Muitas mentiras foram ditas e repetidas como verdade na história do Brasil. Desde a chegada dos colonizadores portugueses até os nossos dias, não faltaram mentiras que perduraram como verdades. Mentiras criadas para mascarar tragédias, para fabricar falsos heróis, para criar falsas verdades. A cultura popular consagrou, mundialmente, o dia 1º de abril como o “dia da mentira”. No Brasil, a maior de todas as mentiras foi realizada neste dia.
Foi em 1° de abril de 1964, que uma coalizão civil-militar “assaltou o poder”. Um golpe de estado que se autointitulou “revolução”. “Revolução” que não tinha povo ao seu lado, “revolução” que queria manter tudo como estava e acabar com as poucas e necessárias mudanças sociais que se vislumbravam. Para tentar se legitimar, os golpistas tinham que mentir.
Um golpe que dizia defender a “democracia”. Para defender a democracia, acabaram com ela, rompendo com a legalidade democrática instituída no Brasil desde a Constituição de 1946. O congresso foi fechado, partidos foram postos na ilegalidade e os direitos políticos passaram a ser um privilégio daqueles que apoiavam o regime. Quem pensava diferente era alvo de perseguição. Na tentativa vã de “manter as aparências”, eleições eram realizadas, mas apenas dois partidos podiam disputá-la: o partido do “sim!” e o partido do “sim, senhor” (Arena e MDB). Numa ditadura amparada na mentira, nada mais justo que houvessem eleições de mentira. Para tentar se legitimar, os golpistas tinham que mentir.
A ditadura dizia-se “nacionalista”, defensora dos “valores da pátria”, chegaram até mesmo a criar uma campanha publicitária que dizia “Brasil: Ame-o ou deixe-o”. No entanto, a verdade é que jamais o golpe poderia ter ocorrido sem o apoio dos EUA. Antes dos “interesses nacionais”, propalados pelos militares, haviam os “interesses dos EUA”. Naquele mundo polarizado pela então chamada “Guerra Fria”, os EUA não queriam ver mais um país converter-se ao comunismo, a exemplo de Cuba, e fortalecer a influência da URSS na região. Afinal, o Brasil estava situado no “quintal dos americanos”, e servilmente, os militares atenderam ao chamado dos EUA. Não apenas no golpe, mas durante todo o regime militar, os EUA estiveram em estreita ligação com a ditadura. O nacionalismo dos militares era muito mais verborrágico que efetivo. Para tentar se legitimar, os golpistas tinham que mentir.
Curiosamente a ditadura teve um único momento de verdade. Foi após o “Ato Institucional nº05” em 1968, quando uma lei estabeleceu que não teria mais nenhuma outra lei no país que não fosse a “vontade dos generais”. Foi o momento que a ditadura se assumiu como ditadura. O que ocorria nos “porões da ditadura”, no entanto, era a perpetuação da mentira. As perseguições, censuras, prisões arbitrárias, torturas e assassinatos – praticados pelo estado brasileiro – mantinham-se ocultas, longe dos olhares da “família brasileira”. Para tentar se legitimar, os golpistas tinham que mentir.
A economia foi terreno de grandes proezas. Foram tempos do “milagre econômico”, o país ostentava números realmente impressionantes: a inflação no período teve uma média de 200% ao ano, a dívida externa pulou de 3,9 bilhões de dólares, em 1968, para 90 bilhões em 1980, ampliou-se a concentração de renda e da propriedade, o desemprego e a miséria atingiram números alarmantes, mais de 50% da população economicamente ativa ganhava menos de um salário mínimo, no entanto, o Brasil vivia um “milagre econômico”. Para tentar se legitimar, os golpistas tinham que mentir.
A ditadura, em seu moribundo momento final, tentou criar uma imagem de “branda” – sendo chamada recentemente pelo jornal Folha de São Paulo de “ditabranda” -, pois aqui não teria ocorrido tanto “derramamento de sangue”, haviam “excessos dos dois lados”, etc. Sem dúvida era uma luta equilibrada entre a ditadura e os “subversivos”, afinal, o que dizer de um regime que, por exemplo, mobilizou 20 mil homens para caçar 69 guerrilheiros do PCdoB no Araguaia? Para tentar se legitimar, os golpistas tinham que mentir.
Em seu fim, a ditadura ainda teria uma derradeira mentira. Quando o que restava de apoio e legitimidade se esvaía, temerosa de que uma democracia, com participação popular, viesse a lhes suplantar e expor para a sociedade todos os crimes cometidos nos 21 anos de regime ditatorial, a ditadura se autoconcedeu anistia “ampla e irrestrita”. Para tentar se legitimar, os golpistas tinham que seguir mentindo.
Em nossa história, não faltaram verdades que foram sufocadas e esquecidas, seja pela espada ou pela caneta dos poderosos. Mesmo que permanecendo por longos períodos silenciada, a verdade acaba vindo à tona restituindo-se como verdade, e a mentira, essa será colocada em seu devido lugar. Mesmo que pelas “leis dos homens”, nenhum torturador foi ainda julgado e condenado, da condenação da história eles não escaparão.
Cartum: Latuff