No Brasil, nos últimos dez anos, a agenda de políticas públicas de juventude avança e modifica-se, institucionalizando-se e compreendendo cada vez mais a juventude enquanto sujeito de direitos. Ao mesmo tempo, a consolidada agenda de políticas públicas para mulheres inflexiona-se passando a ter centralidade as políticas que possam contribuir para a construção da autonomia econômica das mulheres.
Dois movimentos positivos, porém em ambos as mulheres jovens pouco têm visibilidade, e quando tem, não são compreendidas em suas diversidade e complexidade.
Construir uma agenda de políticas para as jovens mulheres no campo do trabalho requer a compreensão deste cenário e mais do que isso, requer a construção histórica deste sujeito político.
Este artigo busca contribuir neste desafio ao dar visibilidade ao tema, ao traçar o cenário no qual as políticas públicas de juventude e as de mulheres estão inseridas, ao retratar as principais características das jovens mulheres no mercado de trabalho, e ao apontar caminhos necessários para seu avanço.
Juventude e Mulheres nas Políticas Públicas
A partir dos anos 90 observamos as primeiras iniciativas de programas e ações específicas para jovens, marcados fortemente pela ótica da prevenção e controle da juventude. Isso se expressou, por exemplo, na criação de programas esportivos, culturais e de trabalho orientados para o controle social do tempo livre dos jovens, destinados especialmente aos moradores dos bairros periféricos das grandes cidades brasileiras. Nesta década, também foram criados os primeiros órgãos de juventude em alguns municípios do país.
Nos últimos dez anos, o tema ganha força no debate sobre as políticas públicas no Brasil. Observamos um crescimento significativo dessas experiências e um adensamento do debate, que produz reflexões importantes para que a juventude passe a ser tomada como foco de ação.
Normalmente vista como fase problemática, vulnerável ou transitória para a vida adulta, a juventude passa cada vez mais a ser encarada a partir de sua integralidade, e avança a consideração dos/as jovens enquanto sujeitos de direitos e como atores necessários na discussão e formulação das políticas públicas voltadas a eles.
Um marco nessa mudança de enfoque desdobra-se, em 2005 na criação da Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), do Conselho Nacional de Juventude (Conjuve) e do Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem). E ainda, na conquista, em 2010, da Emenda Constitucional 65, que incluiu a palavra “jovem” na Constituição Federal, estabelecendo como juventude a parcela da população com faixa etária entre 15 e 29 anos.
Paralelamente à consolidação do campo de políticas públicas para juventude no Brasil, o debate sobre políticas públicas para as mulheres também avança e ganha uma nova dimensão.
Fruto da luta histórica e secular das mulheres, algumas conquistas nas últimas décadas no Brasil passam a se concretizar: ampliação da presença no mercado de trabalho, aumento do nível de escolaridade, presença maior em diversos âmbitos do mundo público, indícios de mudanças do papel das mulheres nas unidades familiares. Contudo, ainda com fortes embates, reações e discriminações.
No âmbito governamental, a agenda das políticas públicas para as mulheres, até recentemente, teve como centralidade o urgente combate à violência sexista. Esta centralidade resultou na imprescindível aprovação da Lei Maria da Penha, em 2006. Com a aprovação desta Lei, a questão da violência sexista passou a ser encarada não mais como problema particular de pequeno potencial ofensivo e foi colocada como agenda pública, como um crime a ser combatido que é parte do machismo estruturante de nossa sociedade. E assim, ajudou a abrir caminhos para agregar um outro ponto de vista sobre as políticas públicas para as mulheres, que é o olhar a partir da construção das condições para a autonomia, especialmente a autonomia econômica e o direito ao trabalho.
Homens e mulheres devem ter igual direito de acesso a um trabalho decente, com salários dignos, condições de saúde adequadas, garantia de direitos trabalhistas e de organização sindical. Esses aspectos, associados à inexistência de qualquer forma de discriminação são essenciais para reverter um processo de pobreza e para construção da autonomia econômica das mulheres. Com este entendimento, ao focar o debate na autonomia econômica, a agenda das políticas públicas das mulheres traz ao centro do debate a necessidade do reconhecimento do direito do trabalho das mulheres e o questionamento à divisão sexual do trabalho.
A divisão sexual do trabalho e as jovens mulheres
A “divisão sexual do trabalho” é baseada em dois princípios. O primeiro é da separação, isto é, há atividades que são consideradas como exclusivamente de homens e outras que são tidas como exclusivamente de mulheres. Assim, temos um modelo de sociedade no qual as mulheres são responsabilizadas pelo chamado trabalho reprodutivo, de cuidados com a reprodução da vida humana, de realização de tarefas domésticas e de cuidar dos filhos, marido, idosos e doentes. Ao passo em que aos homens atribui-se a responsabilidade pelo trabalho produtivo, de produção de mercadorias, realizado fora de casa.
O segundo princípio é o da hierarquização, que valoriza o trabalho produtivo em detrimento do reprodutivo. O trabalho dos homens tem mais reconhecimento e valorização social. Deste modo, a divisão sexual do trabalho é a base material da opressão das mulheres e da perpetuação das desigualdades entre os sexos.
Apesar das conquistas citadas, a divisão sexual do trabalho ainda é uma realidade e a desigualdade entre homens e mulheres não foi rompida. O trabalho de cuidados continua a ser tratado como uma questão apenas das mulheres, ao invés de ser tratado como um assunto público, de interesse de toda sociedade. Ao mesmo passo em que as mulheres têm que administrar seu tempo para o trabalho de cuidado e para o trabalho remunerado, em busca de autonomia econômica e financeira.
A condição de ser mulher é para a vida inteira, enquanto ser jovem compreende somente um período da vida. Porém, já na juventude se manifestam condições da divisão sexual do trabalho que deixarão consequências para toda vida das mulheres e que refletem fortemente na situação destas no mercado de trabalho.
Cenário para construção de uma agenda política para jovens mulheres
Ao propormos fazer um debate sobre a construção de uma agenda política das jovens mulheres no campo do mundo do trabalho esse redimensionamento nas políticas públicas para mulheres e a consolidação da juventude enquanto sujeito de direitos contribuem sobremaneira e precisam ser levados em consideração.
É desde a juventude que as desigualdades de gênero se expressam. Os indicadores de juventude, por exemplo, demonstram um forte componente de gênero.
Sabemos que a juventude brasileira é uma juventude trabalhadora, dado que mais de 70% desta está participando do mercado de trabalho (empregada ou procurando emprego). Desta juventude, a maioria tenta conciliar educação e trabalho. E no caso das jovens mulheres especialmente, buscam conciliar trabalho, educação e responsabilidades familiares/domésticas.
Os eventos que mais caracterizam a juventude são a frequência à escola e/ou a participação no mercado de trabalho. Entretanto, para as mulheres jovens, de 15 a 29 anos, casamento e maternidade ainda são os eventos mais importantes na sua inserção social, ainda que a participação na escola e no mercado de trabalho tenha crescida nos últimos anos.
Entre 2000 e 2010 aumentou o numero de jovens que não estudavam nem trabalhavam (os chamados “nem-nem”). Saíram de 16,9% do total da população jovem para 17,2%. O crescimento foi diferenciado por sexo, visto que entre os homens aumentou em 1.107 mil, e entre as mulheres diminui 398 mil. Mas estes dados significam que do total das mulheres jovens 23,2% não trabalham e não estudam, mais de 6 milhões, enquanto que os homens nessa condição são 11,2%, menos de 3 milhões.
A posição familiar desses jovens apresenta também um forte componente de gênero: grande maioria dos homens “nem-nem” residiam como filhos/netos, ou seja dependiam dos pais ou avós (83,7%), enquanto que entre as jovens mulheres mais de 66% vivem como cônjuges, e 61% já tinham filhos. Isso nos permite afirmar que parte significativa dessas mulheres tem família e está desempenhando o tradicional papel de mãe e dona de casa.
Estes jovens “nem-nem” em sua enorme maioria não são os filhos da elite, que podem optar por não trabalhar e não estudar. Pelo contrário, são jovens de baixa renda, que tem como rendimento médio domiciliar R$ 1.621,86. Para efeito comparativo, entre os jovens que trabalham e estudam, o rendimento médio domiciliar é de R$ 3.024,34.
As jovens mulheres rurais
No contexto rural, a invisibilidade do trabalho feminino juvenil parece ser ainda mais intensa, isto porque grande parte do trabalho que contribui para o sustento da família ocorre dentro do próprio lar, por meio das atividades voltadas para o consumo da família e do trabalho que envolve a participação de todos os membros da família. O trabalho familiar implica o envolvimento dos diferentes membros da família na produção, seja para o autoconsumo ou para a venda. No entanto, grande parte deste trabalho aparece apenas como complementar.
A divisão do trabalho no meio rural segue, portanto, a lógica patriarcal e da divisão sexual do trabalho que mantém invisível o trabalho feminino e responsabiliza as mulheres pelas tarefas de reprodução e considera a pessoa do sexo masculino como aquela responsável pelo provimento e “chefe” da família.
Além de grande parte do trabalho feminino juvenil rural não ser remunerado, o reduzido acesso de crianças à creche ou pré-escola contribui para sobrecarregar a jornada de trabalho das mulheres jovens rurais.
Jovens mulheres no mercado de trabalho
De acordo com a síntese da situação juvenil no mercado de trabalho brasileiro, apresentada na Agenda Nacional de Trabalho Decente para Juventude, entre as mulheres que estão no mercado de trabalho, grande parte está presente em ocupações que indicam maior precariedade: trabalho sem carteira assinada, com longas jornadas, baixos salários, locais insalubres e trabalho doméstico sem carteira assinada. A despeito da maior escolaridade alcançada pelas jovens, elas têm menos acesso ao trabalho com carteira assinada em relação aos rapazes.
Entre as jovens mulheres que conseguem cursar faculdade, muitas se inserem em profissões relacionadas ao cuidado, e que por serem tradicionalmente identificadas com habilidades “naturais” das mulheres, oferecem baixos salários à elas.
Entre as jovens mulheres apenas com ensino fundamental ou médio, as ocupações de empregada doméstica, atendente de telemarketing, cabeleireira, manicure, vendedoras e recepcionistas englobam majoritariamente as possibilidades de emprego oferecidas às jovens mulheres na área urbana.
Em ambos os casos, a trajetória da jovem mulher no emprego é fortemente marcada por discriminações sexistas, inclusive sendo elas o maior alvo do assédio moral e sexual.
Jovens mulheres e as reivindicações nas agendas públicas
A condição das jovens mulheres no acesso e permanência ao mercado de trabalho é diferenciada e requer políticas que possam dar conta desta dimensão geracional e de gênero.
A tarefa de construção de uma agenda políticas das jovens mulheres no campo do trabalho não é fácil. Tendo como parâmetro os espaços das Conferências Públicas construídas pelo governo federal nos últimos anos, com ampla participação e mobilização social, podemos afirmar que o tema ainda não está consolidado nem entre a juventude e nem entre as mulheres.
Na resolução final da III Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, no eixo de Autonomia econômica e social encontramos duas resoluções generalistas:
• Fomentar a participação de mulheres jovens, em sua diversidade, garantindo e fiscalizando a aplicabilidade da lei que oferece às mulheres adolescentes o primeiro emprego e o programa aprendiz.
• Garantir possibilidade de geração de trabalho e renda às jovens que cumprem medidas sócio-educativas.
Na resolução final da 2ª Conferência Nacional de Juventude, no eixo de Desenvolvimento Integral, onde localizam-se as propostas sobre trabalho, não foi aprovada nenhuma proposta com menção às jovens mulheres.
Um importante instrumento nas consolidação das políticas de juventude no campo do trabalho é a Agenda Nacional de Trabalho Decente para Juventude (ANTDJ). Documento lançado em 2012, construído através da coordenação conjunta da Secretaria-Geral da Presidência da República, por meio da Secretaria Nacional de Juventude, e pelo Ministério do Trabalho e Emprego, com a assistência técnica da OIT, e composto por representantes de trabalhadores, empresários, órgãos governamentais e com participação do Conjuve.
Na ANTDJ há, entre as quatro prioridades, uma específica sobre igualdades de oportunidades e tratamento, com uma linha de ação sobre “Igualdade de oportunidades e combate à discriminação”. O caminho para consolidação destas linhas de ações é a divulgação e transformação da ANTDJ em um Plano de Ação de Trabalho Decente para Juventude, com metas, responsabilizações e programas concretos para sua implementação.
A agenda das jovens mulheres no mundo do trabalho
Construir propostas que viabilizem a autonomia econômica das jovens mulheres e a construção da igualdade exige pensar políticas que rompam com a divisão sexual do trabalho, ou seja, políticas que permitam o acesso e a permanência das mulheres no mercado de trabalho, em condições de igualdade aos homens e que, paralelamente, as livre da exclusiva responsabilização com os trabalhos domésticos/familiares (tais como os restaurantes populares e as creches públicas).
É preciso também implementar políticas para que as jovens não tenham que trabalhar tão cedo, ou seja, que estas possam ter o direito de terminar seu ciclo educacional, e somente depois ingressar no mercado de trabalho, com condições mais favoráveis de acessar um trabalho não precário. Além disso, é necessário promover a oferta de orientação profissional que problematize as ocupações tradicionalmente femininas e masculinas.
Os caminhos para a construção da autonomia econômica das jovens mulheres exigem rompimentos nas relações machistas de nossa sociedade, de forma que elas possam se fortalecer como indivíduos autônomos, capazes de projetar seu futuro. São centrais, nesse âmbito, além das políticas públicas voltadas à construção da autonomia econômica, as condições adequadas para a iniciação na esfera da sexualidade e das relações afetivas, o direito das jovens ao território, de escolha em relação à maternidade, à experimentação e à vida segura e especialmente, o direito à participação.
Será somente a partir da visibilidade deste tema, da problematização, do amplo debate entre academia, movimentos sociais e governo que será possível avançar nesta construção.
Mas, sobretudo, serão as jovens mulheres, em sua diversidade e complexidade, o sujeito histórico com a responsabilidade e capacidade de construir a agenda política para sua emancipação.
* Léa Marques é Socióloga e assessora política da Secretaria Nacional de Juventude da CUT.