O notável legado da Revolução Francesa foi a aspiração pela igualdade, que transformou os súditos (com deveres) em cidadãos (com direitos). O desafio contemporâneo é metamorfosear a igualdade política alcançada em uma paridade social, econômica e cultural. Hoje, tais dimensões exprimem as desigualdades fáticas da sociedade, ao lado das igualdades formais conquistadas no século XVIII.
O sonho da extrema direita é tatuar as discriminações no próprio corpo da legislação, como fizeram os nazistas. A direita moderada contenta-se com preservar a equidade perante as leis do Estado, ao argumentar que a passagem do legal para o real esvaziaria o conteúdo forense. O sofisma ampara a intenção de manter o status quo capitalista. Graças à descoberta dos princípios liberais de arranjos que permitem o estatuto jurídico da liberdade dos indivíduos, com a democracia representativa e o constitucionalismo, retoma-se a narrativa hegeliana sobre o fim da história, encerrando por decreto o ciclo de mudanças. Não obstante, a esquerda segue na luta contra a opressão e a exploração que, pela dinâmica de funcionamento do sistema, vinca uma enorme distância entre as classes sociais.
Vale observar que a tendência mundial, apontada por Thomas Piketty em Uma breve história da desigualdade, “era de uma expansão na direção de mais igualdade de status, propriedade, renda, gênero e raça na maioria das regiões do planeta”. A curva ascendente foi interrompida na década de 1980, quando se consolidou a hegemonia do neoliberalismo que, junto, trouxe a perversa agenda de destruição dos quatro cavaleiros do apocalipse: a peste, a guerra, a fome e a rebelião. Não é pouco.
Políticas fiscais e sociais redistributivas reduzem, mas não barram o processo de desigualitarização, à medida que o retorno de capital supera o aumento dos salários e mudanças tecnológicas alijam dos empregos os trabalhadores semiqualificados. Veja-se o GPS, acabou com os taxistas conhecedores da cidade em troca dos motoristas de Uber, que seguem o Waze. Sem mencionar a concentração do monopólio das corporações multinacionais, em especial no segmento das big techs. No plano doméstico, a máquina de excluir mão de obra e fabricar inempregáveis recai no setor de exportação e bancos – aponta o economista da Unicamp, Fernando Nogueira da Costa, no artigo “Desigualdade e ascensão do populismo de direita” (Fórum 21, 04/04/2023). Há nuvens carregadas no horizonte.
São vários os gatilhos que acionam as iniquidades sociais, econômicas e culturais. Nenhum merece reparo por parte da vertente-líder que aposta, ou no evolucionismo do mercado com regras de impessoalidade, como se todas e todos tivessem os mesmos recursos para suprir as necessidades não satisfeitas; ou no libertarismo que, além de defender os direitos individuais, em particular o direito de propriedade, incrimina a justiça social em nome da integridade moral da liberdade.
A sentença para condenar a solidariedade institucional, e torná-la um predicado negativo, resguarda de críticas os “donos do poder”. Parafraseando George Orwell, em A revolução dos bichos, “todos os animais são iguais, mas alguns são (antes, se creem) mais iguais que outros”. Mas que atributos de moralidade respaldariam a atribuição de direitos com ares tão aristocráticos, em uma República?
A promessa do Estado de Bem-Estar Social seria ilegítima. Violaria direitos “naturais”, assenta-se na redistribuição da riqueza dos que têm os recursos redistribuídos para atender a terceiros. O pano de fundo é a assertiva de Margaret Thatcher, que retira do aparelho estatal o compromisso de combater a pobreza (um problema unicamente dos pobres): “A sociedade não existe, só existem os indivíduos e as famílias”. Compreende-se a indiferença do desgoverno derrotado de Jair Bolsonaro / Paulo Guedes / Silas Malafaia com a questão social. Trata-se de justificar o hiperindividualismo.
O último quadriênio em Brasília atesta o eclipse de empatia no ideário que mescla o neofascismo (na política), o neoliberalismo (na economia) e o neoconservadorismo (nos costumes), os elementos de pressão autoritária pelo Estado de exceção. Na Europa, o atraso prenuncia uma “Internacional da Ultradireita”. A ideia nasceu à gauche com a criação da Associação Internacional dos Trabalhadores em 1864, em Londres. A extrême droite veste o figurino para ressignificar o tema da organização.
Os partidos xenófobos e anti-islâmicos se aproximam e estreitam os laços: Alemanha (Alternativa), Bélgica (Interesse Flamengo), Espanha (Vox), França (Reagrupamento Nacional), Holanda (Partido da Liberdade), Hungria (União Cívica Húngara), Itália (Irmãos da Itália), Polônia (Lei e Justiça) e Portugal (Chega), avalia o pesquisador João Gabriel de Lima, do Observatório da Qualidade da Democracia da Universidade de Lisboa (Piauí, abril 2023). Para o politólogo italiano, Riccardo Marchi, autor de A nova direita anti-sistema, a reação acordou. Com a gramática do ódio, dispara contra o imaginário consenso “socialista” e “globalista” de “Bruxelas”, a sede da União Europeia.
O contraste evidente com as diretrizes condensadas na sensibilidade social, em voga no governo do presidente Lula da Silva, ocorre porque a nova governança repele os dispositivos que se perpetuam em função dos interesses de meia dúzia. Aliás, com uma representação excessiva no Congresso por influência nos resultados eleitorais do poderio econômico, que formata a democracia de encomenda aos ricos. Mulheres, negros, jovens, grupos lgbtqia+ e ambientalistas estão sub-representados. “100 dias: governo ativo e presidente empático, as duas diferenças”, comemorou uma atenta jornalista.
“O direito do indivíduo não é o de ser deixado livre de toda interferência, mas o direito de levar uma existência dotada de sentido e de dispor dos meios necessários para tal, em termos tanto de privilégios jurídicos quanto de recursos materiais. A tese geral é de que cada um tem o direito aos bens materiais, cuja posse é necessária para se ter a chance de uma vida decente e satisfatória”. Assim, o professor da Universidade de Sorbonne, Jean-Fabien Spitz, no texto “Conservadorismo e progressismo”, publicado n’O esquecimento da política, organizado por Adauto Novaes, traduz o aforismo socialista: “De cada qual segundo sua capacidade; a cada um segundo suas necessidades”. A taxação das grandes fortunas é um incentivo à comunhão com 99% da humanidade, em vez de uma punição à burguesia, movida pelo ressentimento. Não priva os abastados dos recursos e dos espaços para continuarem a usufruir de uma vida confortável. Reforça a sociabilidade pública.
Sob o espectro da desnutrição que vitimiza mais de 50 milhões de conterrâneos, a simbólica síntese pelo atual titular da presidência interpela o direito a três refeições diárias, casa para morar, escola nas proximidades, equipamentos urbanos, trabalho, lazer – com o prumo dos comuns. A garantia de universalização do mínimo indispensável à dignidade humana serve de guia governamental. Em uma sociedade que preze valores de fraternidade, indivíduos trabalharão em conformidade com suas aptidões e habilidades, e receberão de acordo com as suas necessidades fundamentais. Oxalá.
A dor deriva das adversidades, sob o retrocesso civilizacional que destruiu avanços no Brasil e gerou um Congresso antipopular e antidesenvolvimentista, alinhado ao rentismo financeiro. Isso, apesar de uma pesquisa recente do Instituto Ipsos mostrar que, se 100% do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (Bacen) reputa a inflação o grave problema do país, somente 27% da população lhe dá razão. Para 43% o nó górdio é a pobreza e a desigualdade; a média global é 31%, 12 pontos abaixo do índice nacional. No DataFolha, 71% dos entrevistados acham a taxa de juros (13,25%, a maior do mundo) mais alta do que deveria ser para conter uma inflação de 4,65%. Financistas sem voto abocanham poderes via uma instituição, por falsa presunção, classificada de “independente”, bloqueando o desenvolvimento do país. A meta é inviabilizar a reversão, ainda que parcial, da marcha da desindustrialização. A autoridade do Bacen foi com gana ao butim. Que vaze.
A delícia provém da energia do humanismo presente em partidos, movimentos sociais e entidades da sociedade civil com práxis teórico-prática na contracorrente neoliberal. O poema de Bertolt Brecht, Louvor do revolucionário, ilustra a dialética existencial da esquerda: “Quando a opressão aumenta / Muitos se desencorajam / Mas a coragem dele cresce. / Ele organiza a luta / Pelo tostão do salário, pela água do chá / E pelo poder no Estado. / Pergunta à propriedade: / Donde vens tu? / Pergunta às opiniões: / A quem aproveitais?” Com espírito republicano, cidadãs e cidadãos lutam para expandir a participação na democracia, com um governo e um presidente capazes de elevar a esperança numa nação livre de séculos de injustiças e aberta às experimentações sociais utópicas.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.