A trajetória da MMM da luta contra a pobreza e a violência ao enfrentamento do conflito do capital contra a vida.
Articulando teoria, prática e movimento, na Marcha Mundial das Mulheres a economia feminista é muito mais do que um conjunto de conceitos aplicados para explicar a economia: é uma estratégia para enfrentar o capitalismo racista e patriarcal e construir sociedades baseadas na sustentabilidade da vida.
A economia feminista nos ajuda a entender a realidade a partir dos lugares onde as mulheres vivem: onde estão organizadas e resistem aos ritmos e à violência do capital contra a vida, onde disputam cada centímetro de território com transnacionais do agronegócio e da mineração e onde constroem comunidades a partir das relações de cuidado com as pessoas e a natureza, da produção agroecológica e da economia solidária. Assim, a economia feminista não é uma teoria estanque, mas está em movimento – e é produzida pelo movimento. “É preciso passar da prática para a teoria”, diziam as militantes no Encontro Internacional nas Filipinas, em 2011, afirmando o feminismo popular como produtor de conhecimento.
Nos 25 anos do movimento, essa construção teórica e política tem sido feita a partir dos processos de organização, formação e luta. Nesse texto, recuperamos alguns marcos do processo que construiu essa visão política e apontamos alguns desafios do contexto atual.
Um pouco de história: marcos da elaboração da Marcha Mundial das Mulheres sobre a economia feminista
Enfrentar as causas da pobreza e da violência foram os eixos em torno dos quais a MMM se formou como um movimento anticapitalista e anti-patriarcal. Desde sua origem, as militantes do movimento identificavam que era preciso aprofundar uma visão feminista comum sobre a economia. Era o período de aprofundamento da globalização neoliberal. Em 2001, as delegadas ao Encontro Internacional da MMM indicavam que não bastava incluir as mulheres nas políticas do liberalismo econômico. Era preciso questionar e transformar a lógica de acumulação do capital que orientam as políticas comerciais. Essa perspectiva desafiou as lógicas institucionalizadas então hegemônicas no feminismo internacional, que orbitava em torno da ONU.
As companheiras dos países africanos articularam a discussão sobre o modelo econômico com a crítica à política de guerras. De acordo com o relatório deste Encontro, era preciso ir além da denúncia sobre os impactos da globalização na vida das mulheres e articular “alternativas levando sempre em consideração as preocupações específicas das grandes regiões do mundo que com muita frequência são esquecidas, reiterando a necessidade de construir um novo modelo de sociedade que tenha como premissa acabar com as guerras do mundo”.
As mulheres do Sul global sentiam como o mercado reorganizava suas vidas, e as militantes se encontravam nas lutas populares contra os tratados de livre comércio, especialmente contra a ALCA, nas Américas, e contra a dívida externa, na África. A construção do feminismo popular, enraizado no território, tornava evidente que não bastava incluir as mulheres em um modelo econômico baseado em desigualdades e nas divisões internacional, sexual e racial do trabalho.
Quando as companheiras escutavam os possíveis impactos dos acordos de livre comércio em suas vidas, refletiam sobre como aquilo já era a sua realidade. Assim, denunciavam que tais acordos eram instrumentos para impedir a soberania dos países do Sul global, mantendo-os em uma relação subordinada às potências do Norte. A privatização dos serviços públicos – nas partes do mundo em que eles existiam – e a ausência deles iluminavam a sobrecarga que recaía sobre as mulheres com a ausência de apoio para a reprodução social – para a coleta da água, a preparação de alimentos, o cuidado e a educação das crianças, a atenção às pessoas doentes.
Lendo, em 2023, os registros dos documentos e Encontros Internacionais da MMM, dois aspectos dessa construção se destacam. Por um lado, a insistência na necessidade de propor alternativas e de impulsionar práticas feministas de transformação, eixo de ação no qual a economia feminista foi ganhando relevância. Por outro, a construção de alianças estratégicas nas quais, ao mesmo tempo em que se constrói unidade e força na ação comum, as elaborações de cada organização vão sendo incorporadas pelas outras, em um processo de “interpolinização” das lutas.
Isso permite avançar em sínteses programáticas. Alguns exemplos: em 2003, no Encontro Internacional em Ruanda, apresentou-se o planejamento de um grupo de trabalho sobre Alternativas Econômicas, que envolvia diferentes coordenações nacionais em um processo de elaboração comum. A partir desse espaço, também se fortaleciam alianças. As assembleias dos movimentos sociais no processo do Fórum Social Mundial significavam um momento importante de articulação, assim como as lutas contra a Organização Mundial do Comércio, processos nos quais se construiu uma aliança muito próxima com a Rede Mulheres Transformando a Economia (Remte) e com as mulheres da Via Campesina. Essas duas contribuíram muito para as formulações da MMM sobre economia feminista e sobre soberania alimentar.
Em 2006, a declaração final do Encontro Internacional realizado no Peru apontava três aspectos fundamentais em nossa elaboração: a necessidade de romper com a separação capitalista e patriarcal entre produção e reprodução – que desvaloriza e subordina a reprodução social –, a crítica aos efeitos devastadores do neoliberalismo e da militarização sobre o planeta e a denúncia de que o imperialismo impede a soberania dos povos sobre seus territórios, suas nações e sua política. Estes são aspectos que seguem compondo os desafios do tempo presente.
No mesmo sentido, quando a Marcha Mundial das Mulheres define quatro campos de ação, nos marcos da 3aAção Internacional de 2010, a economia feminista aparece explicitamente como um princípio a ser desenvolvido, como parte do campo de ação sobre trabalho e autonomia econômica das mulheres. Esse campo de ação organizou a visão do movimento em torno da defesa de igualdade, direitos e seguridade social para todas as trabalhadoras, com destaque para as migrantes e as trabalhadoras domésticas, e colocava no centro da denúncia o papel das empresas transnacionais na exploração do trabalho das mulheres.
Segundo esse documento: “A economia feminista é útil para visibilizar as experiências das mulheres e sua contribuição para a economia, além de mostrar como a produção mercantil não está desvinculada da reprodução, ou seja, a produção das pessoas e da vida. Isso inclui desde a gravidez e o parto, ao cuidado das crianças, doentes e idosos e mesmo dos homens adultos para que estejam disponíveis e saudáveis para trabalhar no mercado. Cuidado implica não só a alimentação, limpar a casa, lavar e passar, mas também o afeto, a segurança emocional e a sustentação da rede social que mantém juntas as famílias, vizinhos e comunidades.”
A sustentabilidade da vida no centro
Na última década, a formulação sobre a economia feminista na Marcha Mundial das Mulheres avançou muito. A participação nas mobilizações internacionais contra as falsas soluções para a crise climática contribuiu para a afirmação da economia feminista como solução popular para as causas da crise multidimensional que enfrentamos. Economia feminista, soberania alimentar e justiça ambiental se retroalimentam e, a partir dos territórios concretos e das alianças estratégicas, afirmamos a interdependência e a ecodependência como base das relações entre as pessoas e das pessoas com o planeta.
A economia feminista se consolidou como estratégia da MMM e nos orienta diante dos desafios da conjuntura. Foi assim durante a pandemia de covid-19, quando em todas a partes em que estamos organizadas nos mobilizamos para cuidar da vida a partir da solidariedade popular e da reivindicação da reorganização social do cuidado nas políticas de recuperação econômica.
Também nesse período, a economia feminista foi um dos eixos do nosso processo de formação feminista, na Escola Internacional de Organização Feminista Berta Cáceres (IFOS, sigla em inglês). A força da economia feminista como proposta e estratégia ficou evidente na Escola, assim como o reconhecimento da diversidade das experiências, das lutas e das práticas feministas de transformação da economia que as mulheres constroem em todo o mundo. Nesse caminho, se avançou na síntese programática que aponta a economia feminista como estratégia baseada da sustentabilidade da vida e na soberania alimentar.
Incorporamos a perspectiva de que o conflito do capital contra a vida se aprofunda no atual período. Essa visão não se fragmenta, mas percebe como os processos que sustentam a vida são atacados cotidianamente pela lógica de acumulação do capital. A sustentabilidade da vida é incompatível com o capitalismo. Não é possível um capitalismo humano, nem pintado de verde ou de lilás, como as empresas transnacionais têm se apresentado mundo afora. Para enfrentar o capitalismo racista e patriarcal, não bastam apenas discursos. É preciso construir força popular e lutas concretas. Na MMM, a identificação das lutas comuns é um método de construção que nos conecta do âmbito local ao internacional, em um movimento circular: mudar o mundo para mudar a vida das mulheres, mudar a vida das mulheres para mudar o mundo.
A economia é inseparável da política. Também por isso, a economia feminista é uma ferramenta para enfrentar a difícil conjuntura política atual, em nossos locais, e também internacionalmente. Isso significa atualizar nossa compreensão sobre o conflito capital-vida no atual contexto de proliferação de autoritarismos de extrema direita, profundamente imbricados com o autoritarismo do mercado, operado pelo poder corporativo das empresas transnacionais. O conservadorismo heteropatriarcal e racista se exacerba, com uso de todas as formas de violência para tentar disciplinar os corpos e sexualidades dissidentes. O imperialismo estadunidense, junto com seus aliados, lança mão de todos seus instrumentos – sanções, bloqueios, golpes, criminalização, guerras hibridas e totais – com o objetivo de minar toda forma de contra-hegemonia e soberania dos povos.
Como conjugar a desdolarização com a integração dos povos visando processos econômicos que promovam a sustentabilidade da vida, reconhecendo e respeitando as diversidades de formas de produção do viver? Quais estratégias devemos ter para por fim às guerras atuais e impedir a eclosão de novas, garantindo que a riqueza produzida pelo povo seja investida no bem viver? Como articular soberania alimentar, energética e tecnológica nos projetos feministas e populares?
Para pensar em novas questões e ensaiar respostas coletivas, recuperamos a elaboração da Marcha Mundial das Mulheres da região das Américas na 5a Ação Internacional do movimento, em 2020. Buscando responder o que significa colocar a vida no centro, elas afirmaram que “é parte da sustentabilidade da vida: A livre autodeterminação dos nossos corpos e territórios; olhar para nossa história, memória, conhecimento e práticas ancestrais dos povos indígenas e negros, e das mulheres; mudar as lógicas e formas de consumir, produzir, reproduzir a vida; tornar visível, reconhecer e, sobretudo, reorganizar o trabalho doméstico e de cuidado, com corresponsabilidade entre homens, comunidades, o Estado e as mulheres; projetar sistemas de justiça que não reforcem a opressão e reconheçam a cidadania dos migrantes e as dissidências sexuais; povos soberanos, e democracias baseadas no poder popular; serviços públicos que garantam a reprodução social e Estados que construam suas políticas a partir do comum e do reconhecimento dos valores comunitários, como a autogestão; desmercantilização da vida e desmantelar o poder das transnacionais; enfrentar a financeirização da vida e o endividamento, fortalecer a economia real, a economia a serviço da humanidade e sua vida em harmonia com o planeta e com o resto de seus habitantes”.
Redação por Tica Moreno
Edição por Helena Zelic
Via Capire