A democracia exige um sistema partidário com liberdade de organização, coerência programática e previsibilidade de comportamento em sua prática política. Sem esse requisito é impossível organizar e sistematizar a vontade coletiva de milhões de pessoas em ideários programáticos que permitam sua representação efetiva nos parlamentos e governos.
Esses elementos fundantes de qualquer regime democrático não estão presentes no caso brasileiro. Em nosso país, nem as funções clássicas e básicas dos partidos: preparar e indicar os representantes, eleger os candidatos e, principalmente, controlar e fiscalizar os eleitos, são observadas. Ou seja, ainda engatinhamos na construção de uma democracia.
Em mais de um século de República, na maior parte não tínhamos nem o direito a plena liberdade de organização partidária e as mulheres só votaram, efetivamente, com o fim do Estado Novo, na década de 1940.
Mesmo com a Constituição de 1988 que garantiu o sufrágio aos analfabetos, manteve-se um sistema eleitoral profundamente antidemocrático com o voto nominal, sem proporcionalidade idêntica para todo o país no voto da cidadania, coligações proporcionais e o financiamento privado de campanhas. Dessa forma, privilegia-se o indivíduo e não o partido, fortalece-se o personalismo e a política de clientela e dos currais eleitorais.
Essa política fortalece o chamado “presidencialismo de coalizão” que inviabiliza qualquer governo e o torna refém de uma “governabilidade congressual” que impede qualquer reforma ou mudança governamental que tenha caráter progressista e/ou popular. A explosão no número de partidos que acompanhou esse processo apenas aumentou a ingovernabilidade num país que é presidencialista e este chefe de Governo e de Estado é o responsável pela elaboração e execução do Orçamento e das principais políticas públicas.
O agravamento desse descompasso entre Executivo e Legislativo ocorre em governos progressistas derrubados ilegal e ilegitimamente, mas desestabiliza, também, governos autoritários e/ou conservadores que se tornam reféns de blocos parlamentares movidos por políticas de clientelismo (emendas parlamentares impositivas, orçamento secreto) e de burocratização (privilégios pessoais, previdência especial e fundo eleitoral) que os unifica independente da “diversidade” partidária.
Com as tênues medidas assumidas na Reforma Eleitoral de 2017 como a proibição das coligações proporcionais, o estabelecimento de uma cláusula de desempenho progressiva para plena representação partidária e um maior rigor na possibilidade da troca partidária, parecia que rumávamos em direção a reformas virtuosas no sistema partidário.
Ledo engano, mera ilusão. A figura da “janela” aberta em ano eleitoral para a troca partidária sem justa causa, sem razões de ordem programática, transformou-se num mercado livre sem critérios e sujeito apenas a cálculos eleitorais. Um grande negócio.
A “janela” escancarou um grande estelionato eleitoral. Sem nenhuma consulta aos eleitores, sem nenhuma convenção partidária que legitimasse mudança de programa, quase um quinto dos deputados da Câmara Federal trocaram de partido fraudando o mandato do voto popular, verdadeiro soberano da representação alcançada nas urnas. Em poucas semanas, a fusão do PSL e DEM, transformou o União Brasil no maior partido do país com mais de 80 parlamentares. Em poucos dias, definhou para 50 deputados sem que nenhuma crise profunda abalasse os alicerces programáticos do Partido na Câmara. O PL, com a adesão do Presidente da República (leia-se “orçamento secreto”, manipulações nos Orçamentos do MEC e da Saúde, nomeações e clientelismo com as emendas parlamentares) foi catapultado a maior Partido do país, quando nas eleições de 2018 não passou de 33 eleitos. Com que legitimidade, com que legalidade na lei eleitoral e do sistema partidário?
Na Assembleia gaúcha, que se jacta de maior coerência e tradição partidária, mais de um quinto dos deputados estaduais também bandeou-se esquecendo programas, coerência e o que pregavam aos eleitores. Trabalhistas, socialistas, sindicalistas transformando-se em neoliberais convictos, de olho nas benesses do poder e das promessas do fundo partidário pagar suas campanhas. Ou seja, todos movidos pela nobreza de espírito pátrio.
As revoadas mais constantes ocorrem nos partidos com base em cultos religiosos o que por si só já são flagrantemente inconstitucionais num país onde o Estado é laico. Sabem que a permissividade do MPE e a cumplicidade da grande mídia, inclusive, controlam grande parte desta, são funcionais para divulgar e defender a concepção neoliberal dominante no Estado brasileiro.
Neste momento eleitoral, a denúncia e o enfrentamento deste sistema partidário-eleitoral é uma necessidade da luta democrática no país. A eleição legislativa será mais uma vez dominada pelo voto nominal e personalista, movido a emendas clientelísticas, pelo poder econômico e as máquinas robotizadas das fake-news.
A esperança do voto proporcional tem que estar sintonizada com a maior unidade possível com a campanha eleitoral e com a unidade do campo democrático e popular. É a chance de defendermos uma profunda reforma político-eleitoral que fortaleça e ajude na construção de um sistema partidário capaz de produzir uma nova democracia alicerçada em projetos coletivos, programáticos e coerentes.
A rica e inovadora experiência de Federações partidárias e Frentes mais orgânicas e programáticas poderá ser uma sustentação importante na defesa e na retomada de um projeto popular, democrático e comprometido com a soberania nacional.
Raul Pont é professor, fundador do PT e ex-prefeito de Porto Alegre.