A sociedade vive sob dominação do capital econômico e sua reprodução, independente da intenção dos atores sociais. Seus tentáculos entrelaçam-se em um emaranhado de instituições e relações cotidianas. Esse é o ponto de partida teórico de Pierre Bourdieu no instigante artigo sobre “Modos de dominação”, em A produção da crença. Para evocar uma bela canção setentista, o cidadão que cumpre com seu dever “está contribuindo para nosso belo quadro social”.
O poder econômico não se encontra na riqueza, mas nas articulações institucionais e mecanismos que utiliza para a acumulação capitalista, sem depender somente dos recursos individuais. O ser social não se reduz ao capricho de um soberano ou ao torneio de vontades atomizadas. A realidade é uma construção social e institucional, em um labirinto de contradições.
O liberalismo resume os conflitos à competição de indivíduos. O racismo e o sexismo se reciclam em postos ocupados por homens brancos, héteros e cristãos, escolhidos num espelho. O prócer do Collège de France “faz uso da noção de crença para expressar os mecanismos dialéticos de reforço entre as estruturas sociais e estruturas mentais não facilmente identificáveis”, lê-se no verbete sobre “Crença”, do Vocabulário Bourdieu, organizado por Afrânio Mendes Catani et alli. No que tange à política, a produção de sentido é promovida pelos meios de comunicação.
Vencer obstáculos
Ao cobrir acontecimentos que influem na sociedade e no Estado, a concepção da mídia corporativa prioriza os expoentes do Executivo e Legislativo, incluindo porta-vozes dos Partidos. Movimentos rurais e urbanos, sindicatos, entidades comunitárias, estudantis e ONGs não fariam política; apenas pressionariam os políticos. Uma barreira separa a “sociedade civil” da “sociedade política”, que equivale à esfera estatal onde ocorrem as deliberações. A separação apoia-se no respeito às normas procedimentais. Com o que o Orçamento Participativo (OP) não teria legitimidade para se imiscuir na alçada parlamentar, apesar de a participação constar na Constituição.
Deputados e senadores disfarçam posições de classe, na temporada de caça aos votos. A imprensa liga as excelências às bancadas do BBB: armamentista (Bala), evangélica (Bíblia), ruralista (Boi); em geral, em pleitos para Presidência das Casas Legislativas. Ali, a teia de apoios tem caráter ainda pessoal, amealhado no tête-à-tête. As disputas por espaços de influência são submetidas ao crivo ideológico na demarcação de territórios, com divisórias maleáveis na tática; porém, muito rígidas na estratégia. Nos gabinetes o jogo é jogado pelas individualidades, desde que não esqueçam a filiação às cores do time de origem. O fundo partidário é um fator de persuasão.
As crenças são coletivas no universo simbólico da estrutura social. No contexto das condutas, dos pensamentos e das disposições acha-se o sentido das práticas – a bússola que orienta o dinamismo das ações individuais e grupais. Por exemplo, nos propósitos espúrios e ilegais do conluio da Lava Jato, norteada pela complexa campanha de lawfare contra a reputação dos agentes públicos e das empresas de engenharia, para ocultar os interesses estrangeiros no país.
Objetivou-se alijar construtoras nacionais do mercado global; ao custo de 4,4 milhões de empregos, redução de 3,6% do PIB e queda de 85% das receitas empresariais. Afastar das eleições o líder das pesquisas, após o impeachment forjado, era essencial para o desmonte dos direitos trabalhistas e previdenciários, a pseudo “ponte para o futuro”. A pantomima judicial e midiática é a prova de que os ditames do livre mercado manipulam as frágeis liberdades democráticas.
A força das crenças
Crenças também alavancam a ascensão da extrema direita no mundo, com a cumplicidade de figuras de proa do liberalismo político, para não citar os mandachuvas do liberalismo econômico que, entre a democracia e o fascismo, repetem os erros das décadas de 1920 (Mussolini) e 1930 (Hitler). Os mandatários da opinião do atraso temem mais as forças que lutam por justiça social do que os inimigos juramentados do Estado de direito democrático. Trocam a esperança igualitária pelo status quo discriminatório, a coragem pelo medo, o amor pelo ódio.
A extrema direita é a ponta de lança do neoliberalismo depois da crise sistêmica de 2008, iniciada nos Estados Unidos. A “sociodiceia conservadora”, na terminologia de Pierre Bourdieu, recrudesce com o discurso pós-moderno sobre o fim das classes, das ideologias e da história. “Esse evangelho, ou melhor, a vulgata mole que nos é proposta de todos os lados sob o nome de liberalismo é feita de um conjunto de palavras mal definidas como ‘globalização’, ‘flexibilidade’, ‘desregulação’, etc. Suas conotações liberais e mesmo libertárias podem conferir a aparência de mensagem de liberdade e de liberação para uma ideologia conservadora que se pensa como oposta a todas as ideologias”. A começar pelo Estado, daí em diante tudo vira mercadoria na prateleira.
Tradicionalmente o Estado tem “uma mão direita” (os agentes ligados à financeirização), e “uma mão esquerda” (as funções de política social, educacional, ambiental e assim por diante). A última é mutilada pelo extremismo direitista, conforme dá testemunho o fatídico quadriênio no Brasil e, o atual, na Argentina. Os bens coletivos deixam de pertencer ao povo para integrar a sanha privatista de parques e a especulação imobiliária, à revelia dos planos diretores.
Rompem-se os diques que a comunidade erigiu para se proteger do espírito egoísta e antissocial, no passado. A sociabilidade plural e multicolor torna-se pó. Os mercados agem com desprezo em face dos direitos políticos universais, já adquiridos. O ciclo fecha-se com o assalto institucionalizado ao núcleo de decisão na economia sobre a política monetária, isto é, o Banco Central. O Judiciário legaliza as múltiplas e degradantes investidas do capitalismo hegemônico.
Desafio no presente
Embora as iniquidades comprometam a democracia, são inegáveis as vantagens políticas do regime democrático, salienta a professora de Teoria Política Ellen Meiksins Wood, da York University, de Toronto, em O renascimento de Marx, organizado por Marcello Musto: “Desde a antiguidade grega, não existia uma forma de sociedade em que desigualdades tiveram menos efeito sobre os resultados políticos, do que naquelas com direitos associados à democracia liberal”.
Tais direitos permitem dispor e ampliar a liberdade de imprensa para divulgar os próprios credos. “Nunca antes as organizações da classe trabalhadora, exercendo as liberdades de expressão e de associação ‘burguesas’, tiveram consequências tão diretas e significativas no domínio político”. Coisa que exige uma vigilância constante para a manutenção, sem censura. O neofascismo busca bloquear o debate público, com atos de violência contra a esquerda.
Compreende-se que as classes dominantes, durante séculos, tenham se contraposto à extensão dos direitos políticos à maioria da população – ameaçava as hierarquias, as propriedades e os privilégios. A democracia precisa ser aperfeiçoada até para materializar promessas da modernidade, presentes nos valores civilizatórios. O governo Lula lidera a travessia, numa conjuntura de adversidades. A barbárie fincou raízes de opressão neocolonialista, no lapso 2016-22.
Os vilões dessa narrativa histórica são as finanças e a desindustrialização; os heróis são o povo e a nação com o projeto de mercado interno de massas e distribuição de renda. O desafio da democracia está em conciliar o desejo utópico e a transformação social real, para conter o poder explorador das classes apropriadoras. No Brasil, a mudança política e a mudança econômica partem sempre da luta, organização e criatividade de quem defende a humanidade e o planeta.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado de Cultura do Rio Grande do Sul.
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