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A alienação dos bolsominions | Luiz Marques

O mundo assim dividido / não pode permanecer.”

Ferreira Gullar

Os bolsominions podem ser subdividos em dois grupos: a) em um patamar político, levando-se em conta o engajamento em funções governamentais na administração central do país e; b) em um patamar social, arguindo-se seu comportamento no circo de imbecilidades típicos dessa época de absurdos kafkianos. Vejamos de perto.

No patamar político, para ilustrar as bizarrices, a ministra de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos prega a abstinência sexual no currículo de Educação Sexual dos jovens. A obsessão pela temática da sexualidade subsome todo o espectro abarcado pela agenda da pasta (vá se tratar, Excelência). O ministro da Saúde está encarregado de suspender o uso de máscaras enquanto a terceira onda pandêmica começa a tomar corpo(s). O ministro do Meio Ambiente intervém em cumplicidade com madeireiros e garimpeiros para devastar a Amazônia e aldeias indígenas, legalizando o crime ambiental e étnico ao “passar a boiada”. O ministro da Justiça e Segurança Pública não tuge nem muge sobre a chacina cometida na comunidade do Jacarezinho. O ministro de Minas e Energia autoriza a privatização da Eletrobrás, às vésperas de um apagão. Nenhum país desenvolvido abriria mão de uma empresa tão estratégica. O objetivo do ministro-pastor prebisteriano da Educação é implantar o homeschooling, a escola domiciliar que priva do direito intelectual as crianças. O ministro-astronauta da Ciência, Tecnologia e Inovações anda na lua, sem coragem para rebater os ataques anticientíficos do presidente genocida na crise sanitária. Os ministros-militares dispensam citações. “O capitão manda, os generais obedecem”.

O elenco bizarro, atraído pelo autoritarismo, confirma a observação de Hannah Arendt (As Origens do Totalitarismo, 2013). O exercício do poder autoritário “invariavelmente substitui todos os maiores talentos, independente de suas simpatias, por excêntricos e tolos cuja falta de inteligência e criatividade é a melhor garantia de sua lealdade”. Essa é a explicação para o enxame de mediocridades na colmeia da Esplanada dos Ministérios. Personalidades com brilho que se aproximaram do desgoverno sequer foram nomeadas, caso da médica infectologista Luana Araújo. Eis o que sucede no patamar da política, nos escusos escaninhos governamentais.

No patamar social, o neofascismo obedece à idêntica lógica, ao abrigar nas fileiras do movimento: negacionistas da epidemia; céticos das estatísticas de mortandade pela Covid-19, para os quais são sobrenotificadas, quando a rigor estão subnotificadas; militontos contra as vacinas; consumidores de fake news em sites pagos para difundir mentiras; detratores da ciência e das instituições de ensino (universidades) que produzem o conhecimento; terraplanistas que procuram as bordas da Terra, que Aristóteles demonstrou em termos empíricos ser esférica no século IV a.C.; exterminadores dos valores da modernidade; homofóbicos e sexistas que, por insegurança, condenam o politicamente correto; pequenos déspotas de situações cotidianas (“não cumpro leis, eu faço minhas leis”) que se julgam livres para assediar, furar filas, andar sem máscaras, aglomerar, dirigir em velocidade acima do permitido, portar arma na cintura, destratar o guarda municipal, a balconista ou o motoboy na base do “sabe com quem está falando” e; duvidar da magnitude das manifestações políticas que ora tomam as ruas sob a bandeira de unidade “Fora Bolsonaro”.

Essas repugnantes criaturas estão frustradas com os mecanismos do “sistema”, expressão apropriada pela extrema-direita trumpista e bolsonarista. Acreditam que a condição social, além de garantir bem-estar material, deveria assegurar o reconhecimento e o prestígio de que se autoavaliam merecedores (sic). Em nichos aristocráticos do funcionalismo público, privilégios indecorosos expõem moralistas sem moral: no espírito da Post-Truth, contra jus (direito), embora não contra legem (lei). Fatos objetivos são contornados com argumentos estapafúrdios. Incapazes de transcender o círculo da vida privada, repetem o mantra de que “a sociedade não existe, o que existe são os indivíduos e suas famílias”. Para, assim, dormir em paz. A falsa consciência de sujeitos da história vêm-lhes do sentimento atávico de senhores de escravos. Inútil o apelo progressista à participação cidadã nos rumos da Pólis.

O Barão de Montesquieu (1689-1755) reputava a República o melhor regime político, difícil seria encontrar republicanos que priorizassem o interesse da coletividade – para implementar o projeto de igualdade formal na sociedade. De um lado, isso decorre da apatia frente ao que extrapola o modus vivendi de seres centrados no próprio umbigo. De outro, resulta das vivências inerentes à formação e ao desenvolvimento individuais. Conforme o filósofo Ortega y Gasset, “eu sou eu e minhas circinstâncias, e se não salvo a ela, não me salvo a mim”. Eis o ferrolho de alienação dos bolsominions. As simbólicas camisetas da CBF são suas circunstâncias.

A assertiva do padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo, de que a maioria da população brasileira não ultrapassou o segundo estágio (dos quatro, ver no Google) de desenvolvimento cognitivo, estipulados pelo psicólogo suiço Jean Piaget, não se restringe aos homens e mulheres em situação de rua. Vale para os presunçosos que se apresentam como “doutores”, e só conseguem ver o mundo através da perspectiva pessoal (de classe) – pois jamais conseguiram ascender ao estágio das abstrações intelectuais para prospectar alternativas de sociabilidade.

Os condicionantes socioculturais tanto abrem horizontes, quanto fecham. Nos ambientes da classe média alta, afora assuntos relativos a vinhos renomados, restaurantes famosos, carros importados e viagens ao exterior – o repertório cai a zero, com sorte chega a um blockbuster. A isso denominam… cultura (ops). O comunicador Tatata Pimentel ufanava-se por receber um cachê robusto, ao acompanhar a “burguesia burra, de Porto Alegre” em passeios na Europa, para tecer comentários sobre literatura, exposições e monumentos históricos. Poderia ter acrescentado que, em condomínios fechados, casas mais vistosas que acolhedoras não comportam bibliotecas. Não são feitas para quem enxerga na realidade um enigma a ser decifrado pela práxis política, senão aos que se inserem no establishment com a resignação do peixe no aquário. Já cantava Cazuza: “A burguesia não tem charme nem é discreta… Quer ser sócia do Country… Quer ir a New York fazer compras.

O consumo “de elite” na atualidade cumpre o papel dos títulos nobiliárquicos, de antanho, para demarcar a distinção entre as classes sociais, e hierarquizar a sociedade. A reação à presença de pobres nos aeroportos e nos shopping centers deu a medida do possível para as iniciativas igualitárias por ação do Estado, no Brasil. A ocupação ao tempo dos governos de esquerda (2003-2014) dos espaços de consumismo, antes predicados das camadas abastadas, não foi aceita com júbilo por derrubar barreiras. Ao contrário, foi vista pela middle class como uma violação do sagrado direito dos herdeiros da Casa Grande, esquadrinhada por Gilberto Freyre. Parte do ódio condensado na sigla do PT, no andar de cima, adveio da expansão do consumo.

Os problemas sociais são encarados como um defeito de fabricação dos indivíduos, e não como um compromisso a ser reparado por políticas pelos governantes. Com um viés que recende a Société du Mont-Pèlerin (1947), depois sintetizado no Consenso de Washington (1989), o aparelho de Estado dominado pelas finanças não se apresenta como devedor (que é) de direitos. A pobreza é um problema exclusivo dos pobres. Não caberia à esfera estatal despender fundos públicos (reservados aos mais ricos) para tratar uma questão que em nada seria pública. Acredite, se quiser.

Que Bolsonaro não fale de distribuição de renda, planos de habitação, geração de empregos, valorização do salário mínimo e aposentadorias, políticas públicas e sociais está no script de destruição ampla e geral do desgoverno em curso. O que se descobre, agora, é que tampouco considerou a pandemia pauta digna de tratamento pelo Estado. Cada um providencie a Hidroxicloroquina que o charlatão-mor do cuidado precoce receitou, cujos ganhos para determinados laboratórios farmacêuticos ainda precisam ser apurados. No ínterim, com 2,7% da população mundial, a pátria amada fez-se responsável por 12,8% das mortes ocasionadas pelo Coronavírus.

500 mil óbitos não são suficientes para comover o neofascismo e o neoliberalismo, no patamar político-administrativo ou no social-condominial. O núcleo duro de sustentação da quadrilha, que converteu o Palácio do Planalto em puxadinho das milícias, não sofre defecções por conta da indiferença ao sofrimento do povo manifesta pelo repulsivo mandatário. Tampouco hum milhão de vidas canceladas sensibilizam o suporte intoxicado pelo pendor autoritário do extremismo. A indiferença é a segunda pele (dura, de jacaré) de todo neofascista neoliberal.

O odor persuasivo do autoritarismo é sentido nas periferias. Os 57 milhões de votos que conduziram a familiciana à Presidência são a prova. Porém, hoje, o elã que mobiliza os seus aficcionados concentra-se nas faixas intermediárias verdeamarelistas. Essas faixas, que representam em torno de 15% a 20% do eleitorado, sobreviverão à derrota do messias nas eleições de 2022. Ilusão achar que se dissolverão num passe de mágica. O autoritarismo está incrustado na sociedade desde o período colonial-escravista, que perdurou por mais de 350 anos. O neoliberalismo apenas aprofundou a tendência estrutural. O abolicionista Joaquim Nabuco tinha razão: levará tempo para extirpar da alma nacional a escravidão.

O importante é que o programa democrático-popular para a vitória, além de contemplar os batalhadores precarizados e as áreas da saúde, da educação e da segurança, inclua tópicos que interpelem setores arrependidos das classes médias, qual a modificação progressiva na escala tributária do Imposto de Renda. O consenso a ser celebrado não o será pela unanimidade, com efeito. Sim, pela construção da nova alforria através de uma contra-hegemonia socialista / democrata. Com fôlego para as transformações que poderão encaminhar o Brasil até uma verdadeira Nação, no âmbito de uma verdadeira República. As ruas pavimentarão o futuro. – Às ruas! 

  • Luiz Marques é professor universitário, UFRGS

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

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