Veio à tona o que estava resguardado em um círculo restrito de políticos e membros do Judiciário, desde o dia 08/07. O ministro da Defesa, general Braga Netto, acompanhado dos chefes militares do Exército, Marinha e Aeronáutica contataram o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas/AL), para dizer que não haveria eleições em 2022 sem o voto impresso. Ato contínuo, Lira que é um dos líderes do Centrão, teria conversado com o despresidente da República, Jair Bolsonaro, para dizer que não acompanharia a trupe em um terceiro golpe. O segundo caracterizou-se pela interdição da candidatura de Lula da Silva no último pleito. O primeiro, pelo impeachment da mulher ex-mandatária do país, sem crime de responsabilidade ou corrupção, Dilma Rousseff. Dois é bom, três é demais.
O parlamentar que tem impedido, monocraticamente, a abertura do processo de impeachment do misógino acusado de crimes de responsabilidade (com provas), acusações de prevaricação (compra superfaturada de vacinas), corrupção (rachadinhas) e o que mais se descobrirá ao abrir a Caixa de Pandora dos podres poderes – agora puxa o freio de mão. Nega-se a dar prosseguimento ao espectro, que não é o do comunismo como se lê no Manifesto de 1848, mas o do fascismo como se vê no esgoto brasileiro, avançando sobre o Estado de Direito Democrático. O Centrão sabe que os políticos que dependem do voto não se elegerão mais, caso respaldem o putsch aventado para outra vez retirar da disputa quem lidera as pesquisas, no páreo marcado para o ano que vem. Infâmia tem limite.
Colunistas do UOL comentam que a postura dos comandantes militares – e suas ratazanas no Palácio do Planalto em postos administrativos do alto escalão – está no DNA das Forças Armadas. Essa é uma análise superficial que não prepara a ofensiva necessária das classes populares para garantir o calendário eleitoral e as regras do jogo. O argumento do voto impresso, a solução proposta para um problema inexistente, lembra a palavra do antigo hebraico, NAVAH, que significa “dar existência para o que não existe”. Sobretudo porque sequer as pedras ignoram que a hipótese impraticável de impressão da cédula é apenas um pretexto para atiçar a aglomeração dos ratos bolsominions, cada vez mais desdentados e acuados, frente ao desgaste crescente de seu líder miliciano sobretudo com a CPI. A questão é: em nome de quem, benzadeus, foi proferida a ameaça à ordem consitucional?
Um golpe militar nunca é somente um golpe militar, em uma sociedade diversificada e complexa, ensinou René Dreyfuss (1964: a Conquista do Estado, 1981). Sempre é um “golpe civil-militar”. Isto é, “um golpe de classe com apoio militar” à guisa de guarda pretoriana do grande capital, e dos meios de comunicação para legitimá-lo. Em 64, em plena guerra-fria que dividia o mundo em hemisférios ideológicos, tratava-se de conter o avanço da “república sindicalista” e as ainda atuais “reformas de base”, propostas por João Goulart. Hoje, alegadamente, seria para substituir ou complementar as urnas eletrônicas, cujos resultados jamais foram em ocasiões anteriores contestados. Não parece crível que a mídia atualmente endosse a pantomima e que, à exceção dos bolsões extremistas, o povo se sinta convocado para uma cruzada arcaica pelo que não tem nenhum sentido plausível.
Sem o incentivo das classes socioeconômicas interessadas na implementação das políticas neoliberais (empresários nacionais e multinacionais, banqueiros, órgãos de imprensa), que por injunções conjunturais o capitão-de-mato (Paulo Jegues) não logrou entregar por inteiro, um novo golpe não é viável no cenário político. O bloco golpista está fraturado. O fato de o Brasil ser o derradeiro laboratório do experimento de desregulamentações, privatizações e ataque aos direitos trabalhistas em curso no mundo, acirra o esperneio das finanças e seus subsidários. Mas a vontade, sem as condições subjetivas e objetivas colocadas na realidade, não basta para o golpismo concretizar-se com sucesso. Sobretudo com a economia em queda livre: acelerada desindustrialização, PIB agonizante, aumento geométrico da pobreza e da miséria, precarização do trabalho e dos milhões de desempregados, a par da devastação ambiental pandêmica e geopolítica que tornou o país um pária internacional, – a ideia se apresenta qual uma aventura para os protagonistas e um risco para os negócios.
Os golpistas que insinuam o tapa e, a seguir, escondem a mão não possuem força para viabilizar a ameaça. Como na fábula sobre a Reunião Geral dos Ratos, de Esopo, muitos concordam que é necessário pôr um guizo no gato para, assim, protegerem-se em face de sua aproximação. Na metáfora, a temida aproximação é simbolizada pela possibilidade da volta de Lula e, com ela, dos “excessos da democracia” (sic) com a volta do ciclo de geração de empregos e distribuição de renda, sob um governo novamente hegemonizado pelos compromissos sociais da esquerda de crescimento e partilhamento das riquezas. Um governo de empatia com a luta dos oprimidos e explorados. A dificuldade está em achar os ratos que se habilitem a colocar o guizo no pescoço do bichano – sem se arranhar.
Outras fontes de legitimação estão descartadas. O Judiciário, com papel de proa em 2016 e 2018, baixou a crista após as revelações do Intercept acerca da conduta corruptora das leis constitucionais pela Lava Jato e o juiz ladrão. A anulação das sentenças condenatórias que embasaram o lawfare contra o retirante nordestino deixou as togas de molho. O TRF-4 já não tuge nem muge. Quanto ao TSF, pós-tudo, não demonstra pendor para repetir o erro de haver avalizado a vacância do cargo presidencial, logo, o golpe de Estado no fatídico abril da década de 60, enquanto Jango permanecia em território nacional. Alguém já disse: a história se repete, de início, como tragédia e depois como farsa. Calma nessa hora.
A Câmara Federal e o Senado, os partidos políticos socialistas / democratas no Parlamento, bem como as organizações da sociedade civil estruturada, estão sendo chantageados pelas forças predatórias do mercado. Cabe aos movimentos sociais, centrais sindicais e o conjunto de entidades que se manifestam pelo Fora Bolsonaro, de retorno às ruas em #24J, aprofundar o significado daquela consigna. Junto à rejeição político-civilizacional ao retrocesso representado pelo Genocida, criar um slogan que estampe a perversão econômica das políticas que trazem sofrimento para a maioria da população, tolhendo o seu direito a ter direitos. Em suma, alto e bom som, bradar: Fora Neoliberalismo. O conceito-síntese irradia a imprescindível politização por elevar o nível de consciência da cidadania, através de uma apreensão sobre a totalidade do real. O fascismo é uma política de morte, a exemplo do neoliberalismo. Ressaltar o vínculo necropolítico que une o fascismo e o neoliberalismo é o desafio dos lutadores antineofascistas e antineoliberais. Hasta la Victoria!
- Luiz Marques é professor universitário, UFRGS