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A crise do privado

A crise econômica mundial reabriu o debate da função do Estado, frente ao desastre que foi a política neoliberal implementada no mundo durante os últimos trinta anos. Entretanto, se hoje há uma necessidade objetiva do Estado intervir na economia, ainda há de se lembrar que o embate ideológico persiste. O Rio de Janeiro tem exemplos importantes desse embate tão atual.

Bernardo Cotrim e Bruno Moreno *

A crise econômica mundial reabriu o debate da função do Estado, frente ao desastre que foi a política neoliberal implementada no mundo durante os últimos trinta anos. Reunidos em Davos, no Fórum Econômico Mundial que ocorreu no início do ano, neoliberais envergonhados, em uníssono, defenderam a maior presença do Estado na economia, como forma de salvar o capitalismo de si próprios.

Entretanto, se hoje há uma necessidade objetiva do Estado intervir na economia, por não existir outra saída, ainda há de se lembrar que o embate ideológico persiste. Os valores trazidos pelo discurso neoliberal, em vários aspectos, tentam permanecer. A prevalência deste discurso  poderá fazer com que, após o término desta crise, uma nova onda de expansão do privado sobre o público aconteça, e a hegemonia do capital financeiro – hoje contestada – se restabeleça com força total.

Público x Privado
Um dos pilares do discurso neoliberal é o da maior eficiência do privado sobre o público. Tal conceito, não por coincidência, consta como um dos princípios constitucionais que deve reger a Administração Pública. Ainda sem coincidência alguma, fora este inserido na Constituição pelo governo FHC justamente para fundamentar os processos de privatização.

Vimos recentemente o quão eficiente é o setor privado para demitir trabalhadores, aproveitando o discurso da crise sem que, inclusive, os seus lucros tenham diminuído. Não por coincidência, três grandes empresas-chave, privatizadas nos anos 90, foram pioneiras. CSN, Vale e Embraer se mostraram eficientes para tentar manter os lucros de seus acionistas acima de tudo, colocar trabalhadores na rua e contribuir para o agravamento da crise.

Nos mesmos anos 90, vimos uma Petrobrás sofrendo um profundo processo de terceirização de seus quadros. A terceirização traria eficiência, diziam seus defensores, em especial os tucanos. O discurso era quase o de que o assédio moral nas relações de trabalho garante a eficiência dos serviços. Vimos uma Petrobrás definhando e correndo o risco de virar Petrobrax.

Na verdade, esse é o grande propósito do discurso da eficiência do privado. Mascara, na verdade, toda uma concepção segundo a qual o fundamento principal é o lucro para um pequeno grupo. Uma empresa que dá grandes lucros, sob esse, matiz é uma empresa que cumpre sua função.

Por conta disso, direitos trabalhistas são transformados em “pesados encargos”, como se fossem realmente um óbice ao desenvolvimento da empresa. Esse processo busca uma maior acumulação de lucro por parte dos acionistas, e assim, prega uma maior racionalização interna da produção, na qual é peça-chave a retirada de direitos trabalhistas. A contrapartida é a completa desracionalização da realidade sócio-economica. Para além da empresa, o caos social.

Ou seja, de acordo com essa visão, a boa empresa tem sua função social reduzida à produção de lucro, não tendo qualquer espécie de preocupação objetiva com a inserção da população que está excluída do mundo do trabalho. É justamente a lógica dos grandes rentistas.

No período de crise, justamente, o que se precisa para sua superação é a manutenção de direitos trabalhistas e, inclusive, sua ampliação. Se a inserção e não a exclusão da população da economia ativa tem como objetivo justamente que “a roda não pare de girar”, podemos concluir que as empresas privadas pouco contribuem para a superação da crise, se comparadas com as possibilidades que uma empresa sob controle público pode proporcionar.

O Estado no setor produtivo
Durante alguns anos, o discurso de defesa do enxugamento da máquina pública e de uma menor presença do Estado na economia conseguiu ter grande entrada. A não intervenção do Estado no setor produtivo, e sim que assumisse um papel apenas regulador, eram medidas positivas.

Sob esse aspecto, o tempo foi o melhor espanador das falsas verdades. Além das sucessivas crises provocadas por essa política, até a crise que vivenciamos atualmente, pudemos notar que as melhores experiências de enfrentamento da crise vêm justamente daquelas que promoveram uma maior intervenção do Estado na economia. O recente estudo realizado pelo IPEA ainda veio por fim à falsa idéia de que o Estado brasileiro é inchado. No levantamento entitulado “Emprego Público no Brasil: Comparação Internacional e Evolução Recente”, o Ipea constatou que a participação do emprego público é pequena no País. O percentual de servidores entre o total de ocupados é de 10,7%, e de 5,36% se comparado à população total. De acordo com o estudo, o Estado no Brasil é menor que nos EUA, Espanha, Alemanha, França, Suécia, Argentina, Uruguai e Paraguai.

É emblemático que, sob o governo Lula, tenhamos uma franca recuperação da Petrobrás, com novos concursos, redefinição de prioridades e a assunção de um caráter estratégico para o Brasil. Felizmente, podemos ver ainda a diminuição da meta de superávit primário para 2,5% do PIB, possibilitando que a Petrobrás gire seu capital para a promoção de políticas públicas, contribuindo para amenizar os efeitos da crise e superá-la.

Os serviços públicos
Se no setor produtivo, a realidade tende a mostrar claramente a enorme importância da presença ativa do Estado para que os resultados comerciais sejam distribuídos de maneira mais democrática, no setor de serviços, ainda que sob outro aspecto, não tende a ser diferente.

A privatização de serviços públicos, em especial, na área de transportes, mostrou que não se leva em conta a universalização dos serviços prestados e a necessidade da inclusão de setores que se encontram alijados dos menores níveis de cidadania. Como no setor produtivo, a lógica que prevalece é a do lucro.

A fotografia que vem do Rio
No estado do Rio de Janeiro, tivemos, recentemente, dois curiosos exemplos de como funciona a iniciativa privada na prestação de serviços públicos.

O primeiro envolveu a empresa Barcas S/A, concessionária dos serviços de transporte na Baía de Guanabara. Quem tem que atravessar a Baía diariamente sabe que o tumulto ocorrido não foi o resultado de um incidente de um dia apenas. As filas nos horários de rush chegam a mais de 300 metros.

Essa concessionária de transportes marítimos sagrou-se vencedora de uma licitação ocorrida em 1998, após a venda da CONERJ (Companhia de Navegação do Estado do Rio de Janeiro), no governo do tucano Marcelo Alencar. Assumiu seus ativos e passivos e teve como compromisso a oferta de 10 mil lugares por hora nos horários de pico. Além disso, no contrato de concessão, a Barcas S/A assumiu o compromisso de construir 4 novas estações, operando novas linhas, como uma barca direta até São Gonçalo. Não foi o que se viu: a única estação construída foi a altamente lucrativa estação de Charitas.

Para piorar a situação, foram postos à disposição da empresa R$ 176 milhões em 2002, através do BNDES. Ou seja, o Estado teve que fornecer crédito para que a nossa “eficiente” concessionária privada prestasse ainda um péssimo serviço.

Mas o superintendente das Barcas S/A, diante da fúria dos passageiros que realizaram um protesto por não conseguirem ir para casa, sugeriu uma mágica solução: que as pessoas procurassem outros meios de transporte nos horários de pico! E não satisfeito com isto, argumentou que o Estado deveria investir mais no transporte. A resposta do governador Sérgio Cabral foi o anúncio de uma injeção de 8 milhões de reais na Barcas S/A, para que a empresa possa normalizar seus serviços.

Podemos indagar: se é o Estado que tem que financiar toda a estrutura do transporte, que tem que arcar com todos os custos, por que dar a concessão a uma empresa privada? Algum tempo atrás, fundamentariam os neoliberais que o serviço prestado seria mais eficiente.

O segundo exemplo veio da concessionária de serviços ferroviários SuperVia. Após a privatização do sistema ferroviário, também em 1998 e também pelo então governo Marcelo Alencar, a SuperVia conseguiu a concessão do serviço de transportes no Rio de Janeiro durante 25 anos, prorrogáveis por mais 25 anos. O contrato inicial previa o investimento, por parte da empresa, de R$ 300 milhões – nunca investidos. Após a constituição de um termo aditivo ao contrato, pelo fato de a empresa ter constatado, após a posse, a necessidade de investimentos que não constavam no contrato original, passou-se ao Estado a responsabilidade pelo fornecimento de peças e materiais do Programa Estadual de Transportes (PET).

A prestação dos serviços é precária, a segurança para os ferroviários, pior. Nesse sentido, a fala do presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias da Central do Brasil, Valmir Índio Lemos, antes da paralisação realizada pelos membros da categoria, foi clara quando expôs que as condições de segurança são precárias para os trabalhadores e passageiros, e que problemas como colisões de trens, má sinalização e insuficiência de freios demonstravam a necessidade de maiores investimentos. Também denunciava que a empresa obrigava os trabalhadores a seguir viagem mesmo com as portas dos trens abertas.

A experiência do acidente em Austin, no Município de Nova Iguaçu, ocorrido em agosto de 2008, no qual 8 pessoas morreram e outras dezenas ficaram feridas, já tinha dado provas da insegurança no transporte. Mas nenhum fato se mostrou tão vergonhoso quanto as agressões aos passageiros por parte dos “agentes de controle” da SuperVia.

O tratamento dispensado aos passageiros foi o exemplo mais cabal do completo desrespeito que a concessionária tem para com a população fluminense. Não bastasse isto, o Sindicato Municipal dos Vigilantes denuncia que a SuperVia tem 300 “agentes de controle” contratados de forma irregular, violando a Lei Federal nº 7.192/83.

Desde o ano de 2001, é realizada a troca de vigilantes por funcionários não-habilitados. O salário pago é de R$ 200, abaixo do piso da categoria. Ou seja, a irregularidade também vem revestida pela precarização do trabalho. O objetivo é claro, aumentar o lucro da empresa. O resultado dessa operação foi explícito: a população paga a conta.

Até 2001, os vigilantes passavam por um processo de formação, que dizia respeito à realização de cursos de normas de segurança, relações humanas e legislação. Hoje, tal processo de formação não mais existe.
Mesmo com todos estes sérios problemas apresentados, a SuperVia lucrou, em 2007, R$ 44 milhões, e estima-se (pois a empresa não divulgou seus resultados) que no ano de 2008 este lucro tenha sido ainda maior.

O controle público das atividades produtivas e das atividades do Estado
Tais exemplos são simbólicos, mas não únicos, para revelar o mito da eficiência do privado sobre o público. A sanha por lucros altos das empresas do setor produtivo tem como eixo a precarização do trabalho e o controle do trabalhador. A referida lógica tem como escopo beneficiar uma pequena parcela de rentistas.

Já com relação às concessionárias, sua busca por grandes lucros, que também só beneficiam seus acionistas, não permite que todas as exigências contidas na licitação vencida sejam cumpridas pelo preço ofertado, o que, conseqüentemente, faz com que a mão de obra seja precarizada e o serviço não seja nem um pouco bem prestado.

Para melhorar os serviços, pedem mais presença do Estado, com dinheiro e infra-estrutura. A pergunta que se faz é: frente à ruína dos mitos neoliberais, que vêm caindo um a um, frente à crise do privado e a maior presença do Estado, por que não reverter o que foi feito nos anos 90 e retirar os intermediários, que estão lucrando com dinheiro público sem apresentar nenhuma eficiência e compromisso públicos? É hora de a esquerda voltar a defender, sem constrangimento, a re-estatização de empresas públicas e de concessões de serviço, e exigir severa regulamentação e fiscalização de inúmeras atividades. Precisamos enfrentar a crise atacando-a pela raiz: denunciando o capitalismo e resgatando o socialismo como nosso horizonte estratégico.

Não se trata de defender fórmulas puramente estatistas, mas que tenham, na sua administração, a participação da sociedade civil organizada, com poder de decisão. Trata-se de empoderar a sociedade e aprofundar a democracia através do controle público e social, através de uma gestão republicana no tratamento dispensado à coisa pública. Enfrentar essa questão é tarefa dos que defendem o Socialismo Democrático.

* Bernardo Cotrim é Secretário de Assuntos Institucionais do PT-RJ e Bruno Moreno é advogado trabalhista e membro do Coletivo da JPT-RJ.

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