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A atualidade da luta por uma república democrática e popular | Juarez Guimarães

 

Foto: Paulo Pinto
Foto: Paulo Pinto

Preferimos chamar de diálogo crítico ao invés de uma polêmica continuada a esta série de artigos  sobre a esquerda brasileira, o marxismo e o republicanismo. Isto porque sinceramente cremos que há muito mais  convergência política  do que divergências entre as tradições da Democracia Socialista e da Articulação de Esquerda. Diálogo pois o que se persegue, ao invés de demarcar campos e provar a verdade de uma só razão, é o esclarecimento dos pensamentos,  a superação de mal-entendidos e o alargamento das áreas de convergência política. Crítico já que tem o seu principal alvo a cultura pragmática e adaptativa do PT ao Estado Liberal mas também as tradições  do chamado marxismo-leninismo que separam o marxismo e o anti-capitalismo da cultura do republicanismo democrático.

O principal objetivo continua sendo, desde o início, demonstrar que a crise do PT só pode ser superada com uma resposta identitária, programática e estratégica a partir de fundamentos marxistas, republicanos e democráticos à contra-revolução neoliberal no Brasil. Uma política, assim entendida em seu sentido dramaticamente conjuntural e na perspectiva de uma temporalidade larga, poderia criar um novo campo de unidade histórica e estratégico para a esquerda brasileira e de nova convergência para as esquerdas latino-americanas. Poderia criar igualmente um novo espaço de diálogo e solidariedade ativa entre as esquerdas que lutam contra o neoliberalismo nos EUA, na Europa e em todos os povos submetidos à violência selvagem e destrutiva da ordem capitalista mundial em crise.

Em seu segundo artigo polêmico:  “A pílula dourada do “republicanismo” e da “revolução democrática” – Valter Pomar reitera e expande alguns de seus argumentos, ao mesmo tempo  em que afirma,  em um tom secundário, suas convergências. Começaremos por três esclarecimentos necessários, seguiremos com duas críticas fundamentais e concluiremos com uma grande convergência de sentido.

O primeiro esclarecimento refere-se ao uso do conceito de “contra-revolução neoliberal” para designar o atual movimento político das classes dominantes brasileiras. Ao se afirmar que está em curso uma “contra-revolução neoliberal”, disso não se segue que entre 2003 e 2015, durante os governos Lula e Dilma,  estaria havendo uma revolução democrática no Brasil. O que se documentou fartamente no artigo anterior é que o programa de uma revolução democrática defendida pela Mensagem-DS se opunha exatamente ao limite  real dos governos Lula e Dilma que  conquistaram as maiores mudanças sociais da história brasileira em regime de pactação, mais ou menos conflituosa, com os centros de poder das classes dominantes no Brasil. Isto é, na mesma linha afirmada por Evo Morales, de que a dinâmica da revolução democrática é a melhor estratégia em contraposição à dinâmica da contra-revolução em curso na América Latina.

Por que usar o conceito de “contra-revolução neoliberal”? Para politizar o seu entendimento e captar o sentimento instrumental de suas dimensões midiáticas e jurídicas. Para indicar claramente o seu sentido classista e o papel central de coordenação do PSDB. Para marcar que, mais que um golpe, tratava-se desde o início de uma regressão histórica contra os direitos previstos na Constituição de 1988 e até aqueles direitos trabalhistas conquistados na Era Vargas.

Em segundo lugar, Valter Pomar está certo, não se trata de fetichizar o “republicanismo” e adotar uma postura ingenuamente acrítica ou apologética em relação a esta tradição. O republicanismo da pólis grega era precariamente inclusivo, o republicanismo romano não era democrático no sentido de se apoiar em um princípio de soberania popular, ambos admitiam a escravidão e eram profundamente patriarcais.  O princípio mais consistente de um republicanismo democrático, ao mesmo tempo resolutamente anti-escravocrata e anti-patriarcal, só vai mesmo se formar no século XVIII.

Além disso, no mundo anglo-saxão são típicas as formas contemporâneas ecléticas entre liberalismo e republicanismo, devido à força e potência hegemônica do liberalismo. Mas este é um fenômeno de maior amplitude e dimensão histórica: como afirma Gramsci, nos Cadernos do Cárcere, mesmo os marxismos da II Internacional já estavam profundamente dissolvidos e desorganizados em seus fundamentos filosóficos próprios. O trabalho de pensar as relações históricas entre marxismo e republicanismo tem, assim, um sentido convergente de atualizar o republicanismo na modernidade capitalista e reorganizar os fundamentos filosóficos do próprio marxismo.

Em terceiro lugar, ao se falar no artigo passado no obstáculo do estalinismo como “paradigma negativo” não se estava atribuindo os desvios de direita do PT, sua adaptação ao Estado neoliberal, ao estalinismo. O que seria um absurdo, empiricamente não verificável. O que está se afirmando é algo mais sutil mas não menos importante: a permanência inercial do sentido fundante do estalinismo e  estabelecida na chamada cultura do marxismo-leninismo  – de que Marx funda o seu anti-capitalismo em ruptura com as tradições do republicanismo democrático – funciona como um obstáculo intransponível para que as esquerdas, originadas e ainda inspiradas no marxismo, atualizem a luta contra o neoliberalismo contemporâneo em um sentido hegemônico.

Sem uma cultura do republicanismo, conscientemente crítica e atualizada, os marxistas não conseguem vincular os seus princípios anti-capitalistas à luta democrática em meio às instituições das democracias liberais em veloz e estrutural processo de estreitamento e financeirização. Cria-se um hiato entre a fidelidade ao marxismo, afirmado nos princípios, na maior parte das vezes de forma dogmática, eclética ou doutrinarista, e o trabalho cinzento, cotidiano e reformista, em condições quase sempre de correlações de força adversas. Mas “o movimento é tudo e o  objetivo é nada”, já não disse um célebre reformista, o pragmatismo dissolve à esquerda e à direita, e a dura realidade da potência neoliberal vai seduzindo até as mentes originalmente à esquerda. Quais os caminhos que levaram Levy ao Ministério da Fazenda do segundo governo Dilma e por que a maioria do PT recusou-se a votar em 2015 a mudança da política neoliberal? Não são perguntas banais e merecem respostas refletidas, não simplistas e simplificadoras como em uma retórica que acusa a traição dos princípios do socialismo democrático.

 

Marx como ruptura do republicanismo democrático?

Valter Pomar afirma-se cioso da diferença entre republicanismo e liberalismo de um ponto de vista histórico. Mas quando afirma que criticar o neoliberalismo do ponto de vista do republicanismo é o mesmo que criticar economicamente o neoliberalismo do ponto de vista do keynesianismo ele demonstra o contrário disso. Alguma dúvida de que o keynesianismo é um liberalismo, socialmente progressivo em relação ao liberalismo manchesteriano de origem, mas sem colocar em questão a ordem mercantil capitalista? Então, o republicanismo seria um liberalismo?

O mesmo ponto de vista de vista é reafirmado quando se repete o senso comum da cultura marxista-leninista estalinizada de que o republicanismo tem um caráter “genericamente burguês” e que apenas a partir das revoluções iniciadas em 1848 o liberalismo teria perdido os seus compromissos democráticos, historicamente afirmados nas revoluções democrático-burguesas dos séculos XVII e XVIII.

Ambas as afirmações devem ser revisadas criticamente.  As tradições e autores predominantes na tradição liberal do século XVIII e XIX  não eram democráticas porque não defendiam o direito de voto das mulheres nem das classes trabalhadoras, mas o direito político censitário (excluindo pela renda ou propriedade) ou capacitário (excluindo pelo não acesso à educação) e patriarcal e quase sempre racialista. Se John Stuart Mill, certamente o liberal mais avançado do século XIX e que chegou a relativizar em diálogo com tradições do socialismo até o conceito de propriedade, deve ser considerado um liberal democrata ele tinha consciência de que seus pontos de vista só seriam aceitos em um distante futuro e propunha mesmo um sistema de voto plural, com ponderações diferentes segundo o nível de educação do eleitor, para todo um período de transição necessário.

O mesmo vale para a afirmação do “republicanismo genericamente burguês”. O que se constata nas tradições do republicanismo antigo e, principalmente, nas tradições democráticas  do republicanismo na Modernidade, é um ponto de vista em geral fortemente crítico às dinâmicas mercantis, a uma visão estritamente economicista e mercantil de mundo e ao processo de expropriação e concentração  das propriedades. E, em suas correntes populares, uma clara afirmação de princípios fortemente críticos e alternativos à ordem mercantil em processo de afirmação.

Marx, grande leitor de Aristóteles, já sabia por certo a oposição das virtudes do cidadão da pólis aos interesses da crematística, um fenômeno próprio vinculado ao enriquecimento e não à realização das necessidades do Estado e da família. Em Cícero, o grande autor da tradição republicana romana, a condição de cidadã é incompatível com a dependência econômica em relação ao outro.

Na revolução inglesa de meados do século XVII, o republicano James Harrington  propôs uma lei agrária, de distribuição das propriedades, como fundamento da própria ordem republicana. E concebe os regimes políticos em relação com a concentração ou distribuição das propriedades agrárias. Se o programa dos niveladores ingleses do século XVII continha vários itens contra a concentração das riquezas e propriedades e novos monopólios de comércios, os chamadores cavadores já exercitavam formas coletivas de propriedade. Em Rousseau, o direito de propriedade é convencional e atribuído em seus fundamentos ao povo soberano, que deve regular para que seu uso se faça em torno dos interesses da coletividade. É dele, em “O contrato social” a afirmação que a ordem republicana democrática não deve permitir que “um seja tão rico que possa comprar o outro e nem que um seja tão pobre que deve se vender ao outro”. Em seus “Discurso sobre as origens da desigualdade entre os homens”, Rousseau remonta a própria origem do Estado a uma intenção de dominação dos ricos sobre os pobres.

É conhecida a tradição jeffersoniana de vincular o cidadão ideal ao “farmer”, ao proprietário de terras e sua crítica à afirmação do direito à propriedade como direito natural absoluto. Mais interessantes ainda são as pesquisas recentes do professor Alex Goulevitch da Universidade de Brown, formado em Harvard e com PHD em Columbia, que resultaram no livro “ From Slavery to the Cooperative Commonwealth: labor anda republican liberty in the nineteent century” ( “Da escravidão à república cooperativa: trabalho e liberdade republicana no século XIX”). A expressão “escravidão assalariada” teria chegado a Marx por uma fonte americana secundária – o livro “Man and manners in America”, de Thomas Hamilton, publicado em 1833 –  que narrava as lutas republicanas  de um Partido dos Trabalhadores de Nova York, o qual denunciava a escravidão assalariada e propunha uma reforma constitucional que estatizasse as principais indústrias americanas em formação, colocando-as sob o trabalho cooperativo de seus trabalhadores. Superando, assim, o mais rápido possível o sistema de “trabalho assalariado”.

Em seu artigo, Valter Pomar continua afirmando que Marx operou uma “ruptura com o republicanismo” e o que pretendemos, então, é retornar Marx a um republicanismo burguês  ou pequeno-burguês. Este é um senso comum naturalizado por décadas da cultura do “marxismo-leninismo estalinizado”. O que isto quer dizer: por exemplo, que Marx é a favor da “ditadura do proletariado” e  contra o princípio republicano da soberania popular?

Ora, em seus escritos clássicos e da maturidade sobre a Comuna de Paris, Marx faz a apologia de uma nova forma de Estado, formada através do sufrágio universal (embora ainda apenas masculino), constituída por delegados mandatados e submetidos ao controle permanente das bases. Ele vincula este princípio de auto-governo democrático à idéia mais geral de uma “república social”, uma “república do trabalho”, uma “república vermelha”. Afirma que “a república só é possível como república assumidamente social” e  afirma que “o sufrágio universal , que foi até então abusado – seja servindo para a sanção parlamentar do Sagrado Poder Estatal, seja como um joguete nas mãos das classes dominantes, tendo sido exercido pelo povo apenas uma vez em muitos anos a fim de sancionar o (para escolher os instrumentos do) domínio parlamentar de classe- (é) adaptado aos seus propósitos reais: escolher, mediante as Comunas, seus próprios funcionários para administração e legislação” ( Primeiro rascunho da Segunda Mensagem do Conselho-Geral  sobre a guerra franco prussiana).

A noção de que o marxismo estava vinculado estrategicamente à luta por uma república democrática sob a direção dos operários socialistas está ainda muito viva na esquerda da II Internacional (como em Rosa Luxemburgo), no Lenin de “O que fazer?” (onde centraliza historicamente o movimento bolchevique na luta pela democracia contra o czarismo, marcando sua autonomia em relação aos liberais, diversamente dos mencheviques), no Trotsky do Programa de Transição (no qual a luta democrática está no centro da luta socialista em um processo de transcrescimento em uma dinâmica de revolução permanente).

Ao fazer das formas autocráticas de Estado não apenas a sua identidade, como sua teoria e estratégia, erigindo um muro, uma ruptura e até uma crítica às tradições do republicanismo democrático, a cultura do estalinismo fixou, em um processo de longa duração, o marxismo como um anti-republicanismo. Isto é, o marxismo deixou de se centrar em um princípio de liberdade, em um fundamento histórico poderoso de emancipação anti-capitalista, abrindo-se pela direita à acomodação com as formas estatais da dominação liberal e, pela “esquerda”, às vertentes auto-referidas do marxismo em que só o critério “da verdade de Marx” une.

 

Marx livre

Marcando uma convergência política fundamental, Valter Pomar afirma:

“Estou totalmente de acordo que a tradição socialista não pode olhar apenas para a igualdade, tem que olhar também para a liberdade; não pode olhar apenas para a economia, tem que olhar também para a política; não basta ser socialista, tem que ser democrático. E também estou totalmente de acordo que a tradição socialista pode e deve aprender com as tradições democráticas e republicanas não socialistas.

Mas uma coisa é aprender; outra coisa é transformar o “socialismo” e a “revolução” em adjetivos e a “democracia” em substantivo.

É isso que Juarez faz quando afirma que a tradição marxista se organiza “em torno ao tema fundador da liberdade”, derivando deste suposto “tema fundador” a “incompatibilidade com a desigualdade estrutural, seja do ponto de vista social, de gênero ou de raça”.

Fazer da “liberdade” um “tema fundador” conduz, mais cedo ou mais tarde, a escolhas de Sofia.”

A questão é exatamente esta: se estamos de acordo com o objetivo de construir um socialismo democrático por que não uma revolução democrática? Uma revolução não democrática, que não organize os fundamentos democráticos de um novo Estado, poderá ser o caminho para o socialismo democrático?

Para estabelecer plena coerência entre nossa identidade socialista democrática e nosso objetivo de construir uma sociedade socialista democrática é preciso que o marxismo se centralize em torno do tema da liberdade, disputando e construindo uma alternativa histórica ao liberalismo em torno a este valor fundante da chamada Modernidade. Não fazer isto é deixar que o liberalismo se apresente como o fundador e garantidor da liberdade na Modernidade deixando à esquerda, como no senso comum da Guerra Fria, se apresentar em nome do valor da igualdade. Aliás, é assim que o liberal ético Norberto Bobbio, auto definindo-se como liberal-socialista, abordava politicamente o tema de uma nova síntese histórica entre liberalismo e socialismo, dispensando-os de se misturarem ecleticamente em uma teoria compósita.

Ora, o sentido da própria justiça, da igualdade e da própria fraternidade, é definido por quem detém o controle do poder a partir de um teoria sobre a liberdade que o legitima. Estados liberais julgam que é justa a distribuição de renda derivada da economia capitalista e neoliberais atacam como injustas qualquer política social distributivista, mesmo aquelas que atuam na margem. Estados patriarcais, assentados na dominação das mulheres, consideram justas e naturalizam as dimensões opressivas das mulheres e o seu acesso desigual aos direitos. Estados racistas ou coloniais hierarquizam, estigmatizam e excluem dos direitos fundamentais os negros, os não-brancos, os migrantes, os povos submetidos à exploração imperialista. Eu não posso ser fraterno (ou desenvolver a sororidade, como repõem as feministas) com quem eu não reconheço na dignidade de um ser livre.

Nas experiências frustradas ou tragicamente derrotadas de construção de um socialismo democrático aprendemos definitivamente que se o poder que define a igualdade – a partir de que valores somos iguais, em que medida somos iguais e até a hierarquia burocrática da “igualdade” – não for democrático, não haverá, de fato, igualdade real. Somos iguais, em nossa autonomia e em nossas diferenças, porque somos livres e só seremos livres em uma democracia socialista.

Pensar, assim, a obra de Marx como centrada no valor da liberdade, como uma teoria da emancipação crítica ao capitalismo, aponta para a solução de muitos impasses  centrais da interpretação da obra de Marx e da cultura histórica e contemporânea do marxismo.

Em primeiro lugar, ler a obra de Marx a partir do conceito central de auto-emancipação é o melhor caminho para compreendê-la na coerência de sua origem, formação e desenvolvimento, para pensar a sua relação com os movimentos operários e populares, para superar de vez a oposição ou “ruptura epistemológica” entre o jovem Marx e o Marx maduro, entre a leitura humanista e crítica da cultura do capitalismo e a práxis da revolução, entre o Marx da Comuna de Paris e o Marx de “O Capital”.

Está perfeitamente de acordo com a tese de que o que Marx faz nos Grundrisse e em “O Capital” é atualizar a tradição do republicanismo democrático para a crítica ao liberalismo moderno a bela tese de Ernest Mandel em seu livro clássico “A formação do pensamento econômico de Karl Marx. De 1843 até a redação de O Capital”. Neste livro, editado na França em 1967, ele, em contra-ponto à maré althusseriana e estruturalista da época, Mandel argumenta e documenta como o conceito jovem marxiano de alienação passa no desenvolvimento de sua obra, através do exame crítico da teoria do valor trabalho e da construção do conceito de mais-valia,  de uma concepção antropológica a uma concepção histórica. Argumentando contra o Althusser, Mandel afirma “Não somente o conceito de alienação não é “pré-marxista” mas faz parte do instrumentarium de Marx chegado à maturidade plena. Lendo atentamente o Capital pode-se encontrá-lo aí igualmente aliás, mesmo que algumas vezes sob uma forma inteiramente modificada.”

No caminho mesmo da interpretação de David Leopold em “The Young Marx. German philosophy, modern politics and human flourishing”, Marx já havia conquistado desde a sua crítica à “Filosofia do Direito “ de Hegel, a unidade da crítica à “sociedade civil” liberal (depois desenvolvida na crítica da economia política) e da crítica à moderna democracia liberal que separa o cidadão atomizado do controle real do Estado (depois desenvolvida em suas obras históricas sobre as revoluções francesas, como no 18 Brumário e em “A guerra civil na França”).

Se o conceito de auto-emancipação do proletariado internacional é o índice e o reitor da leitura da obra de Marx não faz sentido a polêmica sobre o  seu caráter externo em relação á classe, nem mesmo a pretensão de tornar o marxismo uma ciência a priori do movimento real, nem a pretensão monopolizadora de chegar a uma “verdadeira e exclusiva” interpretação de Marx. A dimensão praxiológica da auto-emancipação faz do marxismo, desde sua origem, uma teoria “impura”, inscrita desde sempre na carne e na contingência da história, na ventura e desventura da luta dos explorados e oprimidos, com a sua moralidade classista e sua força hegemônica, seu princípio de indignação e sua potência de esperança que é, no fundo, a condição de seu humanismo democrático insuperável e insurreto.

Ler, entender e atualizar Marx a partir do conceito central de auto-emancipação significa recusar como já constata e denuncia o Perry Anderson de “Considerações sobre o marxismo ocidental” o risco do marxismo acadêmico, departamentalizado como crítica da economia, da cultura, de uma antropologia, de um direito crítico e assim por diante. A plenitude do conceito marxista de emancipação deve recusar a analítica da liberdade, isto é, pensá-la como quer o liberalismo, como liberdade econômica, política, sexual, religiosa, de expressão, e pensá-la na sua mútua configuração, fazendo convergir para um novo princípio de liberdade a crítica e a superação da dominação política, da exploração econômica e da desumanização inscritas na própria lógica do capitalismo. Liberdade, já o dissemos, em uma fórmula sintética, “é o direito público de auto-constituir-se, com autonomia em um novo princípio de civilização coletivamente auto-regulado”.

O segundo e imenso ganho que se conquista em ler a obra de Marx como uma aventura crítica da auto-emancipação, inscrita nas contradições imanentes do século XIX, é o de fundir, desde a origem, a crítica da exploração classista às formas de dominação de gênero e de raça. Isto é, o marxismo nasce no mesmo solo republicano democrático das lutas abolicionistas e da primeira onda do feminismo. As relações entre marxismo, feminismo e anti-racismo devem ser pensadas, historicamente, como expressões de uma mesma luta emancipatória contra as opressões da sociedade capitalista e legitimadas por um liberalismo capitalista, patriarcal e racista. Uma revolução democrática deve se afirmar, ao mesmo tempo, em uma direção anti-capitalista, anti-patriarcal e anti-racista, fazendo dos trabalhadores, das mulheres e dos negros, sujeitos centrais de seu processo de auto-emancipação. Que a cultura do estalinismo tenha, em seu estreitamento economicista do marxismo, separado a emancipação do trabalhador, da emancipação da mulher e da emancipação do negro é uma expressão de seu anti-republicanismo, isto é, de ser uma cultura que não se organiza nem se centraliza na idéia de liberdade.

Este mesmo entendimento é fundamental para o novo diálogo entre a cultura do marxismo e as teorias chamadas decoloniais, isto é, que propõem a pensar a emancipação desde a cultura dos povos colonizados, em sua própria linguagem, cultura e princípios de civilização. Como bem demonstrou a fusão entre marxismo e indianismo na Bolívia, tão bem representada publicamente por Evo Morales e Álvaro Liñera, um marxismo republicano, disposto a pensar o povo real em seu processo de constituição enquanto um sujeito político de emancipação, é afim à formação de novos princípios de civilização interculturais. Em Marx, afora a expressão sintomática de seu lugar de formação cultural, euro-centrada, está sem dúvida a melhor e mais profunda crítica histórica do processo de internacionalização do capital, em suas lógicas de destruição das humanidades contidas nas experiências dos povos do mundo, em sua riqueza, multiplicidade e cosmogonias.

Mas é necessário concordar com Valter, em sua afirmação leninista, de que o marxismo é análise concreta da situação concreta. O que está, aliás, perfeitamente de acordo com a natureza praxiológica do marxismo na linha mesma da tradição republicana como bem afirmou Gramsci referindo-se a Maquiavel. É preciso, pois, voltar às implicações deste debate para os impasses atuais do PT diante da contra-revolução neoliberal.

 

Uma república democrática e popular

 Como um marxismo republicano e democrático pode contribuir para superar os impasses da esquerda brasileira, não apenas os do PT, mas os do PC do B e também do PSOL (cuja dinâmica está ainda centrada em pretender ser uma alternativa eleitoral e parlamentar à esquerda do PT), do MST e da Consulta Popular, de diálogo entre as Frente Brasil Popular e Povo Sem Medo, entre as tradições sindicais combativas e os novos movimentos libertários da juventude?

Em primeiro lugar, e sobretudo, precisamos de um princípio forte e emancipatório de liberdade para enfrentar este conceito regressivo de liberdade que é replicado cotidianamente, ideológica e publicitariamente, pelo neoliberalismo. Dele vem o fundamento do programa do Estado mínimo e da mercantilização. Não se luta pela hegemonia sem enfrentar este núcleo organizador da visão de mundo neoliberal.

Se a vida intelectual de Fernando Henrique Cardoso deve ser pensada como o da práxis de atualização na alta cultura brasileira da fusão entre democracia e mercado, o golpe com sua palavra de ordem “Ordem e Progresso”, ressignificados de sua origem positivista para o sentido de despotismo e capitalismo selvagem, é a sua expressão bruta. A imanência política do golpe, sua capacidade de aderência e sua força orgânica, vem do fato dele ser uma resposta à direita, na linguagem cosmopolita do capital financeiro internacional, aos impasses reais da democracia brasileira.

Sem este conceito de liberdade, não formaremos cidadãos ou cidadãs socialistas mas consumidores cada vez mais inscritos nas lógicas segregacionistas, predatórias e egóticas do consumismo mercantil. Pois como Rousseau nos ensinou definitivamente a liberdade é fraterna, a todo direito corresponde um dever, e eu só sou livre na relação intersubjetiva e compartilhada com as liberdades dos outros. E como a republicana feminista Mary Wollstonecraft, nos ensinou, as mulheres devem ser cidadãs e uma longa revolução deve transformar os fundamentos da ordem patriarcal, inclusive na ordem familiar e na cultura amorosa.

Em segundo lugar, o campo majoritário do PT e a maioria do PC do B ainda não firmaram uma estratégia política coerente de resistência ao golpe, como se viu no episódio da votação da presidência da Câmara e do Senado e como se expressou limpidamente na entrevista de Humberto Costa à revista Veja. Ora, há uma diferença estratégica brutal entre fazer oposição ao governo Temer e lutar consistentemente para sua derrubada em função de sua ilegitimidade como expressão de um golpe.

Na cultura do republicanismo democrático, a linguagem pública desta opção estratégica legítima é a do Direto de Resistência, formado nas revoluções republicanas fundadoras da Modernidade, adotado por Marx e inclusive integrado ao código de direitos da ONU. Todas as formas de luta – da desobediência civil até o enfrentamento massivo, das ocupações ao boicote parlamentar, da denúncia jurídica aos escrachos – são legítimas quando se luta contra um governo despótico, um Congresso ilegítimo e um Judiciário partidarizado.

Em terceiro lugar, um marxismo republicano e democrático afirmaria, sem vacilar, a centralidade da luta democrática, isto é, todas as lutas setoriais e de resistência devem convergir para o leito comum de eleições diretas e de uma Assembléia Constituinte que reorganize os fundamentos de um governo e de um regime democrático no Brasil.

Como se procurou argumentar, não cabe a oposição entre a bandeira das diretas já e de uma Assembléia Constituinte. Abandonar a luta por diretas já é resignar-se ao exercício destrutivo até o fim do governo despótico de Temer; centrar-se apenas na defesa das eleições diretas e da defesa da candidatura Lula, sem pensar o sentido de esquerda de seu programa e a formação de uma nova institucionalidade republicana e democrática, que democratize os fundamentos do poder, é voltar à política de conciliação que já revelou o seu impasse e o seu limite estratégico.

Em quarto lugar, um marxismo republicano e democrático é fundamental para pensar a retomada do desenvolvimento econômico sustentável, baseado na soberania nacional, na distribuição de renda e na inclusão social. O limite do chamado “social desenvolvimentismo” é político: democrático porque não se faz uma outra macro-economia sem retirar o Banco Central das mãos do capital financeiro e o Ministério da Agricultura das mãos do agro-negócio nem se pode manter um ciclo sustentável de crescimento sem uma expansão inaudita da economia do setor público.

A política da “economia mista”, do mix “público-privado”, das Parcerias Público-Privadas, da abertura de capital das empresas públicas, das isenções fiscais sem pacto de emprego, reflete o quanto a esquerda brasileira foi cedendo espaço à lógica capitalista, inclusive financeirizada, em sua gestão da economia. Um marxismo republicano saberia defender e legitimar contra a pressão dissolvente do neoliberalismo uma lógica crescente da propriedade pública, do financiamento público, da regulação e do planejamento democrático e participativo.

Um quinto tema fundamental é o da comunicação pública. Na tradição republicana e do republicanismo democrático, não se separa cidadão e direito à voz pública, política de retórica, liberdade de liberdade de expressão, direito público à liberdade de direito público à comunicação. A esquerda brasileira ainda não formou o seu programa histórico de constituição de uma comunicação pública, democrática e pluralista e, se o povo brasileiro conquistou em 1988, enfim, o direito de votar não conquistou definitivamente o direito à voz. A cultura do silêncio e a privatização dos meios de comunicação de massa – a corrupção do fundamento da opinião pública – como nos ensinou o mestre Venício Lima tem uma longa e contemporânea história entre nós. Em sociedades midiatizadas, nas quais as relações sociais são geneticamente e cada vez mais  formadas na sociabilidade midiática, um marxismo que partidariza ou dissolve o direito público de voz nunca será capaz de formar hegemonia, de disputar valores, de formar maiorias políticas sólidas.

Um sexto tema, enfim, é o da corrupção. Há neste campo uma importante e nova contribuição do companheiro Valter Pomar para o 6º congresso do PT, com a qual é possível concordar em seus argumentos fundamentais. Neste importante documento, a corrupção é entendida, a partir da identidade socialista democrática, como inscrita na própria dinâmica capitalista e neoliberal.

O PT, assim como em geral a esquerda brasileira, ainda não formou um programa histórico de combate à corrupção no Estado brasileiro. Sem este programa, ela fica vulnerável às dinâmicas de criminalização instrumentalizadas de forma violenta pelos neoliberais. É preciso, pois, coerentemente segundo os valores de um marxismo republicano e democrático, conjugar este programa, fazer dele a referência para as auto-críticas e mudanças necessárias e, ao mesmo tempo, fazer a denúncia pública consistente da Operação Lava-Jato.

Em todas estas seis questões decisivas há convergências fundamentais entre a posição da Democracia Socialista e da Articulação de Esquerda.

Em seu documento, o “O PT e a luta contra a corrupção”, Valter Pomar afirma em seu parágrafo 52: “Dizemos supostamente republicana, porque uma postura verdadeiramente republicana não permitiria que órgãos do Estado agissem com tamanha independência, nem permitiriam que tais instituições agissem impunemente como representantes dos interesses dominantes. Por isto, uma postura verdadeiramente republicana supõe impor derrotas profundas ao controle do Capital sobre a sociedade e sobre o Estado. Supõe, portanto, construir outro tipo de república, totalmente distinta da república realmente existente. Por esquecer deste detalhe, o que se apresenta como “republicanismo” não passa da mistura entre tibieza política e ilusão no caráter neutro do Estado.”

Em outras palavras, um “republicanismo” que seja na verdade a legitimação de uma adaptação à ordem liberal não pode superar a corrupção. “Uma postura verdadeiramente republicana supõe impor derrotas profundas ao controle do Capital sobre a sociedade e sobre o Estado”:  para derrotar a contra-revolução neoliberal é preciso lutar desde já por uma república democrática e popular.

Juarez Guimarães é professor da UFMG

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