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A dupla moral e a política externa tucana

1525166SEBASTIÃO VELASCO

Os tucanos são bichos de temperamentos diversos. Quando espicaçados, uns levantam o bico e se dão ares de ofendidos, outros têm ataques de fúria. Há também aqueles que suspendem qualquer reação aparente, e ficam à espreita para atacar o insolente, pelas costas, quando não houver ninguém por perto.

Agindo de um modo ou outro, porém, todos são muito sensíveis.

Ainda há pouco estavam profundamente ofendidos com o que entendiam ser uma onda de ataques brutais contra seus refinados escribas.

Como ousam apontar-lhes o dedo? Nomear, no meio de um artigo, cinco ou seis colunistas que se tornaram célebres pela virulência da linguagem utilizada em sua cruzada contra os inimigos ideológicos (esses petralhas…)? Violência fascista! Um atentado à liberdade de imprensa!

Meus sais! Onde está a polícia?

Ah… como seria bom se o outro lado pudesse manter o nível do debate! Se discutisse ideias, ao invés de nos responder com grosserias…

Pois bem, seja feita sua vontade. Vamos dar uma olhada desapaixonada no que diz sobre a política externa o mais recente documento de lavra tucana.

A uma leitura rápida, pareceria não haver muito a olhar no texto “Diretrizes Gerais de Governo”, depositado pela Coligação Muda Brasil no TSE há alguns dias. Com efeito, nas 76 de suas páginas, apenas uma delas é dedicada ao tema.

O raquitismo da proposta não surpreende. Política externa não dá voto, dizem os expertos. O reduzido espaço reservado a ela no programa tucano reflete essa sabedoria.

Seria um engano, porém, tomar o lugar acanhado no texto como indício de que a questão internacional tem um papel secundário no programa efetivo da direita orgânica.

Não é preciso muito esforço para demonstrar a assertiva. A página dedicada ao tópico se abre com uma declaração de princípio, tão pomposa quanto vazia.

“A nova política externa … terá por objetivo restabelecer o seu tradicional caráter de política de Estado, visando o interesse nacional, de forma coerente com os valores da democracia e dos direitos humanos.”

Cercado de lugares comuns – “interesse nacional”, “democracia”, “direitos humanos”, quem os contesta? – o conteúdo da frase está condensado no verbo restabelecer, pelo qual se introduz silenciosamente o argumento surrado segundo o qual a autonomia do Itamaraty foi comprometida, desde o primeiro momento, pelo viés ideológico da política externa do governo petista. E sofre agora uma ameaça ainda mais séria, com iniciativas demagógicas, como esse decreto que institui os famigerados conselhos de participação social em todos os ramos da administração pública. Que horror!

Talvez para não parecer ideológico, o documento evita pronunciar-se sobre qualquer dos temas candentes da agenda internacional. Tampouco se posiciona sobre a dimensão política da integração regional – nenhuma palavra sobre a UNASUL (União das Nações Sul-Americanas), pasmem. Como no passado, a política externa para os tucanos é pouco mais do que política comercial, temperada de bom-mocismo.

Em seu item 2, o documento fala em reavaliar as prioridades estratégicas à luz das transformações do cenário internacional — outra platitude — e em reexaminar as políticas seguidas no tocante à integração regional. Aqui ele começa a ficar mais interessante.

Pois as conclusões principais do reexame já estão dadas. Trata-se de “restabelecer a primazia da liberalização comercial para… recuperar seus (do Mercosul) objetivos iniciais e flexibilizar suas regras a fim de poder avançar na negociação com terceiros países.”

Esses países não são especificados, mas sua identidade é tacitamente aludida no item seguinte:

“Definição de nova estratégia de negociações comerciais bilaterais, regionais e globais,… priorizando a abertura de novos mercados e a integração do Brasil às cadeias produtivas globais.”

Ora, os processos de negociação em curso são bastante conhecidos. Temos, de um lado, o acordo Mercosul-União Europeia, que se arrasta há anos. Mas não é dele que se está falando.

Neste particular, a posição do documento tucano não difere tanto assim daquela que vem sendo sustentada pelo governo Dilma: interessa ao Brasil concluir rapidamente a negociação – fato que vai registrado aqui, como tal, independente do juízo que se possa fazer sobre ele.

Há três outros processos em andamento – Aliança do Pacífico, a Parceria Trans-pacífica, e o Acordo Transatlântico de Comércio e Investimento, ora em negociação entre a União Europeia e os Estados Unidos. Ah, falta mencionar ainda o Acordo Comercial sobre Serviços (TISA, na sigla em inglês), tornado público recentemente a partir da divulgação do documento relativo aos serviços financeiros pelo WikiLeaks.

Três características salientes são comuns a tais iniciativas: 1) todas elas adotam um modelo regulatório do tipo “GATT-plus”, ou seja, regras mais estritamente conformes aos interesses das grandes corporações multinacionais, que, por meio delas, conseguem impugnar os esforços do poder público para disciplinar suas práticas; 2) todas propõem inovações que carecem do consenso necessário para serem aprovadas nas arenas multilaterais, como a OMC; 3) na promoção de todas elas, o protagonista é o governo dos Estados Unidos.

A proposta de política externa tucana omite a tradução prática do enunciado geral antes aludido. Mas podemos encontrá-la em outra seção do documento. Com efeito, na parte dedicada ao comércio exterior, fala-se com todas as letras em flexibilizar as regras do Mercosul, para concluir o acordo com a Europa e negociar um outro com os EUA.

Não há nada de muito novo em nada disso. Nesse, como em outros temas, o documento tucano prima pela mesmice. Antes, a ALCA; agora, os novos acordos – que reeditam o mesmo projeto, em outra escala e com outra roupagem.

Nos anos 1990, o must era a globalização, espécie de Elixir Palegórico para males econômicos; agora, depois dos desastres produzidos em seu nome, o mantra é a “integração às cadeias globais de produção”. Mas o conto do vigário não muda.

Alfinetada à parte, temos nessa disputa eleitoral dois programas de inserção internacional nitidamente distintos. Poderíamos ter igualmente a oportunidade de um debate profundo sobre os desafios que o Brasil enfrenta neste momento de grandes transformações na economia e na geopolítica mundiais. Mas não vale a pena alimentar a fantasia. O que tem marcado a campanha da oposição demo-tucana é a desqualificação do oponente, o ataque abaixo da cintura. E será assim até o final.

Esta última observação me devolve ao ponto de partida. Mesmo o político de pele curtida – como deve ter todo aquele que se dedica a esse ofício nobre – prefere a suavidade do sabonete Dove à aspereza do sabão de cozinha. Seria mais agradável para todos, e certamente mais instrutivo, se a disputa política no Brasil pudesse ser desenvolvida com base no ideal da prevalência do melhor argumento, como quer o filósofo.

Mas não se trata de uma questão de escolha. A política não é o foro; como na guerra, nela quem dita a regra é o antagonista.

Houve época em que a comunicação entre as duas forças que se confrontam na arena nacional há quase duas décadas foram mais fluidas. Foi assim até um ou dois meses depois da eleição de FHC à Presidência da República. Mas a implementação de seu programa de governo – a quebra do monopólio do petróleo e o programa de privatização, para citar apenas dois itens – requeria um jogo mais truculento.

Desde a greve da Petrobras, provocada pelo governo, e combatida a ferro e fogo por este, o País passou a ser dividido no discurso oficial, não mais entre autoritários e democratas, mas entre globalistas modernosos, e corporativistas atrasados – ou simplesmente “neobobos”.

A eleição de Lula, em 2002, com um programa brando de reforma social e uma política econômica que os tucanos reivindicavam (erroneamente) como sua, poderia mudar a qualidade das relações políticas no País. Mas, não. Carente de votos, mas solidamente instalada em vários nichos institucionais estratégicos, a nova e ressentida oposição dobrou a aposta, e quis alcançar no grito aquilo que lhe negavam as urnas.

Nesse contexto, a lamúria dos tucanos sobre a agressividade de seus adversários deve ser tomada pelo que é: expressão da dupla moral que eles seguem nessa esfera – e em tantas outras –, manifestação acabada de farisaísmo.

Artigo originalmente publicado em Brasil Debate.

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