A gestão Bolsonaro impôs ferozmente a guerra cultural na cena política brasileira. A esquerda e o PT não podem colocar a disputa político-cultural em plano complementar. Ela é fundamental na atual conjuntura
Em 2020, o Congresso Nacional aprovou a Lei Aldir Blanc de emergência cultural. Ela reconheceu cultura como uma das áreas mais afetadas pela pandemia ao impossibilitar a realização de atividades culturais, convivênciais e presenciais, ao vivo. Todo um conjunto expressivo de eventos – espetáculos, mostras, festivais, seminários, encontros, exposições e festas – teve de ser cancelado. Uma das primeiras áreas a parar, a cultura presencial deve ser uma das últimas a retornar, dado o congraçamento simbólico e afetivo, que ela requer. Em perspectiva distinta, a cultura mediada por redes sociotecnológicas de produção e difusão de bens culturais durante a pandemia se agigantou e presta um serviço vital ao garantir a saúde mental e psicológica de pessoas submetidas à diminuição e à ruptura de relações sociais, afetivas e emocionais, imprescindíveis à vida minimamente saudável. Com o prolongamento da pandemia mesmo a cultura midiatizada encontra-se em colapso, pois a necessária renovação de suas obras agora está em xeque, devido a impossibilidade de criação de novos estoques, ocasionada pelas restrições decorrentes da pandemia.
A conquista da lei derivou da luta que congregou muitos movimentos e personalidades do campo cultural em articulação com parlamentares democráticos de esquerda, diversos deles do PT. Eles tiveram a capacidade política de sensibilizar a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, em um contexto especialmente adverso à cultura no Brasil, decorrente principalmente da atuação brutal da gestão Messias Bolsonaro e, de modo secundário, de atitudes assumidas por outros poderes Executivo, Legislativos e Judiciários, inclusive nos planos estaduais e municipais.
A gestão federal tem se caracterizado por uma profunda aversão e por ataques constantes à democracia, às liberdades de criação e de expressão, à cultura cidadã; à diversidade cultural e ao pluralismo; por violências simbólicas e físicas contra os fazedores de cultura; pela censura; pela discriminação das culturas populares e identitárias; pelo desmonte da institucionalidade, das políticas culturais, de programas e de projetos; pela deliberada tentativa de asfixiar a cultura nacional; pela tentação de impor culturas autoritárias, supremacistas, negacionistas, terraplanistas, fundamentalistas, colonizadas, homofóbicas, machistas, racistas, dentre outras. Enfim, pela agressiva e intensa guerra cultural contra todas as manifestações, obras, pensamentos e sensibilidades não afinados e alinhados com as conservadoras posições oficiais.
O campo cultural, nesse contexto adverso, se posicionou majoritariamente, por meio de entidades e personalidades mais expressivas, sempre a favor da democracia e liberdades e se manifestou contra censura, perseguições, discriminações e opressões. Ele se colocou diversas vezes contra: o golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016; a gestão Temer; a candidatura Messias Bolsonaro e depois sua gestão. Em sua maioria, o campo cultural apoiou a candidatura Lula e depois Haddad e participou ativamente da campanha Lula Livre, quando da prisão política arbitrária de Lula, para impossibilitar sua candidatura nas eleições antidemocráticas de 2018. Ou seja, o campo cultural, hegemonicamente, assume a condição de aliado persistente na luta democrática na atualidade brasileira.
A guerra cultural aparece como componente vital da difícil conjuntura política que vive o país, conformada por uma pandemia sem controle por incompetência da gestão Messias Bolsonaro e por um pandemônio que produz crises em toda sociedade, em suas dimensões sanitárias, econômicas, sociais, ambientais, educacionais, universitárias, científicas, políticas e culturais. Tal turbilhão se expande por toda sociedade, cria uma sensação de descalabro e tormento, produz um aparente caos, que inclusive termina por banalizar os proliferantes absurdos, que ocorrem cotidiana e sistematicamente.
O pandemônio não pode ser encarado apenas em sua aparência de caos, incompetência e atabalhoamento. Em verdade, o pandemônio, para além de sua aparência imediata, deve ser concebido também como deliberada estratégia para imposição de objetivos buscados obstinadamente pela gestão Messias Bolsonaro: o ultraneoliberalismo e a ditadura. O constante desvio da atenção para a incessante coleção de atitudes arbitrárias promovida continuamente ocupa a agenda política e sombreia medidas nitidamente sintonizadas com os objetivos perseguidos. O controle da agenda, através do aparente caos, emerge inegável como dispositivo da estratégia política. A guerra cultural aparece como instrumento dessa estratégia. Ela tornou-se dado fundamental para compreender e fazer a disputa política na atualidade. O desconhecimento ou menosprezo da guerra cultural pode colocar a nação, os setores majoritários de sua população e todos os democratas de esquerda em uma situação bastante perigosa. A eminente barbárie ameaça a tênue civilidade brasileira.
A esquerda no mundo e no país tem longa tradição de atrair intelectuais, cientistas, artistas e fazedores de cultura, em geral. A sensibilidade e o pensamento deles fazem com que sejam críticos das mazelas, desigualdades, opressões e discriminações inerentes às sociedades capitalistas existentes e portadores de desejos de um mundo melhor e mais humano. Por certo, tais atitudes são potentes elos para a aproximação com a esquerda. Os exemplos da conexão são inúmeros em nível internacional e nacional. O Partido Comunista no Brasil, em determinados momentos, teve influência notável no ambiente cultural. O Partido dos Trabalhadores desde sua formação congregou sindicalistas, membros de comunidades de base religiosas, militantes de agremiações de esquerda e muita gente da cultura. Durante sua trajetória, diversas gestões petistas municipais, estaduais e nacionais acolheram com carinho a cultura e inovaram em políticas públicas culturais. Por certo, instantes dessas trajetórias também contiveram tensões entre partidos e ambientes culturais, ocasionando declínio de sua influência no meio cultural. Não deve surpreender a constatação que o PT perdeu parte de sua capacidade de atrair o campo cultural, por diferentes motivos, ainda que sua presença continue relevante no âmbito cultural.
A dramática conjuntura político-cultural em que o Brasil (sobre)vive, entre a pandemia e o pandemônio, abre ampliado horizonte de possibilidades de rearticulação entre a cultura e a esquerda, em especial, para o PT. Nessa perspectiva, a esquerda e o PT devem assumir ativamente a luta político-cultural a favor da democracia; das liberdades, inclusive de criação e expressão; do pluralismo; da diversidade social e cultural; dos direitos; da democratização da comunicação; do aprimoramento da educação; da escola pública; das universidades públicas; da cultura, em seu sentido ampliado; da cidadania cultural; dos direitos culturais; das ciências; das artes; dos patrimônios culturais, das culturas identitárias; das culturais populares; das culturas audiovisuais; das culturas digitais e dos fazedores de cultura.
A esquerda e o PT não podem colocar a disputa político-cultural em plano complementar. Ela é um dado fundamental da atual conjuntura vivenciada no país e no mundo. A gestão Messias Bolsonaro impôs ferozmente a guerra cultural na cena política brasileira. Acolher politicamente a cultura em uma perspectiva democrática e cidadã significa estar mais preparado para o enfrentar as posturas autoritárias e ultraneoliberais da gestão Messias Bolsonaro; bem como para ampliar a luta democrática no país, por meio do acolhimentodo campo cultural como aliado relevante, que cria análises, pensamentos, sensibilidades, emoções, afetos e sentidos vitais para imaginar alternativas democráticas e criativas de superação do atual cenário nacional e para a transformação do Brasil.
Acolher politicamente a cultura democrática e cidadã significa igualmente reconhecer a cultura como essencial para o desenvolvimento da sociedade brasileira:
1) em sua dimensão econômica, como economia da cultura ou economia criativa, que cresce amplamente em todo mundo no século 21;
2) em sua dimensão social, dado que o campo da cultura não só emprega, formal e informalmente, milhões de trabalhadores, como também pode ser potente aliado para o desenvolvimento social e de políticas sociais, pois enseja a autoafirmação de comunidades sociais;
3) em sua dimensão ambiental, por meio do aprimoramento dos enlaces entre biodiversidade e diversidade cultural;
4) em sua dimensão política, através do empoderamento gerado em comunidades, grupos e indivíduos com a conscientização de suas identidades culturais;
5) e, por fim, em sua dimensão especificamente cultural, que objetiva a formação cultural democrática de coletivos e cidadãos, assim como o desenvolvimento das individualidadescom suas muitas potencialidades.
Nessa perspectiva, a esquerda e o PT devem assumir papel de vanguarda no âmbito da cultura, dando centralidade a disputa político-cultural, aprimorando seu diálogo com o campo cultural, sempre complexo, plural e diverso. A esquerda e o PT precisam ser protagonistas na resistência contra o arbítrio autoritário e contra o desmantelamento da institucionalidade e das políticas sociais, educacionais, comunicacionais, universitárias, cientificas, culturais e artísticas que foram inauguradasem governos de esquerda e petistas. As gestões de esquerda e petistas existentes no Brasil precisam ser democráticas, participativas e criativas, não só revisitando as experiências expressivas já realizadas no passado, mas produzindo gestões e políticas culturais proativas, amplas, inovadoras e comprometidas o desenvolvimento da cidadania cultural, os direitos culturais e da cultura democrática e cidadã.
No contexto drástico em que sobrevivemos, com a pandemia e o pandemônio ferindo a sociedade e matando mais de 400 mil pessoas, a esquerda e o PT são portadores de alternativas e da esperança por um mundo e um Brasil melhores. A cultura democrática e cidadã é componente político imprescindível da resistência à barbárie ultraneoliberal e neofacista, da disputa política-cultural pela democratização do país e da transformação do Brasil em uma perspectiva radicalmente democrática e socialista.
- Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia. Ex-secretário de Cultura da Bahia e ex-presidente do Conselho Estadual de Cultura da Bahia
Foto: Tomaz Silva/ABr
Publicação original: www.teoriaedebate.org.br/2021/04/30/a-esquerda-o-partido-dos-trabalhadores-e-a-cultura/