Comentário a partir do livro de Francesca Bria e Evgeny Morozov.
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A PhD em Ciências Sociais e Econômicas pela Sapienza Università de Roma e Comissária de Tecnologia e Inovação em Barcelona, Francesca Bria, junto com o editor da revista norte-americana Foreign Policy e articulista em diversos jornais europeus, Evgeny Morozov, escreve a quatro mãos o livro A cidade inteligente: Tecnologias urbanas e democracia, traduzido em português pela Ubu Editora. Originalmente publicado pela Fundação Rosa Luxemburgo, em 2019, o ensaio analisa a dinâmica e a estrutura das soluções tecnológicas nas smart cities, com um pensamento crítico.
A italiana Francesca Bria e o bielorrusso Evgeny Morozov descortinam as mudanças no modo como o capital financeiro e o rentismo se acoplam às plataformas e submetem populações à precarização do trabalho, à gentrificação com base na tecnologia e à exploração pervasiva. Assim, instrumentos de computação se infiltram nos poros e artérias da realidade imperceptivelmente. “Nenhuma cidade pode igualar o poder computacional do Google, do Facebook ou até mesmo do Uber”. Sequer uma coalizão de municipalidades consegue fazer frente ao poderoso acervo cognitivo das Big Techs.
Hoje avanços tecnológicos elevam a “dadolatria” à condição de religião da economia hegemônica. Sensores, conectores, roteadores e algoritmos transmutam o espaço urbano em um laboratório para a extração de dados, a direção e a modelação dos comportamentos no consumo e na política. Para qualquer efeito, os resultados são apresentados como um desdobramento “neutro” da tecnologia da informação. A internet seria uma gestora técnica de coisas, ao revés de pessoas. A narrativa do marketing tem as cores da manipulação e da mentira, tipo os ajustes fiscais aos olhos dos ingênuos.
Quatro pontos são destacados em projetos de cidades – verdadeiramente – inteligentes: (a) contratos com empresas que enfatizam o software livre e códigos abertos auditáveis em prol da comunidade; (b) demonstração de que as demandas populares são atendidas, e não capturadas pelos agentes do executivo; (c) experimentações em bairros específicos para averiguar a eficácia ao conjunto e; (d) criação da governança coletiva de dados (data commons) sobre pessoas, ambientes e objetos conectados. O último item muda o regime de propriedade para enfim desprivatizar as informações.
Neoliberalismo 2.0
Todos querem materializar um mundo racional, mas as novíssimas tentativas respondem por um urbanismo empreendedor e financializado, cuja expansão dispara depois da década de oitenta. As smart cities – a expressão é patenteada pela IBM – querem mostrar a superioridade urbanística da forma mercado. O progresso é atribuído ao engenho e à mitificada inventividade do setor privado, sendo sinônimo de cidade verde, cidade carbono-zero, cidade eco-friendly. Naturaliza-se a pauta corporativa. Em vez de investigar a crise climática, os abutres faturam com as enchentes e mortes.
A Índia já possui urbes particulares (Lavasa, Gurgaon) com metas de alfabetização em presídios para reduzir reincidências. Pior, dispõe de hum trilhão de moneys para outras cem cidades com o selo futurista da “família Jetson”. As companhias alemãs, chinesas e o Vale do Silício brigam pela oportunidade de negócios. Câmeras de circuito fechado acionam um panóptico com drones e robôs militarizados. A coleta de dados pessoais permite a cobrança de locatários segundo as possibilidades e as necessidades de cada um, on-line. O McKinsey Global Institute estima um impacto econômico dos aplicativos e produtos da “Internet das Coisas” entre 3,9 e 11,1 trilhões de dólares, em 2025.
Os índices e pontuações são fabricados em “agências de riscos”, Moody’s ou Standard Poor’s, com a compilação de ranques de inovação, criatividade e o complexo urbano-capitalista emergente em think tanks, fundações, ONGs. A propósito, para evocar dois neologismos franceses, a cruzada do dinheiro acusa o bureaucrate responsável por órgãos de regulamentação e incensa o intellocrate, a inteligência artificial (IA). O neoliberalismo 1.0 é absorvido pelo neoliberalismo 2.0, que age ao estilo dos escavadores de tesouros na selva moderna. A web não é um inocente clube de amigos.
Os dados são commodities leiloadas em mercados subterrâneos, sem holofotes ou estardalhaço. Dá para adivinhar a função de Elon Musk na administração da potência imperialista. Aumentar a aposta nos dogmas do Consenso de Washington – privatização, empreendedorismo e rejeição dos vetores de igualdade. Mas a mobilização da sociedade na contracorrente da acumulação obriga a calibrar a linguagem. Em Wall Street já se ouve sobre a smart participation e as smart citizens. Mudar para que tudo fique como está: eis a astúcia capaz de distinguir o sistema de dominação que aprendeu, melhor que os anteriores, a metabolizar as críticas e transformá-las em mercadorias à venda.
Alianças solidárias
Para Francesca Bria e Evgeny Morozov, a batalha para frear a ganância exige fortes “laços com os movimentos sociais e uma geração de políticos que recuse o urbanismo de austeridade, altamente financeirizado”. No Brasil, o rent-seeking blinda os juros extorsivos do Banco Central. O direito à cidade implica a conversão em patrimônio comum da água, ar, energia elétrica, moradia e saúde com reversão da apropriação privada de valores comuns nas plataformas. Um jogo duro, decerto.
No capítulo 1, da Parte II, os autores se debruçam sobre estudos de casos concretos que desafiam o eclipse da consciência dos consumidores e dos cidadãos. A começar pela emblemática e charmosa capital da Catalunha, de tradição anarquista, que assume um papel de vanguarda na conquista da soberania tecnológica. “Barcelona passa por uma revolução democrática, de baixo para cima, promovendo redes de cidades rebeldes que inovam em políticas públicas e desafiam o status quo”.
A seguir, a dupla elenca lutas por uma tecnologia de dados aberta (Barcelona, Amsterdã); banda larga universalizada (Nova York, São Francisco); hackeamento de aplicativos de smart city no interesse das massas (Helsinque); cooperação entre cidades para o compartilhamento de serviços (Seul). O que une insurgências esparsas à espera de uma síntese é a defesa da esfera pública. Trata-se de reatualizar o que Edgar Morin expôe em La brèche sobre o acontecimento do Maio de 1968, no mapa-múndi. Na ocasião, os protestos miravam a autoridade. Agora, confrontam o ataque à privacidade dos indivíduos e o sequestro de bens coletivos digitais pelas Big Techs, à luz do dia.
A informatização é o núcleo das relações na “era da infocracia”, conforme a designação de Byung-Chul Han ao refletir sobre a digitalização e a democracia em choque; não por causa da “razão de Estado” maquiaveliana, porém da ambição de monopólios tecnológicos (capitalismo de vigilância). As plataformas são multiutilitárias e de incontestável importância para a estabilidade da ordem social. Motivo suficiente para o povo acessar e assumir decisões que afetam sua (nossa) existência cotidiana. O segredo viola o princípio democrático e republicano de transparência administrativa.
As cidades devem exercer a soberania sobre IAs e máquinas de aprendizado para orientar o rumo das infraestruturas (software, hardware, centros de dados) de computadorização. Alianças solidárias com movimentos, partidos e governantes progressistas garantem que os informes de dispositivos cibernéticos não sejam reféns de silos corporativos; sejam de utilidade pública. O eixo predatório não é uma opção; é rendição. Solidariedade, direitos humanos, ambientais, trabalhistas e de gênero condensam as diretrizes para outro mundo. O sonho performático do poeta é a certidão para existir: “A partir deste instante / a liberdade será algo vivo e transparente / como um fogo ou um rio”.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.
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