Democracia Socialista

A natureza perversa do trote racista

Boneco negro pendurado e enforcado em prédio da UFBA

Por Bruna Rocha*

Nesta segunda de Oxalá, mais do que nunca tive um dia de preta. Logo cedo, depois do banho de pipoca, folha, milho branco, bênçãos e alfazema, mãe Lurdes me alertou: para ficar boa será necessário muita luta. O correr do dia deu provas instantâneas de sua milenar sabedoria.

São 2:25 pós meia-noite e o dia de preto não acabou. Pois quando me preparava para descansar meu ori, vi esta foto postada na página da UFBA e acabou- se o sono, acabou- se a paz. Esta imagem, segundo quem a divulgou, foi pendurada na “recepção” de calouros da Faculdade de Arquitetura da já citada universidade. Com um acolhimento destes, quem precisa de jubilamento?

Essa imagem é a expressão mais asquerosa de uma cultura muito disseminada nos trotes da UFBA e de outras instituições de ensino: RACISMO!

A construção simbólica e criminosa por detrás e pela frente (Tá na cara) dos trotes é a da ridicularização do corpo negro e de sua humilhação pública e em alto e bom som para toda a comunidade acadêmica. Esta prática violenta, agressiva e altamente danosa para a saúde educacional, é revertida pelo colete-à-prova-de-críticas do humor e da ironia, sustentada pela pressuposta autoridade de veteranos que vomitam todo seu fascismo de uma vez em cima daqueles e daquelas que vão entrar e disputar espaço com eles.

A natureza dos trotes é cruel desde que os negros e negras pouco acessavam a universidade. Entretanto é preciso convir, reconhecer e estar atenta à dimensão que isso ganha com o enegrecimento das novas turmas. Essa crueldade por muito tempo passou naturalizada (com exceção dos casos de agressão física), sobretudo por dois fatores: 1- a felicidade dos calouros em passar no vestibular era tamanha que eles aprendiam a admirar e até mesmo ansiar pela tradicional recepção (inclusive torcer para logo se tornarem veteranos e fazer o mesmo) e 2- para além disso, durante um bom tempo foi praticado entre semelhantes (jovens brancos, de classe média e alta) que compunham a parcela que acessava a universidade até há 10 anos. Neste caso, havia um certo nivelamento anterior entre vítimas e algozes; majoritariamente sujeitos blindados de grandes traumas coletivos, ou pelo menos do pior deles: ser negro numa sociedade racista.

Eu sou prova viva disso: quando ingressei na Universidade pela primeira vez, ainda estava nessa onda da alienada admiração suicida. Não era negra afirmada e fazia leitura muito superficial dos fenômenos sociais. Já era de uma turma um pouco enegrecida, mas não me indignei em ser amarrada com corda em fila com os e as demais calouras, melada de ovo (mais, acertada com ovos arremessados em fúria na cabeça) e leiloada num bar. Engraçado que a única pessoa que resistiu e se recusou à aberração era uma menina branca e ela ficou conhecida como chata durante um bom tempo.

A realidade é que se o povo preto na universidade significa “um pé na porta”, os trotes costumam ser um pontapé de volta na “caixa dos peitos” dos calouros e, muito, muito mais dos calouros negros. Com o passar do tempo, o reencontro com a minha negritude e o engajamento político foram polindo cada vez mais meu olhar para esses trotes. E fui percebendo como se diferencia o tratamento aos negros presentes entre os “bixos”.

Cabelos Blacks são os prediletos para os ovos, sempre recebem múltiplos. Os gritos são mais incisivos, o ar de superioridade, mais sólido. As piadas mais maldosas e as risadas mais dignas de choro. Choro de quem se está rindo. Dor. Talvez os defensores de trotes fascistas digam, cínicos, que não há diferença no tratamento, mas quem presenciou e presencia sabe que existe e é latente. E quem vivenciou sabe ainda as consequências que esta “pequena cortesia” pode causar em sua trajetória acadêmica.

O trote é um trauma que, somatizado às diversas formas de racismo institucional (e a não sanção/discussão das universidades a estas práticas é a primeira delas), pode provocar um verdadeiro estrangulamento na vida acadêmica, profissional e social destes sujeitos. Desencadear processos patológicos: depressão, deficit de atenção, stress e outras doenças físicas e espirituais. Todo o desenvolvimento está comprometido e essas pessoas vão ter que ralar muito pra ser alguém diante da assombrosa estrutura do mercado de bens simbólicos (segundo Bourdieu) que é a universidade.

É uma estratégia certeira do Racismo para reduzir a negrada logo na sua entrada ao mundo do ringue epistemológico. Como um golpe de mestre.

Volto à foto motivadora dessa minha reflexão/desabafo para falar que: embora não seja nenhuma novidade a vulgarização do povo negro que, neste caso, para além do tradicional estereótipo de “nego maluco”, também é judas, está na forca e é a personificação do antigo “bixo”, (pois no boneco foram escritos os nomes dos calouros – ou seja, eles todos estariam representados naquela representação do ridículo, do feio, do menor), é preciso reconhecer que não dá para aceitar um retrocesso deste nivel passe despercebido/ subnotificado numa faculdade que se diz tão moderna como a FAUFBA.

Sei muito bem em quem doeu essa brincadeira peçonhenta. E imagino a angústia dos que a sofreram. E espero uma luta grande para banir o racismo do mundo, do Brasil, e da FAUFBA, pois os arquitetos que por aqui se formam, pensarão e projetarão a cidade mais negra do mundo fora de África.

Já são 3:16 e eu mal posso esperar para dar 7, para bater na porta da Direção desta Faculdade com esse texto e a pergunta de como iremos civilizar e educar esses racistas canibais para que eles não devorem o fígado, os rins e o coração de minha cidade.
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* Bruna Rocha é secretária de Mulheres do ENEGRECER e diretora de Mulheres da UEB pelo campo Kizomba.