Jornal DS – 19. O projeto de integração sul-americana a teste.
Na sua primeira manifestação pública quanto à nacionalização dos hidrocarbonetos pela Bolívia, o governo Lula afirmou que “a decisão do governo boliviano de nacionalizar as riquezas de seu subsolo e controlar sua industrialização, transporte e comercialização, é reconhecida pelo Brasil como ato inerente à sua soberania”.
Não foi um ato trivial, já que uma das principais afetadas pela nacionalização foi um “símbolo nacional” do Brasil, a Petrobras, empresa sobre a qual o Estado brasileiro mantém o controle. Além disso, um dos objetivos declarados do governo boliviano era, também, renegociar para aumentar o preço do gás vendido ao Brasil e à Argentina.
À procura de argumentos para combater a perspectiva da reeleição do Lula, os neoliberais (seus órgãos partidários, sua imprensa, seus intelectuais) tiveram um rápido e conveniente surto “nacionalista”. Claro que esse “nacionalismo” se aplicaria contra um país pobre e fraco, e não foi aplicado nas relações com as potências imperialistas quando eles foram governo.
Mas na origem do problema estão esses mesmos neoliberais. Foi o governo FHC que impulsionou que a Petrobras se transformasse em uma empresa petroleira igualzinha a qualquer outra multinacional do setor. Para amarrá-la nessa perspectiva, foram vendidas 32% das ações na Bolsa de Valores de Nova Iorque, submetendo a empresa também à legislação estadunidense e de investidores desse país. Assim, a Petrobras desenvolveu suas atividades na Bolívia com o mesmo estilo predatório das outras petroleiras estrangeiras ali.
Os governos neoliberais bolivianos dos anos 1990 desnacionalizaram a exploração dos hidrocarbonetos passando por cima da própria Constituição do país, e com evidente conjugação entre vantagens para as multinacionais e benefícios para os governantes. Além disso, a estranha presença da gigante multinacional norte-americana Enron (que pouco depois faliu num escândalo de corrupção de sua diretoria) na implementação do gasoduto Bolívia-Brasil reforça outras suspeitas. Foi em meio a essa lama que FHC lançou a Petrobras na Bolívia.
Ainda no último ano do seu governo, FHC fez a “Petrobras Bolívia” depender de uma empresa subsidiária da Petrobras na Holanda. Tudo para que as operações dela no país ficassem sob a jurisdição de um “acordo de proteção de investimentos” que os neoliberais bolivianos assinaram com a Holanda. Isto é, a empresa brasileira na Bolívia está protegida enquanto empresa “holandesa”! O mesmo ardil tem sido usado por multinacionais de outros países contra a Bolívia. E esse acordo permite às multinacionais reivindicar ampla indenização até por expectativas de lucros que não se realizaram!
Assim, o repentino “nacionalismo” dos neoliberais brasileiros tenta legitimar mais um elemento da “herança maldita” dos tempos FHC.
Versões e fatos
O pseudo-nacionalismo da direita brasileira quer passar por cima de alguns fatos-chave. Primeiro, a Petrobras – assim como todas as outras petroleiras estrangeiras – vem operando na Bolívia com contratos ilegais. A Constituição manda que eles sejam aprovados pelo Congresso boliviano, mas nunca foram. A corte suprema de justiça da Bolívia, anos atrás, sentenciou pela nulidade desses contratos. A Constituição, um plebiscito realizado em 2004 e uma lei aprovada em 2005 na anterior legislatura definiram outras bases para serem negociadas com as empresas estrangeiras do setor. O governo Evo está atuando nesse marco.
Em segundo lugar, o governo Evo Morales está realizando auditorias em cada uma das empresas para verificar possíveis e muito prováveis irregularidades. No caso da Repsol (capital espanhol-argentino), já foi comprovada a prática de contrabando e já há diretores enquadrados na lei.
Nesse ponto, vale a pena um registro. Foi muito comentada a presença de técnicos enviados pelo governo venezuelano para auxiliar ao governo boliviano. Acontece que a privatização do setor destruiu a capacidade técnica boliviana, e não seria lógico que esse país solicitasse à Petrobras que enviasse técnicos para ajudá-los em auditorias às quais a própria Petrobras tem que ser submetida.
Terceiro, a Bolívia não está se propondo a expulsar o capital estrangeiro, mas quer que o controle das operações passe ao Estado boliviano com a maioria das ações das empresas. Como sintetizou Evo Morales: querem “sócios”, não “patrões”. A questão de como e em quanto indenizar as empresas é um tema que ainda está em aberto – inclusive porque o governo tem que apurar se essas empresas devem reparar eventuais prejuízos contra a economia nacional.
Quarto, o Brasil compra gás da Bolívia a um preço inferior ao que se pratica no mercado mundial. É lógico e normal que o vendedor queira majorá-lo.
Buscando desqualificar o governo Lula a partir de sua política internacional, a direita neoliberal se arma para garantir a defesa do imperialismo, seja na relação do Brasil com os demais países latino-americanos, seja na relação com os países do centro do capitalismo mundial. Mais uma vez, a atitude expressa o esvaziamento programático de que esse setor foi acometido após 8 anos de governo tucano.