Democracia Socialista

A esquerda brasileira e o republicanismo | Juarez Guimarães

Juarez Guimarães, Professor da UFMG

Com alguma frequência, tem se reproduzido o diagnóstico de alguns intelectuais e correntes da esquerda brasileira de que uma das razões importantes do golpe e das derrotas políticas sofridas foi a adesão a um “republicanismo”, isto é, uma crença cega na imparcialidade e ausência de caráter de classe das instituições do Estado brasileiro, de suas instituições, leis e procedimentos. O fato de, na maior parte das vezes, esta crítica se referir a um republicanismo entre aspas já é uma boa indicação que tal palavra pode ser interpretada de diferentes maneiras.

Decerto, todo conceito da política está em permanente disputa pelas diferentes visões de mundo e pelos interesses de classe antagônicos. “Comunismo”, “socialismo” e até o próprio “marxismo” são objeto de permanentes disputas de sentido. “Democrático” e “popular” são nomes também de partidos da direita brasileiros. Seria o caso, então, de não usá-los?

Não ocorre de modo diferente com o conceito de “república” ou “republicanismo”. Aliás, também este é um nome de um partido da direita brasileiro. “República de Curitiba” tem sido uma expressão usada para designar o núcleo dirigente da Operação Lava-Jato que, como tem se denunciado, viola de forma permanente todas as regras republicanas do devido processo legal, do direito de defesa e dos direitos humanos. Na verdade, intelectuais e correntes da esquerda brasileira criticam de “republicanismo” os atores e pensamentos políticos que, em nome do combate à corrupção, curvam-se de fato à realidade do Estado liberal brasileiro.

Quando se fala, portanto, do necessário encontro da esquerda brasileira com o republicanismo é preciso esclarecer em que direção os termos “república” e “republicanismo” são usados. Isto significa um desvio de direita ou liberal? Será uma negação do marxismo? Virar as costas à própria idéia de uma revolução anti-capitalista?

Quando a direção do Partido Comunista Cubano interpreta a revolução cubana como continuidade da luta e da vida do republicano José Marti certamente esta caracterização crítica certamente não faz sentido. Nem é em um sentido liberal que os revolucionários bolivianos ou venezuelanos chamam o seu processo revolucionário de bolivariano em homenagem ao grande líder revolucionário e republicano Simon Bolívar.

Quando o comunista Antonio Gramsci afirma que o republicano Nicolau Maquiavel foi o primeiro grande filósofo da práxis e que, na linha da tradição do humanismo cívico do Renascimento italiano, o marxismo deve ser interpretado como humanismo radical, ele certamente não estava abrindo mão de seu anti-capitalismo visceral.

Quando Florestan Fernandes, diante da “Nova República”, intitulava o seu livro de “Qual república?”, ele certamente não estava cedendo diante do liberalismo brasileiro mas exatamente denunciando-o e reivindicando um outro sentido de república democrática. Da mesma forma, quando o socialista democrático Antonio Candido propõe para a esquerda dialogar com a herança dos republicanos Manoel Bonfim e Sérgio Buarque de Holanda, ele certamente está identificando pensamento críticos radicais que devem nutrir a própria identidade e programa da esquerda anti-capitalista brasileira.

Quando o MST estuda e recepciona o pensamento do grande pensador republicano Celso Furtado ou reivindica as heranças das revoltas republicanas dos inconfidentes mineiros republicanos ele está reivindicando para si, de forma alta, pensamentos e momentos históricos decisivos na construção de nossa soberania nacional.

Entre esquerda e república, entre marxismo e republicanismo, há decerto uma relação histórica e conceitual que é preciso aclarar. E esta aclaração histórica e desenvolvimento programático têm tudo a ver com os impasses fundamentais da esquerda brasileira e internacional.

 

Uma tradição crítica e alternativa ao liberalismo

No erudito e plural trabalho dos historiadores e filósofos que têm, nas últimas seis décadas, retomado e reavivado o estudo do republicanismo, este é entendido como uma tradição (que remonta aos pensamentos clássicos dos gregos na sua experiência da polis democrática e de Roma em sua época republicana), como matrizes históricas em formação (esta tradição foi retomada e desenvolvida no Renascimento e em diferentes contextos históricos de revolução, que formaram a chamada Modernidade, como a revolução inglesa do século XVII, francesa e norte-americana do século XVIII), como linguagens política ( isto é, gramáticas e conceitos que organizam e dão sentido ao processo discursivo  que nunca pode ser separado da ação política).

No pluralismo das interpretações, o republicanismo é entendido como uma tradição, um conceito e uma linguagem da liberdade mais antiga, crítica e alternativa à linguagem formada pelo liberalismo na Modernidade ocidental, que formou e se tornou orgânico ao capitalismo. Podemos identificar esta crítica republicana às linguagens predominantes do liberalismo, que também é um campo plural, em quatro dimensões fundamentais.

Em geral, as tradições liberais defendem o ponto de vista que a democracia deve ser pensada a partir de procedimentos acordados ou regras do jogo, como quer Bobbio, ou por uma legitimidade racional-legal, como afirma Weber, e não por um compartilhamento de valores comuns. Com este postulado, esconde-se que toda regra acordada pressupõe adesão a valores, pretende-se afirmar que não há democracia sem liberalismo ou, como quer Weber, que a Modernidade liberal é um ponto de chegada inultrapassável pela humanidade, sendo, portanto, naturalizada em última instância.

As tradições republicanas afirmam, ao contrário, que todo Estado assenta em uma comunidade de valores dominantes, isto é, que as leis, instituições e procedimentos, por exemplo, da democracia apóiam-se em princípios pretensamente universais que sustentam o conflito e regulam a disputa de interesses. Em “A Ideologia Alemã”, Marx e Engels falam na mesma direção, que todo Estado reflete as idéias das classes dominantes e Gramsci, atualizando esta percepção em um sentido conceitual, afirmará que a luta pela revolução socialista é inseparável da luta por uma nova hegemonia.

Em segundo lugar, as tradições liberais tendem a separar, colocar sob tensão, ou mesmo colocar em oposição, os princípios da liberdade e da igualdade. É baseada nesta separação, que, por exemplo, afirmam a igualdade política ou jurídica na democracia em um mundo social e econômico do capitalismo constituído pela desigualdade. As tradições republicanas e especialmente as tradições do republicanismo democrático afirmam que a liberdade depende da superação das desigualdades estruturais de classe, de gênero ou de raça.  A desigualdade estrutural, aquela que não é circunstancial ou contingente, é incompatível com a liberdade porque ela cria relações de opressão, de dependência ou vulnerabilidade.

Em terceiro lugar, as tradições liberais na maior parte do tempo não foram democráticas – isto é, negaram até o direito de voto e os direitos fundamentais às maiorias, aos trabalhadores, aos pobres, aos negros, às mulheres – e, quando aderiram à democracia, foi formulando o princípio do chamado “elitismo democrático” (todas as sociedades foram e serão sempre governadas por elites) e travando, por diferentes caminhos, a soberania popular. Por definição, o republicanismo pensa o cidadão e a cidadã como aquele ou aquela que participa do poder, que o que define a república democrática legítima é apropria participação direta do povo na votação das leis que organizam o Estado e que onde não há participação política cidadã, a corrupção – o prevalecimento dos interesses particularistas ou privilégios – tende a crescer e destruir a república.

É baseada neste conceito de legitimidade republicana, que os conceitos desta tradição preocuparam-se desde o início em caracterizar regimes despóticos ou governos tirânicos e, na Modernidade, defenderam o direito sagrado de resistência e revolução contra estes regimes e governos. A força não faz o direito e o direito pode e deve ser defendido, se necessário, pela força, todo cidadão tem não apenas o direito, mas o dever de lutar contra os tiranos, a revolução é justa ali onde não existe liberdade são temas desta tradição republicana democrática e que certamente se comunicam com o próprio conceito de revolução socialista.

Em quarto lugar, as tradições liberais que se formaram organicamente à própria instituição estatal do sistema capitalista, a partir de seus centros de hegemonia, em particular a Inglaterra no século XIX e os Estados Unidos no século XX, pregam a adesão a uma visão de mundo cosmopolita que se afigura como inerente ao próprio mercado mundial. As tradições do pensamento republicano sempre afirmaram a liberdade como possível apenas no Estado livre, isto é, não submetido à opressão ou domínio de outro Estado. E quando pensaram em uma ordem mundial a conceberam como uma federação mundial de repúblicas em uma ordem internacional simétrica de poder.

 

Marx e o republicanismo

Já estão muito avançadas no campo de estudos marxistas internacionais as interpretações e as documentações sobre a relação seminal, fundante e fundamental, da obra e da ação revolucionária de Marx com as tradições do republicanismo democrático. Estes estudos, que têm nos Cadernos do Cárcere de Antonio Gramsci um eixo de retomada fundamental, cresceram e se organizaram  desde os anos noventa, alcançaram maior nitidez e maturidade nos últimos quinze anos, apesar de ainda terem pouca visibilidade e tradução no Brasil. Valem-se de dois aportes novos e preciosos: em primeiro lugar, a nova edição completa da obra não publicada de Marx, em particular de seus duzentos cadernos de estudos, que fornecem um mapa do laboratório Marx, de suas leituras e da evolução viva do processo de formação de seu pensamento; em segundo lugar, de um conhecimento  muito mais erudito da cultura filosófica e política da Alemanha no século XIX. Em particular das correntes hegelianas e neo-hegelianas, na qual se inscreveu o jovem Marx, permitindo uma contextualização e uma interpretação de sentido muito mais acurada das diferentes polêmicas de Marx com Bauer, Feuerbach, Ruge, Hess, Stirner etc.

Estas novas interpretações e documentações permitem hoje, enfim, após décadas de crítica à grande narrativa sobre a formação, a identidade e o sentido do marxismo dogmatizada na III Internacional estalinizada, construir uma narrativa alternativa e coerente da formação, identidade e sentido da obra de Marx. Sem uma narrativa globalmente coerente e alternativa, não se supera o paradigma estalinista: o atual estado de fragmentação das culturas do marxismo é bem uma demonstração disso.

Esta narrativa coerente e alternativa sobre a formação, identidade e sentido da obra de Marx pode ser resumida em quatro dimensões mutuamente configuradas.

Em primeiro lugar, Marx nunca foi propriamente um liberal que se orientou para uma ruptura em direção ao comunismo. A sua primeira crítica ao Estado prussiano era basicamente expressa na linguagem do republicanismo democrático, mediado pela cultura do republicanismo alemão do século XIX, e, a partir principalmente da “Crítica á filosofia do direito de Hegel”, ele já está orientando a sua crítica ao Estado moderno liberal. Esta crítica deve ser entendida, de fato, como uma atualização do republicanismo democrático às dimensões opressivas do Estado liberal moderno e do sistema capitalista moderno, isto é, da ordem política liberal, que Marx avalia como melhor exemplificada pelo sistema político norte-americano, e da sociedade civil liberal, que Marx principiou estudar através de seu conhecimento da economia política inglesa. Neste sentido, o socialismo democrático é um republicanismo atualizado para o período do capitalismo e da ordem liberal e “O capital” deve ser entendido como parte fundamental da crítica ao Estado liberal moderno.

Em segundo lugar, não é verdade que Marx rompeu com a filosofia política clássica e se orientou para construir uma ciência da história, que seria o materialismo histórico, uma visão linear e teleológica ou finalista da sequência dos modos de produção que culminariam com o advento inevitável do comunismo. Hoje, com seus cadernos de estudos, com a edição verdadeira e não instrumentalizada da “Ideologia Alemã”, sabemos como Marx tinha uma formação sólida em cultura política grega clássica, romana, leu e estudou Maquiavel, Spinoza, Montesquieu, Rousseau, Tocqueville e os utilitaristas ingleses, além de toda a filosofia alemã do final do século XVIII e século XIX. Esta cultura filosófica está presente em toda obra e é impossível ler “O capital” sem esta formação filosófica. A obra de Marx não deve ser entendida como uma ciência determinista da história, mas como um princípio ativo e praxiológico de superação do capitalismo através da luta política consciente a partir de suas contradições imanentes.

Em terceiro lugar, não é verdade que Marx moveu-se do idealismo ao materialismo, abraçando uma visão materialista ontológica do mundo social que tornaria sua teoria incompatível com o próprio princípio da liberdade humana. Marx nunca foi propriamente um idealista e não se tornou decididamente um iluminista e materialista francês: sua vida, obra e ação estão todas orientadas para a política em seus condicionamentos de classe. São inúmeras as passagens em que ele critica o materialismo e o idealismo como filosofias inconsistentes, formulando a alternativa de uma filosofia da práxis. O termo “materialista” aparece para delimitar o campo fundamental dos interesses econômicos de classe, para se opor realisticamente às especulações idealistas, para vincular pensamento revolucionário às condições imanentes da luta de classes.

Por fim, Marx nunca defendeu um caminho autocrático de revolução ou mesmo um conceito elitista ou vanguardista de revolução. Desde o princípio, como herança do republicanismo democrático, é o princípio da autodeterminação, do demos total ao proletariado, que vai ao centro de sua teoria da revolução.  A expressão “ditadura do proletariado”, que surge em diálogo crítico com o conceito blanquista de “ditadura revolucionária”, nunca foi desenvolvida como alternativa ou em detrimento do conceito de uma revolução democrática, isto é, de uma revolução que usa a força como princípio ativo legitimado pelo direito democrático formado pelas maiorias que fazem a revolução. É uma leitura descontextualizada aquela que, através dos famosos escritos “Sobre a questão judaica”,  extrai um Marx contrário aos direitos humanos: o que ele está ali criticando é a apropriação classista e liberal destes direitos  pelo Estado liberal em formação em meados do século XIX.

Se sem inserir a obra de Marx na cultura do republicanismo, perde-se uma teoria coerente da emancipação do capitalismo, sem marxismo, sem crítica radical ao capitalismo, não se pode contemporaneamente desenvolver de modo coerente os princípios do republicanismo.

 

O PT e o republicanismo

A importância desta nova narrativa da formação, identidade e sentido do marxismo para pensar os impasses do PT e da esquerda brasileira são evidentes. Ela permite, enfim, superar de forma plena o dilema reforma/revolução que o programa de transição indica: trata-se de já na luta democrática formar os valores, o acúmulo de forças, as conquistas e a legitimidade socialista republicana , isto é, de uma república que supere o estado liberal e a ordem capitalista que organiza.

Quando o PT formou a sua identidade de um partido do socialismo democrático, ele o fez sem desenvolver plenamente uma crítica e uma alternativa ao Estado liberal contemporâneo. A importância histórica do documento “Socialismo petista” foi a de preservar a identidade socialista do PT em um período de aguda regressão cultural das esquerdas, no plano internacional; seu limite foi o de não desenvolver um sentido programático de alternativa ao Estado liberal.

Assim, a noção de “democracia como valor  universal”  já organizava o argumento do então secretário-geral do PT, Francisco Weffort,  em seu livro “Por que democracia?”. E quando se estabilizou uma nova maioria partidária nos anos noventa, ela orientou o partido fundamentalmente para o caminho da disputa institucional no interior da democracia liberal brasileira herdada da transição conservadora. A “Carta ao Povo brasileiro” seria, então, nesta visão de conjunto, uma visão de pactuação com a ordem neoliberal brasileira herdada dos governos FHC.

Por este diagnóstico, os grandes limites dos governos Lula e Dilma estão relacionados ao processo adaptativo ao Estado liberal brasileiro Ou à incapacidade de superá-lo em suas dimensões fundamentais: o financiamento empresarial com suas seqüelas de corrupção, um princípio de governabilidade fortemente parlamentar,  a convivência com o sistema empresarial de mídia, a adaptação à economia de gestão neoliberal do Banco Central e à economia política do agro-negócio, a aceitação de um processo de judicialização crescente da política brasileira, a convivência com um aparato de segurança anti-cidadão nas políticas de segurança pública, a dificuldade de resistir á dinâmica mercantil da economia privada na saúde. Da mesma forma, as conquistas históricas de transformação social destes governos podem ser exatamente pensadas como conquistas republicanas e classistas conquistadas ou parcialmente superadas do Estado liberal brasileiro.

Um programa de revolução democrática que fundamente, legitime e constitucionalize um Estado para além do Estado liberal, que permita um processo histórico de transição para um socialismo democrático, ganha assim o seu sentido. A dinâmica desta revolução está diretamente vinculada ao protagonismo dos trabalhadores, dos setores populares, do campo e da cidade, das mulheres, dos negros, dos índios, dos intelectuais e dos trabalhadores da cultura, e de todas as minorias oprimidas na luta política para derrotar a contra-revolução neoliberal e fundar uma nova república democrática no Brasil.