O anúncio da morte de Lucía Hiriart, viúva do ditador Augusto Pinochet, inicialmente causou apreensão e surpresa nos meios políticos chilenos.
Não pela morte em si, pois se trata de uma pessoa de 99 anos que padecia de doenças típicas do envelhecimento; mas por ser um fato superveniente que poderia influir na corrida eleitoral.
A cronologia do evento contribuiu para isso: a morte ocorreu a 72 horas do término do 2º turno da eleição e foi comunicada publicamente por volta das 15 horas desta 5ª feira [16/12], a cerca de 3 horas dos comícios de encerramento das campanhas.
Nos momentos imediatos à notícia da morte, especulou-se se o candidato de ultradireita José Kast poderia se beneficiar com eventual sentimento de comoção e consternação.
Afinal, Kast é um defensor ferrenho da ditadura Pinochet, uma das mais sanguinárias da história. E Kast também se reivindica como uma espécie de sucessor histórico do pinochetismo. A morte da viúva, porém, pode impactar negativamente a candidatura dele.
No início da campanha, Kast declarou ser o destinatário do voto do Pinochet caso o facínora ainda estivesse vivo. De acordo com o ativista de direitos humanos Raoni Beltrão, brasileiro que reside na capital Santiago, esta declaração de Kast custou-lhe a queda dos índices de votos nas pesquisas da época.
Setores radicalizados do Partido Republicano entendiam que Kast deveria se compadecer publicamente com a morte de Lucía Hiriarti e ir ao funeral. A expectativa neste sentido era grande – uma das porta-vozes da campanha dele, Macarena Santelices, é sobrinha-neta de Pinochet.
O candidato, porém, agiu com pragmatismo eleitoral e buscou cinicamente se distanciar do pinochetismo. Ele afirmou que “não conhecia a senhora Lucía”, que não é “próximo da sua família” e, em razão disso, não irá ao funeral.
Este simulacro de distanciamento do Kast em relação ao pinochetismo não lhe propiciará votos de novos setores sociais; mas, ao contrário, poderá causar-lhe prejuízos eleitorais ante os setores radicalizados da ultradireita que lhe cobravam gesto em outra direção, como mencionado anteriormente.
Numa eleição parelha, disputada voto a voto, como mostram as pesquisas e trackings das campanhas, a decepção nas hostes da ultradireita pode causar prejuízos eleitorais irrecuperáveis.
O colaboracionismo da família Kast com a ditadura Pinochet
A tentativa do candidato Kast de se desvincular do pinochetismo se esfumaça totalmente quando se resgata o histórico de colaboracionismo da sua família com a ditadura sanguinária de Augusto Pinochet.
O pai de José Kast [ex-oficial do exército nazista], assim como seus irmãos mais velhos, são acusados de cumplicidade e colaboração com o desaparecimento de pelo menos 70 pessoas – entre camponeses, comerciantes, professores e estudantes – na comunidade de Paine durante a ditadura.
A comuna de Paine singulariza de modo emblemático a monstruosidade e a atrocidade da ditadura pinochetista por ser o território como o maior número de vítimas proporcionalmente à população local.
A família Kast apoiou logisticamente o regime de terror com mantimentos para os militares e carabineiros e com o empréstimo de veículos para transporte de perseguidos pelo regime. Trabalhadores da empresa de carne seca Bavária, de propriedade da família Kast, também estão entre as vítimas de tortura, mortos e desaparecidos.
No período da ditadura a família conquistou importante influência política. Miguel Kast, irmão do candidato José Antonio, foi ministro de Planejamento, ministro do Trabalho, presidente do Banco Central e consultor da DINA – o temível serviço de inteligência chileno [ver wikipedia].
Memória e verdade e o passado que não passa
No último 19 de novembro José Gabriel Palma, renomado economista chileno e professor das Universidades de Cambridge e de Santiago de Chile, publicou a Carta aberta a José Antonio Kast sobre os crimes de Paine.
Nela, José Gabriel Palma faz um inventário pormenorizado do colaboracionismo da família Kast com o terror de Estado e com a prática de crimes de lesa-humanidade.
José Gabriel Palma pergunta a Kast se ele “não pensa que é uma vergonha nacional que depois de todos estes anos ainda não existam condenações pelo ocorrido em Paine”, e termina a Carta afirmando que “o grande problema do Chile é que por este tipo de aberrações o passado [ainda] não foi passado”.
Evidentemente o ultradireitista José Antonio Kast jamais conseguiria responder à pergunta de Gabriel Palma.
O candidato Gabriel Boric, da Frente Ampla, por sua vez, responde a José Gabriel Palma mostrando que o Chile tem um encontro marcado com o futuro, porque ele sim, assim como a esquerda, os democratas e os humanistas chilenos honram a memória e a verdade históricas. Para que nunca mais aconteça!
Por twitter, Boric declarou: “Lucía Hiriart morre impunemente em que pese a profunda dor e divisão que causou ao nosso país. Meus respeitos às vítimas da ditadura da qual ela foi parte. Não celebro a impunidade nem a morte, trabalhamos pela justiça e vida digna, sem cair em provocações nem violência”.
- Jeferson Miola é analista político. Encontra-se no Chile para acompanhar o 2º turno presidencial.
- Publicação original: Blogue do Jeferson Miola