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A crise financeira: duração e impacto no Brasil e na AL

As expectativas de crescimento médio do PIB para a America Latina tornaram-se negativas para 2009, embora no Brasil as estimativas do Governo ainda sejam ligeiramente positivas. A resistência da America Latina a essa crise parece ser bastante maior do que na crise da divida externa de 1982-83, quando todos os países estavam fortemente endividados. A maioria dos países da região tem hoje reservas internacionais importantes e os seus governos não se encontram endividados no exterior. A análise é de Maria da Conceição Tavares, em artigo publicado pela Agência Carta Maior.

Maria da Conceição Tavares *

I – As raízes da atual crise

A financeirização da riqueza passou a ser, deste a década de 1980, um padrão sistêmico globalizado em que a valorização e a concorrência no capitalismo operam sobre a dominância da lógica financeira. Esta lógica originou-se nos EUA e transferiu-se para Londres, no Euromercado na década de 70. Regressou à Nova York na década de 80 com a diplomacia do dólar forte e tornou-se a lógica da globalização financeira.

Ao alcançar Tóquio, no final da década de 80, acabou pondo em risco o capitalismo organizado japonês e o seu “produtivismo triunfante”, levando o Japão à maior crise do pós-guerra, na década de 90. Finalmente a lógica da financeirização está sendo posta em tela de juízo na atual crise mundial. A aliança entre o grande capital financeiro globalizado e as políticas frouxas do FED durante à década de 90 levaram a economia americana a uma expansão do consumo e do investimento, com alto grau de endividamento do Estado, das famílias, das empresas e dos bancos, que se manteve muito além das expectativas da maioria dos seus próprios economistas, até às vésperas da crise atual (1).

As preocupações centrais de alguns macro-economistas eram com o déficit
crescente do balanço de transações correntes e com o endividamento externo gigantesco do Estado americano, os quais, segundo eles, terminariam minando o dólar como moeda reserva, forçando a economia americana a um ajuste (monetário, fiscal e de balanço de pagamentos) muito mais grave que o praticado no início da década de 80.

O novo presidente do FED do governo Clinton, Alan Greenspan, um dos
defensores e promotores do novo sistema, tinha muito claro o papel financeiro do dólar na economia mundial globalizada (2). O déficit de transações correntes não o preocupava, já que a absorção externa de recursos por parte da economia americana era funcional à sustentação do crescimento através do comércio internacional das economias mais abertas como algumas da América Latina e, sobretudo, dos países do Leste Asiático. Estes fortemente superavitários com o dólar, tinham de aceitá-lo como moeda reserva.

Greenspan pode ser acusado, porém, de ter feito vista grossa aos efeitos que a desregulamentação bancária radical e a política monetária e de supervisão frouxas, provocaram no funcionamento altamente especulativo das instituições financeiras dentro do próprio mercado americano (3).

A partir da segunda metade da década de 90 sucederam-se uma série de crises cambiais e financeiras em vários países periféricos, que deram lugar a uma fuga de capital para os EUA, onde a valorização dos ativos financeiros confirmava a supremacia indiscutível do mercado de capitais de Nova York. A explosão acionária de Wall Street levou a um ciclo de fusões e aquisições em que os grandes bancos americanos tornaram-se mega-instituições à escala mundial, superando de longe todos os seus antigos concorrentes europeus e japoneses. Não havendo mais segmentação formal das instituições do mercado financeiro, os bancos americanos converteram-se em verdadeiros supermercados financeiros que operavam nos mercados futuros e em novos derivativos de crédito com a criação de instrumentos de securitização que permitiam a alavancagem desvairada do crédito no mercado financeiro interno. Foi assim, com créditos alavancados de curto prazo, que várias companhias americanas financiaram o investimento de longo prazo em áreas estratégicas como em energia e na nova economia da tecnologia de informação e de comunicações.

As primeiras ações a estourar em bolsa foram as das empresas da “nova
economia”, a chamada crise das “.com”, seguida poucos anos depois pela crise do setor elétrico na qual o estrondo maior foi a falência da Enron. Como as ações dos bancos e das grandes empresas tradicionais se recuperavam rapidamente, estimulando o consumo através do “efeito riqueza”, Greenspan limitou-se a criticar a “euforia especulativa” e a reafirmar que o FED não podia controlar as operações financeiras “off the records” e “off shore”. Na verdade a maioria dos grandes movimentos especulativos de então não eram “off shore”, mas nos mercados financeiros internos desregulados, sobretudo em derivativos e “hedge funds”, a maioria dos quais operava “off the records”.

A multiplicação de derivativos especiais de crédito e a criação de fundos de
securitização (hedge funds), sem base de sustentação e sem supervisão bancária deram lugar a um vasto “sistema financeiro sombra”. As instituições deste “sistema” operam nos mercados monetários como se bancos fossem (tomando a curto e emprestando a longo prazo) só que a um nível de alavancagem muito superior, sem possuírem seguro para os seus depositantes (investidores) nem, obviamente, qualquer emprestador de última instância que lhes garantisse liquidez em momentos de crise. Foi este sistema que entrou em colapso a partir da crise do “sub-prime”.

Apesar da crise do sub-prime, um derivativo especial do mercado de hipotecas, ter ocorrido já na gestão de Ben Bernanke, ela foi apenas o detonador de uma crise financeira mais geral que se vinha gestando lentamente, através de uma excessiva expansão da liquidez, do endividamento e de sucessivas bolhas de preços de ativos, processados pela desregulação e complexidade do novo sistema financeiro privado, montado no governo Clinton e continuado no governo Bush.

A elevada oferta de financiamento, a taxas de juros baixas, não impulsionaram apenas o endividamento geral do setor privado (empresas, bancos e famílias). As condições favoráveis e descontroladas de oferta de crédito levaram também vários Estados da União a financiarem seus déficits fiscais crescentes no mercado privado interno. Só quando a crise financeira geral eclodiu violentamente em setembro de 2008 com a quebra da Lehman Brothers, foi possível perceber a profundidade da crise fiscal de importantes estados americanos que estão a beira da insolvência (a Califórnia é apenas o caso mais notório).

II – As medidas do Governo Bush e a generalização da Crise Financeira.

A crise financeira começou a ficar visível, com o estouro do mercado de
derivativos especiais de crédito hipotecário, os chamados sub-prime, em agosto de 2007, quando os fundos que consolidavam posições de alto risco em novos títulos no mercado secundário passaram a ser rejeitados no mercado monetário e atingiram violentamente as instituições do mercado hipotecário, em particular a Fannie Mae e Freddie Mac.

O FED tomou providências rápidas no que se refere à taxa básica de juros (que caiu de 5% para 0,5% em poucos meses) e criou programas gigantescos de liquidez para tentar evitar a generalização da crise. Entre eles podem-se destacar: U$ 600 bilhões para a compra de títulos visando apoiar os investidores dos “fundos do mercado monetário”; U$500 bilhões para a compra de títulos lastreados em hipotecas; U$100 bilhões em dívidas da Fannie Mae e da Fred Mac.

O Congresso aprovou, por iniciativa democrata, a Lei de Estimulo Econômico de Fevereiro de 2008 cujas principais medidas foram de renúncia fiscal. De abril, quando começou a devolução de impostos, até dezembro de 2008, foram devolvidos milhões de cheques no valor total de U$96 bilhões. Foi também proposta renúncia fiscal para estimular os investimentos e a ampliação no valor das hipotecas com cobertura financeira semi-oficial. Logo em seguida, em julho de 2008, foi promulgada a Lei de Habitação e da Recuperação da Economia que prometida recapitalizar as instituições para-estatais (sobretudo as duas grandes Fannie Mae e Freddie Mac) que atendiam os financiamentos de habitação para as famílias de baixa e média renda. A Lei criou um órgão para regulá-las (FHFA) e autorizou o Tesouro a comprar seus ativos e assumir seus passivos.

Depois de setembro de 2008, quando ocorreu a quebra do Lehman Brothers, várias instituições financeiras internacionais ficaram à beira da falência e a crise financeira tornou-se global, produzindo um violento aperto de crédito (credit crunch) no mercado interbancário de todos os países relevantes, mesmo os que tinham um sistema bancário sólido. As quedas nas bolsas mundiais e nos preços dos imóveis liquidaram cerca de U$30 trilhões de riqueza financeira até o final do último trimestre de 2008.

Em outubro de 2008, o governo americano encaminhou ao Congresso, em
regime de urgência, o TARP (Programa de Alívio de Passivos Problemáticos) cuja concepção original era justamente comprar os “ativos tóxicos” dos bancos para melhorar sua situação estrutural. Como a resistência foi enorme a essa medida – uma vez que o governo não tem instrumentos de intervenção legal nos bancos – o enfoque mudou substancialmente. Dos U$700 bilhões do TARP a metade ficou carimbada para injetar diretamente capital nos bancos através do programa de Compra de Capital (CPP), a outra metade não foi autorizada. Na verdade foi o FED que teve de encarregar-se de parte da tarefa de reciclar os “ativos tóxicos” através de programas de liquidez e de empréstimos de última instância aos bancos mais atingidos.

A decisão do governo de não socorrer o Lehman Brothers e a quebra da AIG, a maior seguradora dentro e fora do país, levou a economia americana à paralisia em Novembro. O governo americano teve de criar o subprograma para “entidades sistemicamente relevantes” para conceder um empréstimo de U$85 bilhões à AIG e injetar U$40 Bilhões de capital ainda em 2008 (em março de 2009 o Tesouro teve de intervir novamente injetando mais U$30 bilhões para impedir a falência da seguradora). Teve de auxiliar também o Citigroup e o Bank of America que entraram em dificuldades tremendas e socorrer as empresas automobilísticas.

A extensão e profundidade da crise financeira no núcleo central do sistema
capitalista estendeu-se a toda a economia mundial a partir do último trimestre de 2008. Os grandes bancos europeus que também se tinham globalizado e alavancado de forma análoga aos americanos, sofreram de imediato os efeitos do aperto de crédito no mercado interbancário e seus governos tiveram de socorrê-los em algum casos mediante estatização explícita. Os mecanismos de retração do crédito e a recessão nos países centrais contaminaram o comércio internacional tanto em preços como em quantidades.

O comércio de matérias primas sofreu um baque profundo com a queda dos
preços de commodities que vinham de um ciclo especulativo fortíssimo nos mercados futuros globais. Os preços do petróleo foram os que sofreram a queda mais violenta atingindo com força países como a Rússia e todos os países emergentes dependentes da exportação de petróleo e gás. Verificou-se também uma queda no comércio de manufaturas que atingiu fortemente os países do Leste Asiático já com grande capacidade ociosa e mais dependentes do comércio para os EUA e para a Europa. A China teve uma forte desaceleração do crescimento, que rebateu através da queda das importações, nos tigres asiáticos e em particular no Japão. Este país, recém saído de uma depressão, teve a sua economia violentamente atingida pela crise global, entrando em recessão aberta numa velocidade superior à dos EUA e da Europa.

O crédito bancário internacional aos países periféricos, mais frágeis, colapsou, levando vários deles, sobretudo os do Leste Europeu e alguns da América Latina à uma crise de pagamentos e a pedir socorro ao FMI. O crédito dos bancos para o conjunto dos países emergentes segundo estimativas do Institute of International Finance caiu de U$ 410 bilhões em 2007 para U$ 106 bilhões em 2008 e deve ser fortemente negativo em 2009.

As filiais mais lucrativas dos bancos nos países emergentes remeteram lucros aceleradamente para suas matrizes para ajudá-las na crise. Isso ocorreu tanto na Ásia quanto na América Latina, região onde até agora não se registraram crises bancárias e é forte a presença de filiais européias e americanas lucrativas. Da participação dos capitais internacionais a que se manteve melhor, embora com queda acentuada, foi a participação do Investimento Direto Estrangeiro nas filiais produtivas dos países emergente, sobretudo aqueles cujo mercado interno apresentam melhores perspectivas, como a China, a Índia e o Brasil.

III – As medidas anunciadas pelo novo governo democrata dos EUA

O novo Presidente Barack Obama, assumiu o governo com a economia
americana numa situação crítica. Do ponto de vista estrutural pode dizer-se que: o seusistema financeiro está falido; os três entes federativos enfrentam uma crise fiscal sem precedentes; parte de sua infraestrutura encontra-se sucateada e a outra está obsoleta (sobretudo energia e telecomunicações); e, finalmente, o seu sistema de seguro de saúde não dá cobertura suficiente e adequada à população. Do ponto de vista “conjuntural” o desemprego é elevado e crescente e a recessão é aberta e tende a aprofundar-se.

Face a este diagnóstico, muito mais grave do que o imaginado durante a
campanha, a equipe econômica propôs um combate à crise em todas as frentes: financeira, fiscal, investimento público em infraestrutura e políticas sociais ativas. A Lei de Recuperação e de Reinvestimento Americanos (ARRA) transitou no Congresso em tempo recorde, com o apoio de três senadores republicanos, e foi assinada pelo Presidente em 17 de fevereiro de 2009.

O pacote fiscal do governo Obama previu inicialmente gastos e renúncias fiscais da ordem de U$787 bilhões, muito superiores aos do pacote do governo Bush. Os principais componentes da Lei ARRA são os seguintes: U$288 bilhões em renúncia fiscal, U$144 bilhões de transferências para estados e municípios, U$111 bilhões para infraestrutura e ciência, U$81 bilhões para proteção aos segmentos sociais mais vulneráveis, U$59 bilhões para a Saúde, U$53 bilhões para a educação e treinamento de mão de obra e apenas U$43 bilhões para energia (que era uma das metas estratégicas da campanha).

O item mais importante é o da Renúncia Fiscal que, ao contrário do governo
Bush, tem restrições para os declarantes de faixas de renda mais elevadas. Assim os U$237 bilhões de renúncia fiscal para pessoas físicas beneficiam as pessoas de classe média, com crédito tributário aos contribuintes em 2009 e 2010, aumento do limite de isenção de imposto de renda, aumento do desconto por número de crianças e despesas escolares. Tratamento favorecido e também concedido para quem comprar o primeiro automóvel, aos que se utilizaram do seguro desemprego e às famílias de baixa renda com três filhos ou mais. Várias deduções são concedidas para estimular a eficiência energética das residências e para a compra de automóvel, para faixas de renda abaixo de U$250 mil. Os restantes U$51 bilhões são dedicados a renúncias fiscais para empresas, que vão de incentivos à produção de energia renovável, ao desconto de perdas correntes para compensar os lucros tributados nos últimos cinco anos, passando por beneficiar empresas contratadas pelo governo até anular as medidas do tesouro envolvendo aquisição, fusão de empresas financeiras que estejam tendo prejuízo (para entrar em efeito em 2012 por um horizonte de 10 anos).

Dos Programas Sociais, o mais importante é o da Saúde U$147,7 bilhões com uma multiplicidade de medidas. As maiores são as que cobrem o Medicaid (o programa para a população de baixa renda) os seguros de saúde dos desempregados, pesquisa e aperfeiçoamento tecnológico e construção do Instituto Nacional de Saúde. Seguem-se os setores de Educação (incluindo transferências) com cerca de U$91 bilhões e o de proteção social aos trabalhadores de baixa renda com U$82,5 bilhões. A ênfase do governo Obama nos desprotegidos cumpre as promessas de campanha do candidato e reverte completamente a visão republicana.

Como terceira prioridade aparecem os gastos em Infraestrutura com cerca de U$81 bilhões para Transportes e U$49,7 bilhões para Energia. Apesar destas prioridades básicas que elevam o déficit fiscal da União de uma estimativa de aumento de cerca de U$1 trilhão em 2008 para cerca de U$1,7 trilhão em 2009, tendendo a aumentar em 2010, o governo americano continua tratando do núcleo central da crise – o setor financeiro – e anunciou um Plano de Estabilidade Financeira (FSP) que prevê a criação de três instrumentos novos, com recursos gigantesco e novas funções.

O FSP consiste basicamente na criação de:

1) um fundo fiduciário (Financial Stability Trent) através do qual o governo
pretende reforçar o capital dos bancos; com recursos adicionais ao U$350 bilhões do programa aprovado em 2008. Com estes recursos o governo está conduzindo um “Teste de Stress” nos vinte maiores bancos para medir a capacidade de resistência aos vários cenários da crise e o Tesouro aumentará a sua participação nos que estiverem mais vulneráveis (o programa está em curso, mas os resultados ainda não eram conhecidos em abril de 2009).

2) A criação de um fundo de participação público-privado no qual o banco
devolverá os seus ativos podres (tóxicos). O problema deste Fundo é de como avaliar o valor “contábil” destes ativos que não tem preço de mercado. O governo espera atrair investidores privados para este Fundo, deixando que eles façam um leilão entre si do valor dos títulos “tóxicos” adquiridos, e entrando o Tesouro com uma participação acionária minoritária. Com isso esperam que o fundo atinja um patrimônio de U$500 bilhões a U$ 1 trilhão. Como era de se esperar este “Fundão” deu lugar a críticas severas, tanto no Congresso como na opinião pública, por ser considerado um movimento de alto risco e pouca transparência.

3) Finalmente deverá ser criado uma linha (facility) para comprar divida
securitizada nova, boa, que permita aos bancos e outras instituições financeiras recompor sua liquidez e estabilizar o crédito emprestando para novos clientes.

Como o Plano de Estabilização Financeira não contempla o setor mais atingido pela crise – o setor imobiliário – o governo desenhou um pacote para apoiá-lo. O Plano de Apoio aos Mutuários e de Estabilização (HASP) prevê três linhas de ação:

a) Flexibilizar as regras para permitir o financiamento de contratos imobiliários, aproveitando as baixas taxas de juros em vigor. Com isso pretende beneficiar de quatro a cinco milhões de mutuários.

b) Inclui incentivos aos credores para aliviar a situação de três a quatro milhões de devedores em situação de inadimplência, evitando a retomada das moradias pelas financiadoras.

c) Amplia o papel das instituições paraestatais de fomento imobiliário (as Fannie Mae e Fred Mac) injetando mais U$100 bilhões em cada uma e permitindo-lhes ampliar suas carteiras hipotecárias.

Uma avaliação preliminar da “opinião pública” revela-se contrária às medidas financeiras que contemplam apenas os interesses de “Wall Street” e acham insuficientes os programas que beneficiam o “main street”, frente ao tamanho da crise que afeta um número alto e crescente de desempregados.

Dado que as autoridades monetárias não têm efetivo controle dos bancos, nem instrumentos jurídicos de intervenção (que ainda está em estudos no Congresso) entende-se a irritação de grande parte da opinião pública. Por outro lado destacados economistas (favoráveis aos democratas) consideram que o Programa de Resgate Financeiro sem instrumentos de regulação pode considerar-se apenas a versão ampliada e igualmente ineficiente dos programas do governo republicano. Entre eles conta-se economistas de renome como Paul Krugman, Joseph Stiglitz e outros. Por outro lado vários analistas e jornalistas especializados da imprensa inglesa como Martin Wolf continuam acreditando que o desequilíbrio fundamental entre a China e os EUA está na raiz da crise financeira americana e que enquanto ele não for atacado a crise não estará resolvida.

IV – O impacto da crise sobre a América Latina e em particular sobre o Brasil.

Começamos com uma citação síntese de José Juan Ruiz, economista da Divisão América do Banco Santander:

“Graduados en infinidad de crisis, los países latinoamericanos cuentan hoy con una banca saneada y una política económica fortalecida. El mayor obstáculo es el poco margen que ofrece la política fiscal en la región. El mayor riesgo, un fuerte ajuste en los tipos de cambio (4).”

Um ano depois de instalada a crise financeira das hipotecas sub-prime nos EUA, no verão de 2007, o continente latino-americano continuava crescendo 4% em média e o Brasil 5,8% nos três primeiros trimestres de 2008, enquanto se assistia a problemas crescentes de liquidez e queda de crescimento nos países do G7. A maior dúvida dos principais bancos centrais e do FMI era a respeito das crescentes tensões inflacionárias com a forte elevação nos preços do petróleo e principalmente nos alimentos. A resposta dos principais bancos centrais – Brasil, México, Chile, Colômbia e Peru – foi endurecer a política monetária, subindo a taxa de juros sob fortes aplausos dos mercados. O Brasil e o Peru ganharam então a outorga do grau de investimento concedido pelas “rating companies” globais.

Entre dezembro de 2007 e junho de 2008, a taxa de câmbio média apreciou-se, os mercados de valores entraram em ebulição e o valor das empresas cotizadas em bolsa aumentaram o equivalente a U$247 bilhões, alcançado U$2,4 bilhões, cerca de 85% do PIB regional. Estes acontecimentos, em tempos de crise financeira global, eram fatos inéditos na região que pareciam confirmar a tese do “desacoplamento” dos países emergentes em geral e da América Latina, em particular.

A quebra da Lehman Brothers, em Setembro de 2008, mudou radicalmente as expectativas dos principais agentes do mercado internacional sobre a profundidade da crise. O contágio foi imediato a todos os mercados, sobretudo os de crédito e de capitais, que atingiu mais fortemente os países emergentes mais endividados e, de uma modo geral, afetou violentamente o comércio exterior de todos os exportadores de commodities que é o caso geral da América Latina, grande exportador de matérias primas cujos preços despencaram em 50%.

O choque financeiro foi de tal força que o indicador de risco do EMBI latino-americano aumentou 438 pontos básicos, voltando a níveis absolutos que não se viam desde os anos da crise argentina. Em 12 de dezembro o Equador anunciou o repudio da sua divida externa. A Argentina e a Venezuela estão com riscos altíssimos, equivalentes a níveis de default, e o México para evitar uma crise de pagamentos solicitou U$40 bilhões ao FMI em começo de abril de 2009. O mesmo acaba de ocorrer com a Colômbia. Os mercados de capitais continuam fechados. A única exceção relevante do meu conhecimento foi o credito internacional obtido pela Petrobras que continua uma empresa de risco soberano.

As expectativas de crescimento médio do PIB para a America Latina tornaram-se negativas para 2009, embora no Brasil as estimativas do Governo ainda sejam ligeiramente positivas. A resistência da America Latina a esta crise parece ser bastante maior do que na crise da divida externa de 1982-83 quando todos os países estavam fortemente endividados e não resistiram ao fechamento do crédito internacional que ocorreu a partir dos choques simultâneos de petróleo e de juros em final de 1979. A maioria dos países da região tem hoje reservas internacionais importantes e os seus governos não se encontram endividados no exterior.

No caso do Brasil, as reservas de quase U$200 bilhões tem permitido inclusive financiar as exportações e rolar parte dadivida externa do setor privado nacional. Quase todos os países tendem também a adotar políticas anticíclicas praticadas nos demais países, desenvolvidos e emergentes, basicamente as políticas monetárias, creditícias e fiscais internas, desta vez recomendado pelo próprio FMI.

O Brasil está entre os países que se encontra em melhor situação na America Latina, dadas as elevadas taxas de juros que vinha praticando e a maior carga tributária de toda região, o que lhe permite maiores incentivos pelos meios tradicionais. O superávit primário de 3,8% acaba de ser reduzido, em particular no que toca ao investimento em infraestrutura, sobretudo em energia (elétrica e petróleo). A dívida interna é a mais baixa das ultimas décadas e deve continuar baixa se as taxas de juros continuarem caindo acentuadamente durante o ano, dadas as expectativas favoráveis de inflação e câmbio.

Essa deve ser também a opinião do mercado financeiro internacional, pois desde março voltaram a entrar capitais de portfólio e aumentou o saldo liquido na conta de capitais do balanço de pagamento. O Brasil possui um sistema financeiro hígido, com altos lucros e que representa cerca de 2/3 dos negócios de toda a região. Além de fortes bancos privados nacionais e estrangeiros, conta com três bancos públicos (um comercial e dois de fomento). Os três maiores bancos brasileiros (dois privados e um publico) encontram-se hoje entre os vinte maiores do mundo e estão em condições de reciclar as dividas dos seus maiores clientes. Espera-se também que os bancos públicos possam expandir o credito às pequenas e médias empresas e que a queda dos spreads bancários e a ajuda aos bancos menores volte a restabelecer o crédito para o mercado interno.

Finalmente o Brasil é auto-suficiente em energia e alimentos e possui programas sociais compensatórios para cerca de dez milhões de famílias. Tem o mercado interno mais forte da America latina e seu coeficiente de dependência do comercio exterior encontra-se entre os menores do mundo. Apesar destas condições favoráveis, o Brasil, a igual que os demais países da América Latina, não ficou imune à crise que se manifestou por uma forte retração da produção industrial no último trimestre de 2008, em particular nos setores exportadores e que se manteve até o final do primeiro trimestre de 2009. A arrecadação fiscal caiu também fortemente atingindo União, Estados e Municípios. Os primeiros indícios de recuperação econômica começaram apenas em abril deste ano, mas é difícil estimar a taxa de crescimento para 2009 e 2010.

V – A Gravidade e a Duração da Crise Mundial

A Crise global que se originou no sistema financeiro norte-americano continua agravando-se e é impossível que se resolva enquanto o governo dos EUA não tiver os instrumentos de poder para fazer frente à “oligarquia de Wall Street”. A expressão “oligarquia financeira” não é mais apenas um slogan de esquerda e já foi utilizada recentemente pelo professor do MIT Simon Johnson, ex-economista chefe do FMI para expressar a conivência entre instituições poderosas que se recusam a admitir perdas e um governo cúmplice sob domínio de “cambistas”. O Prof. Johnson argumenta que o peso do setor financeiro, ao não aceitar demonstrar a sua inadimplência, está evitando a solução da crise.

A visão de que não existe nenhuma instituição suficientemente grande e
complexa que não possa ir à falência, é uma versão neoliberal extrema de que todas as soluções devem ser buscadas pelo “livre” funcionamento do mercado. A visão oposta é da estatização bancária para salvar os bancos da própria crise. A solução adotada pelo governo Bush, de deixar o Lehman Brotters ir à falência, provocou porém uma reversão violenta de “expectativas” no mercado, ameaçando levar as demais grandes instituições financeiras à falência. A situação de pânico reverteu rapidamente a política neoliberal, passando o FED a despejar centenas de bilhões de dólares nos caixas dos bancos. Como o aumento brutal da liquidez primária não se revelou a solução para um buraco que parece sem fundo, passou-se a propor a compra de “ativos tóxicos”, além de realizar sucessivas capitalizações ad hoc das principais instituições financeiras americanas.

O sentimento de que o Estado americano está servindo à elite de Wall Street, tem levado a “main street”, violentamente atingido pelo desemprego, a protestar com veemência contra a política financeira do governo, que também tem sido francamente criticado à esquerda e à direita pelos formadores de opinião. A situação, entretanto continua se agravando mesmo depois de empossado o novo governo democrata.

Enquanto uma proposta consensual de intervenção legal do governo para
reestruturar e regular o sistema financeiro não for alcançada no Congresso, a situação americana se aproxima cada vez mais da “doença japonesa”. O Japão levou cerca de dez anos para sair da crise bancária do começo da década de 90, pressionado entre a possibilidade de falência dos grandes bancos e o repúdio popular ao resgate que, lá também, montou a trilhões de dólares.

Enquanto a situação financeira dos EUA não se resolve as perspectivas dos
demais países desenvolvidos do G7 vão-se deteriorando. As projeções da OECD de fim de março para o ano de 2009 contemplam o aumento da recessão aberta, com uma queda de cerda de 4% para as economias americana e da União Européia e de 6,6% para a economia japonesa. A Organização Mundial do Comércio por sua vez prevê uma redução do volume do comércio internacional de 9% para 2009 (independente de que ocorra com a deflação de preços).

A situação fiscal também é preocupante nos EUA e na União Européia. O déficit previsto pelo FMI para 2009 seria de 12% e 10% dos respectivos PIBs. No caso americano com os programas adicionais de incentivo fiscais e financeiros do governo Obama o déficit pode alcançar cerca de 17% na execução fiscal de 2009. Apesar destes déficits monumentais, o FMI continua recomendando programas fiscais anticíclicos que exigiriam uma expansão fiscal global programada de U$5 trilhões para obter um impacto positivo estimado em 4% do PIB mundial, até o final de 2010.

A ânsia de obter resultados convergentes e positivos até o fim de 2010 deu à reunião de Londres do G20 um caráter histórico de boa vontade política das lideranças fundamentais do mundo desenvolvido e dos países emergentes. Evidentemente o caráter simbólico desta aliança não é desprezível para melhorar as expectativas dos principais agentes político-econômicos da economia mundial. Os acordos, em princípio sobre políticas anticíclicas e algumas poucas promessas de medidas de regulação com vistas à estabilização dos sistemas financeiros globalizados (regulação dos fundos hedge e controle dos paraísos fiscais com o fim do sigilo bancário) encontram, no entanto, dificuldades práticas não triviais. No que diz respeito às políticas anticíclicas, o problema está na assimetria, tanto das situações fiscais como da capacidade de financiamento externo aos devedores por parte dos grandes países credores.

Paradoxalmente a situação continua mais favorável nas relações devedor-credor dos EUA e da China, apesar de que a assimetria entre a situação dos dois países é considerada por muitos analistas como o cerne do desequilíbrio da economia mundial, quando não a raiz última da atual crise (5).

Não quero entrar a fundo nesta discussão, mas convém lembrar rapidamente o caráter contraditório da relação EUA-China (6). Até a recente crise ela era considerada de mútuo benefício direto por ambos os países e por quase todos os que se beneficiavam indiretamente do seu crescimento mais rápido a partir da década de 90 (em particular os continentes americano e asiático).

O “matrimônio” de mútua conveniência parece ter acabado quando o comércio acoplado ao forte investimento direto das filiais americanas desacelerou bruscamente e não existe outro credor no mundo com reservas suficientes para financiar a atual situação deficitária do governo dos EUA. A alternativa do Tesouro americano seria financiar o gigantesco déficit fiscal através das emissões do FED sem fundamento em reservas internacionais disponíveis. Esta situação, que levaria certamente a uma forte depreciação do dólar, não parece ser desejada por nenhum dos países detentores de reservas em dólar.

A decisão do G20 de triplicar os recursos do FMI de U$250 bilhões para U$750 bilhões com contribuições dos países dispostos a fazê-lo e a expansão das emissões de Direitos Especiais de Saque, não resolve evidentemente o dilema do financiamento externo entre os EUA e a China. O FMI só pode socorrer alguns países periféricos que enfrentam crises de pagamentos de suas dívidas (como os países da Europa Oriental, da Colômbia, do México e do Caribe).

Assim não foi por acaso que às vésperas da reunião do G20, o presidente do Banco Central da China declarou seu descontentamento com o privilégio de “senhoriagem” dos EUA de ter o dólar simultaneamente como a mais importante moeda reserva da economia mundial e ao mesmo tempo de “livre emissão” do seu Banco Central. Obviamente sua proposta de substituí-lo por direitos especiais de saque do FMI não tem qualquer viabilidade, tanto pela oposição dos EUA quanto pelo montante irrisório de recursos disponíveis em DES frente ao volume em dólares das reservas
internacionais. Essa contradição ficou manifesta na reunião do G20 quando a própria China se dispôs a contribuir para o FMI com uma quantia mínima em proporção às suas reservas em dólar.

Por sua vez a declaração de Obama de que o mundo vai ter que se acostumar a viver sem o “excesso de consumo” é igualmente paradoxal. Salvo se, além de ironizar a China que teria também de se “ajustar”, ele estivesse ignorando o impacto, não apenas de curto prazo, mas também de longo, que uma queda acentuada do consumo americano teria sobre a sua própria economia. Enfim ameaças ou ironias à parte é indiscutível que essa crise pode se converter em depressão duradoura quanto mais forte for o tipo e a duração do ajuste das duas economias mais importantes do planeta.

Quando ainda se falava em “desacoplagem” dos países emergentes da crise, o comportamento de países como a China e o impacto de suas relações internacionais no Leste Asiático era uma das grandes esperanças. A desaceleração industrial e do comércio exterior da China atingiu, porém fortemente os países do Leste da Ásia, de modo que a recessão aberta atingiu até agora todos os países da economia mundial com exceção da China e da Índia.

A discussão mais recente entre os macroeconomistas anglo-saxões centra-se em estimar a profundidade desta crise quando comparada com a de 1930. Paul Krugman usa um gráfico da evolução da produção industrial dos EUA para demonstrar que a atual recessão é bem menor que a de 1929 (7). Eichengreen e O’Rourke apresentam resultados diferentes em um trabalho ainda progresso (8). Segundo eles, como as quedas na produção são muito maiores na Europa, Japão, outros países asiáticos e na América Latina, se fizermos a comparação dos índices de produção industrial mundial nos dois casos, as conclusões são muito diferentes do que tomando apenas os EUA. Nos últimos nove meses da atual crise a recessão seria tão aguda quanto nos primeiros nove meses depois da Crise de 29 e a queda no valor global das ações seria ainda maior.

Como a liquidez atual é imensa, com taxas de juros reais praticamente nulas e políticas anticíclicas generalizadas (ao contrário do ocorrido na crise de 30), as possíveis implicações de uma análise deste tipo seriam extremamente pessimistas. O que mais me preocupa, porém não é este tipo de exercício, mas o fato de que nem a crise bancária americana, nem a crise de crédito global se encontram perto de solução e que o efeito de contágio da crise de 30 era menor que o da atual crise, dada a situação de globalização financeira e as profundas assimetrias na economia mundial.

É esse tipo de comparação estrutural, que piora o meu pessimismo sobre a atual crise. Em contrapartida estou relativamente otimista por não estar à vista “como solução” uma nova guerra mundial. Em relação ao Brasil não posso deixar de estar também moderadamente otimista, tendo em vista o seu baixo grau de inserção na globalização financeira, a sua pequena dívida de origem fiscal e a proporção tão alta entre o mercado interno e o mercado de comércio exterior. Tudo isso dá ao país um maior grau de autonomia e torna os seus governantes altamente responsáveis pelo destino de nossa recuperação.

* Economista, Professora Emérita da UFRJ, Professora Associada da Unicamp e Ex-Deputada Federal pelo PT-RJ. Artigo publicado pela Agência Carta Maior (www.cartamaior.com.br) em 05 de junho de 2009.

(1) Na verdade o período de crescimento e a duração do dólar flutuante como reitor do sistema financeiro global ultrapassou de muito o período “virtuoso” do regime de taxas fixas de Bretton Woods que
terminou em 1973. A tal ponto foi achado funcional o “dólar flexível” e a globalização financeira, que o novo regime foi apelidado por alguns de “II Bretton Woods”.

(2) Ver M. C. Tavares e L. E. Melin, “A Reafirmação da Hegemonia Americana”, in Poder e Dinheiro – uma economia política da globalização, Vozes, Petrópolis, 1997.

(3) Desta parte, A. Greenspan, fez recentemente autocrítica, respondendo ao coro de vozes acusatórias.

(4) Ver artigo “Latinoamerica 2009: el privilegio de ser como todos”, in Política Exterior, nº 128. Marzo/Abril 2009.

(5) Ver Stephen Roach, “Como evitar a depressão enquanto cai o consumo”, Valor Econômico, 16/04/2009.

(6) Ver M. C. Tavares e L. G. Belluzzo, A mundialização do capital e a expansão do poder americano. in: Fiori, J. L. (org) O poder americano. Petrópolis: Vozes, 2004.

(7) Ver Krugman, P., “The Great Recession versus The great Depression” (20/03/2009) –
http://krugman.blogs.nytimes.com/2009/03/20/the-great-recession-versus-the-great-depression/

(8) Ver “A Tale of Two Depressions”, com um resumo em www.voxeu.org

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