isso com o fuzil a pedra na mão.  Se as condições mudaram para a guerra dos povos, não mudaram menos para a luta de classes.  Os tempos dos golpes de mão, das revoluções executadas por pequenas minorias conscientes à frente das massas inconscientes já passou.  Ali onde se trata de uma transformação completa da organização da sociedade é preciso que as próprias massas cooperem entre si, que elas mesmas já tenham compreendido do que se trata, que elas intervenham (com seu corpo e sua vida).  Eis o que aprendemos da história dos últimos cinquenta anos.  Mas para que as massas compreendam o que há para fazer, um trabalho longo, perseverante é necessário; é precisamente esse trabalho que nós fazemos atualmente, e isso com um sucesso que coloca nossos adversários em desespero.

Nos países latinos também se compreende cada vez mais que é preciso revisar a antiga tática.  Em toda a parte, [o desencadeamento sem preparação do ataque passa ao segundo plano; em toda a parte,] imita-se o exemplo alemão da utilização do direito de voto, da conquista de todos os postos que nos são acessíveis, [salvo se os governos nos provocam abertamente à luta[12]].   Na França, onde entretanto o terreno está minado há mais de cem anos por revoluções sucessivas, onde não há partido que não tenha tomado parte em conspirações, insurreições e outras ações revolucionárias de todos os tipos, na França, onde, consequentemente, não é totalmente seguro para o governo e onde geralmente as circunstâncias são muito mais favoráveis para um golpe de mão insurrecional do que na Alemanha ─ mesmo na França, os socialistas compreendem mais e mais que não haverá para eles uma vitória durável possível, a menos que ganhem de antemão a grande massa do povo, vale dizer aqui, os camponeses.  O lento trabalho de propaganda e a atividade parlamentar são reconhecidos aí também como a tarefa imediata do Partido.  Os sucessos não faltam.  Não apenas conquistaram toda uma série de conselhos municipais; nas Câmaras têm assento cinquenta socialista e estes já derrubaram três ministérios e um presidente da República.  Na Bélgica, os operários arrancaram no último ano o direito de voto e triunfaram em um quarto das circunscrições eleitorais.  Na Suíça, na Itália, na Dinamarca, até mesmo na Bulgária e na Romênia, os socialistas estão representados no Parlamento.  Na Áustria, todos os partidos estão de acordo em que não podem nos fechar o acesso ao Reichsrat (Conselho do Império) por muito mais tempo.  Que nós entraremos é uma coisa certa, o que se discute é apenas a questão de saber por qual porta.  E mesmo se na Rússia o famoso Zemski Sobor se reúne, essa Assembleia nacional contra a qual se volta de forma tão vã o jovem Nicolas, mesmo lá podemos ter certeza de que estaremos igualmente representados.

É evidente que por isso nossos camaradas estrangeiros não renunciam absolutamente ao direito deles à revolução.  O direito à revolução é apesar de tudo o único “direito histórico”, real, o único sobre o qual repousam todos os Estados modernos sem exceção, inclusive o Mecklembourg no qual a revolução da nobreza terminou em 1755 pelo “pacto hereditário”, gloriosa consagração escrita do feudalismo ainda em vigor hoje em dia.  O direito à revolução está ancorado de maneira tão incontestável na consciência universal que mesmo o general Bogouslavski faz remontar a esse direito, que é só do povo, o direito ao golpe de Estado que ele reclama para o seu imperador.

Mas, seja lá o que chegue de outros países, a social democracia alemã tem uma situação particular e, por esse fato, ao menos de imediato, também uma tarefa particular.  Os dois milhões de eleitores que ela envia ao escrutínio, compreendidos aí os jovens e as mulheres que estão atrás deles na condição de não eleitores, constituem a massa mais numerosa, mais compacta, a “tropa de choque” decisiva do exército proletário internacional.  Essa massa fornece desde já mais de um quarto dos votos exprimidos; e, como provam as eleições parciais ao Reichstag, as eleições à Dietas dos diferentes países, as eleições aos conselhos municipais e aos tribunais industriais, ela aumenta sem cessar.  Seu crescimento se produz tão espontaneamente, tão constantemente, tão irresistivelmente e, ao mesmo tempo, tão tranquilamente que um processo natural.  Todas as intervenções estatais para impedi-lo se mostraram impotentes.  De hoje em diante, podemos contar com dois milhões e um quarto de eleitores.  Se isso continua assim, conquistaremos daqui ao fim do século a maior parte das camadas médias da sociedade, pequenos burgueses como pequenos camponeses, e cresceremos até nos tornarmos a potência decisiva no país, diante da qual se inclinarão todas as outras potências, queiram ou não.  Manter sem cessar esse crescimento, até que se torne mais forte do que o sistema governamental no poder (não usar nos combates de vanguarda essa “tropa de choque” que se reforça diariamente, mas mantê-la intacta até o dia decisivo), tal é nossa tarefa principal.  Ora, só há um único meio que poderia conter momentaneamente o crescimento contínuo das forças combatentes socialistas na Alemanha e até fazê-la regredir temporariamente, seria uma colisão de grande envergadura com as tropas, uma carnificina como em 1871 em Paris.  A longo prazo, se superaria bem essa coisa também.  Para varrer a golpes de fuzil da superfície do globo um partido que se compõe de milhões, nem todos os fuzis a magazine da Europa e da América seriam suficientes.  Mas o desenvolvimento normal seria paralisado (a “tropa de choque” não estaria talvez disponível no momento crítico), o combate decisivo seria retardado, prolongado e se acompanharia de sacrifícios mais pesados.

A ironia da história põe abaixo todo senso superior.  Nós, os “revolucionários”, os “conturbadores”, nós prosperamos muito mais pelos meios legais do que pelo meios ilegais e as conturbações.  Os partidos da ordem, como eles se nomeiam, definham no estado legal que eles mesmos criaram.  Com Odilon Barrot, eles gritam desesperados: a legalidade nos mata; ao passo que nós, dentro dessa legalidade, desenvolvemos músculos firmes, distribuímos rosas e respiramos a eterna juventude.  E desde que não sejamos insensatos o bastante para nos deixar levar ao combate de rua para lhes agradar, não lhes restará finalmente outra coisa a fazer do que eles mesmos quebrarem essa legalidade que se tornou para eles tão fatal.

Na espera, fazem novas leis contra conturbações.  Tudo é de novo posto abaixo.  Esses fanáticos das anti-conturbações de hoje em dia, não eram os próprios conturbadores de ontem?  Por acaso fomos nós que provocamos a guerra civil de 1866?  Fomos nós que expulsamos de seus países hereditários legítimos, o rei de Hanovre, o príncipe eleitor de Hesse, o duque de Nassau, e anexamos esses países hereditários?  E esses conturbadores do Bund alemão e de três coroas pela graça de Deus se queixam de conturbações?  Qui tuleri Gracchos de seditione querentes?[13] Quem poderia permitir aos adoradores de Bismarck de se expandir em invectivas sobre conturbações?

No entanto, eles podem muito bem fazer passar seus projetos de lei contra a revolução, eles podem ainda agravá-los, transformar todas as suas leis penais em cassetetes, eles não farão nada mais do que provar sua impotência. Para atacar seriamente a social democracia lhes seriam necessárias ainda muitas outras medidas.  Sobre a revolução social-democrata que se mostra exatamente tão bem porque se conforma às leis, eles não poderão se impor senão pela arruaça do partido da ordem, o qual não pode viver sem violar as leis.  O Sr. Roessler, o burocrata prussiano, e o Sr. de Bogouslavski, o general prussiano,  mostraram a única via pela qual ainda se pode retomar o controle sobre os operários que, tanto pior, não se deixarão conduzir ao combate de ruas.  Ruptura da Constituição, ditadura, retorno ao absolutismo, regis voluntas suprema lex[14] .  Então, tenham coragem, senhores, não se trata aqui de fazer de conta, trata-se de mostrar a cara.

Mas não esqueçam que o Estado alemão, como todos os pequenos Estados e em geral todos os Estados modernos, é o produto de um pacto; do pacto inicialmente entre os príncipes, em seguida dos príncipes com o povo.  Se uma das partes quebra o contrato, o pacto inteiro cai e então a outra parte não está mais obrigada nem um pouco.   [Como Bismarck nos deu o exemplo em 1866.  Então, se vocês rompem a Constituição imperial, a social democracia estará livre, livre para fazer o que bem entender em relação a vocês.  Mas o que ela fará em resposta, não vai dizer hoje para vocês.]

Há quase mil e seiscentos anos, no Império romano existia igualmente um perigoso partido revolucionário. Ele solapava a religião e todos os fundamentos do Estado.  Negava claramente que a vontade do imperador fosse a lei suprema; não tinha pátria, internacional, estendia-se sobre todo o Império, da Gáulia até a Ásia, desbordava os limites do Império.  Fizera durante longo tempo um trabalho de sapa subterrâneo, secreto.  Mas, depois de bastante tempo, ele já se acreditava bastante forte para aparecer à luz do dia.  Esse partido revolucionário, que era conhecido sob o nome de cristão, tinha também sua forte representação no exército; legiões inteiras eram cristãs.  Quando eles recebiam a ordem de ir aos sacrifícios solenes da Igreja pagã nacional para render-lhe honras, os soldados revolucionários punham-se insolentes a ponto de grudar em seus capacetes insígnias particulares ─ cruzes ─ em sinal de protesto.  Mesmo as arengas costumeiras dos superiores na caserna permaneciam vãs.  O imperador Dioclesiano não pode conservar por mais tempo a sua calma vendo como eram solapadas a ordem, a obediência e a disciplina no seu exército.  Interveio energicamente, pois ainda era tempo.  Promulgou uma lei contra os socialistas, quero dizer, uma lei contra os cristãos.  As reuniões dos revolucionários foram proibidas, seus locais fechados ou mesmo demolidos, as insígnias cristãs, cruz, etc. foram proibidas, como na Saxônia os lenços vermelhos.  Os cristãos foram declarados incapazes para os postos públicos, não lhes deixaram nem mesmo o direito de ser promovido a cabo.  Como na época não se dispunha ainda de juizes tão amestrados no “respeito ao indivíduo” como supõe o projeto de lei contra a revolução do Sr. De Koeller[15], proibi-se pura e simplesmente os cristãos de demandar justiça nos tribunais.  Essa lei de exceção ficou sem efeito.  Por irrisão, os cristãos a arrancaram dos muros; melhor do que isso, eles incendiaram o palácio passando por cima do imperador.  Então, este se vinga com a grande perseguição aos cristãos do ano 303 da nossa era.  Essa foi a última do gênero.  E foi tão eficaz que, dezessete anos mais tarde, o exército estava composto em sua maior parte por cristãos e o autocrata do Império romano que sucedeu a Diocleciano, Constantino, chamado pelos padres de o Grande, proclamou o cristianismo religião do Estado.

Londres, 6 de março de 1895.

Friedrich Engels

Notas:

[1] A revolução de 1848 começou na França em 24 de fevereiro, em Viena em 13 de março, em Berlim em 18 de março.

[2] Em territórios estrangeiros.  Diz-se do vigário cujo título é puramente honorífico e não dá direito a nenhuma jurisdição.  Diz\-se, por ironia, governo, ministro, embaixador, etc., in partibus.

[3] Sobre a revolução inglesa, ver o estudo de Engels, “Le matérialisme historique”, em K. Marx e F. Engels: Études philosophiques, p. 89-110, E.S., Paris, 1951.

[4] Sob o reino de Napoleão III, a França participa da guerra da Crimeia (1854-1855), faz a guerra à Áustria (1859), organiza uma expedição à Síria (1860), participa com a Inglaterra da guerra contra a China, conquista o Camboja (Indochina), participa em 1863 da expedição ao México e em 1870 faz a guerra contra a Alemanha.

[5] O resultado da vitória sobre a França na guerra franco-alemã de 1870-1871 é a formação do Império alemão com exclusão da Áustria (daí o denominado “pequeno Império alemão”).  O fracasso de Napoleão III é a senha para a revolução na França.  A revolução derruba Napoleão III e conduz à proclamação da República em 4 de setembro de 1870.

[6] Uma vez terminada a guerra franco-alemã, a Alemanha, com o tratado de paz de 1871, toma a Alsace-Lorraine da França e a obriga a pagar uma indenização de 5 bilhões.

[7] Em 19 de outubro de 1878 entra em vigor na Alemanha a lei de exceção contra os socialistas, proibindo o Partido social-democrata e o colocando na ilegalidade.  Ela só foi abolida em 1890.

[8] O sufrágio universal foi introduzido por Bismarck em 1866 quando das eleições ao Reichstag do Império alemão unificado.

[9] [de meio de engano, que fora até aqui, em instrumento de emancipação]  Em francês no original.

[10] Trata-se do 4 de setembro de 1870, jornada em que Louis Bonaparte foi derrubado e a República proclamada, assim como do fracasso do levantamento dos blanquistas contra o governo de defesa nacional em 31 de outubro desse mesmo ano.

[11] Na batalha de Wagram, em 1809, Napoleão I vence o exército austríaco; em Waterloo; em 18 de junho de 1815, os exércitos aliados (inglês, prussiano, etc.) lhe infligem uma derrota decisiva.

[12] O texto entre colchetes foi riscado por Engels.

[13] [Quem suportará que os Graccos se queixem de uma sedição?] [14] [A vontade do rei é a lei suprema.] [15] Em 5 de dezembro de 1894, um novo projeto de lei contra os socialistas foi depositado no Reichstag.  Esse projeto foi reenviado a uma comissão que o discute até 25 de abril de 1895.

Fonte: MARX, Karl.  Les luttes de classas en France (1848-1850). Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. Éditions sociales, p. 25-53

Tradução: Sergio Granja

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