Pouco conhecida no Brasil, a Revolução Alemã de 1918-1919, é um capítulo da história que mereceria um olhar mais atento daqueles e daquelas que buscam resistir a hegemonia neoliberal e almejam a construção de uma sociedade pós-capitalista. Como veremos, as consequências do desfecho do processo revolucionário alemão foram profundas e com implicações que viriam, alguns anos depois, a afetar decisivamente a conjuntura global. A esta altura, provavelmente a leitora destas linhas perguntará: se a Revolução Alemã teve tamanha importância, qual razão deste evento ser coberto pela penumbra do esquecimento? O motivo principal é que se trata da história de uma revolução popular que foi derrotada!
A História, como sabemos, quase sempre é escrita pelos vencedores, cabendo aos vencidos a dupla derrota da batalha perdida em vida e na memória “oficial”. Se as revoluções vitoriosas são, justificadamente, importantes referências históricas e objeto constante de reflexão – vide a recente passagem do centenário da Revolução de Outubro –, por outro lado, as revoluções fracassadas igualmente nos legam importantes experiências que devem ser resgatadas. Neste sentido, o livro A Revolução Alemã (1918-1919) de Sebastian Haffner, publicado pela editora Expressão Popular, com apoio da Fundação Perseu Abramo e da Fundação Rosa Luxemburgo, preenche uma importante lacuna em nosso país.
Sebastian Haffner é o pseudônimo de Raimund Pretzel (1907-1999), jornalista e historiador alemão, que notabilizou-se por seus livros sobre a história alemã do século XX. Neste A Revolução Alemã, sua narrativa e reconstituição dos principais fatos envolvendo o processo revolucionário, numa escrita fluída e envolvente, em seus momentos mais inspirados, chega lembrar John Reed ou Hemingway.
Em linhas gerais, a revolução na Alemanha eclode ao final da Primeira Guerra Mundial. Tendo um caráter eminentemente espontâneo, com um programa político pouco definido e sem lideranças claras (uma de suas maiores fraquezas), o movimento se iniciou em novembro de 1918, estendendo-se de forma irregular até o estabelecimento formal da República de Weimar, em agosto de 1919, sentenciando a derrota final da revolução. A exemplo da Revolução Russa, o processo alemão contou, além da liderança das massas proletárias dos grandes centros urbanos, com a adesão significativa de militares de baixa patente, cansados da guerra e ansiosos pela paz. Em seu primeiro ato, a revolução conquistaria uma retumbante vitória: precipitaria a queda do Imperador, encerrando a monarquia e estabelecendo uma República. Chama a atenção, neste primeiro momento, que estas profundas transformações políticas ocorreriam de maneira quase que pacífica, fruto, principalmente, da falência da antiga ordem política que havia conduzido o país a uma desastrosa guerra, além da forma completamente imprevista com que a revolução eclodiu.
Se a Revolução Alemã teria um início inquestionavelmente vitorioso, ensaiando para uma virtuosa “República de Conselhos Populares”, no entanto, rapidamente viria a ser desbaratada, tendo seus ímpetos e energias transformadoras contidas e sufocadas, paradoxalmente, pelo principal partido do operariado alemão: o Social-democrata (SPD). Haffner, em seu livro, reconstitui com riqueza de detalhes, a forma com que a liderança do maior partido da esquerda alemã, comandado na época por Friedrich Ebert – que assumiria como Chanceler da nascente República – não só buscou domesticar e impedir que a revolução evoluísse para uma maior radicalidade, como ao longo do processo, daria apoio ao massacre dos revolucionários durante a fase de guerra civil da revolução.
O episódio mais conhecido da traição da social-democracia alemã foi o assassinato dos revolucionários Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo. No livro, Haffner fundamenta como este crime foi motivado por razões de ordem política que extrapolavam a revolução propriamente dita. Ainda que Liebknecht e Luxemburgo fossem lideranças da esquerda reconhecidas em todo país, a força social dos Espartaquistas era reduzida, tendo baixa influência sobre os rumos da revolução, a massa operária era em sua maioria apoiadora do SPD. Este crime, na verdade, expõem o processo de avanço da contrarrevolução e da radicalização de setores do conservadorismo, ao qual o SPD não só fazia vista grossa como, direta ou indiretamente, apoiava. Para eles, os principais adversários eram a esquerda radical, não a extrema-direita. Este erro de avaliação do SPD cobraria, tempos depois, um preço alto com a ascensão do nazismo e a chegada de Adolf Hitler ao poder.
Como aponta Haffner, “a revolução de 1918 foi uma revolução social-democrata derrubada pelos líderes social-democratas: um desdobramento praticamente sem igual na história mundial”. O SPD, fundado em 1869, no século XIX foi o principal partido operário de orientação marxista do mundo. Fruto de uma contínua sequência de vitórias eleitorais, passaria por um lento processo de adaptação à lógica parlamentar da democracia burguesa, chegando ao início do século XX profundamente adaptado ao sistema político herdado por Bismarck. Após apoiar o ingresso da Alemanha na guerra, provocando o primeiro grande cisma da esquerda alemã, o SPD se converteria, no período imediato ao fim da guerra, no principal partido garantidor da ordem capitalista.
Pior do que isso, em seu esforço para impedir que os revolucionários alemães evoluíssem para um movimento comunista de tipo bolchevique, incentivou a contrarrevolução e permitiu a organização do que seria o embrião do nazismo. Exemplo disso foi o apoio dado a organização das Freikorps, grupos paramilitares, formados já com o SPD a frente do governo, que promoveriam um bárbaro banho de sangue dos revolucionários na guerra civil de 1919. Os Freikorps apresentavam uma politização conservadora marcante, não sendo casual o fato de já aparecer entre seus integrantes, de forma incidental, o uso do símbolo da suástica e o fato de muitos deles figurarem, tempos depois, como lideranças da SA, a milícia paramilitar nazista. A legitimação das milícias era reflexo de um discurso de ódio que já germinava na burguesia e que, após o SPD ser apeado do poder na República de Weimar, no campo político, teria como alvo privilegiado a esquerda. Não apenas aos comunistas, mas também o próprio SPD viria a ser uma das trágicas vítimas do mesmo monstro, incontrolável durante o estado totalitário, que utilizara contra os revolucionários de 1918-1919.
Erick Kayser é historiador e militante da Democracia Socialista.