Democracia Socialista

A NECESSIDADE DE UM CONGRESSO EXTRAORDINÁRIO | por Raul Pont

Raul Pont

A derrota eleitoral e política que sofremos em 2016 cobra do partido uma resposta à altura da gravidade da crise.

As correntes minoritárias do PT, unidas no movimento MUDA PT, defendem neste momento a convocação de um Congresso Extraordinário – com plenos poderes – para fazer uma profunda reflexão sobre o golpe parlamentar que cassou a Presidenta Dilma, as novas políticas econômicas e sociais assumidas pelo Governo Temer e a derrota eleitoral sofrida pela esquerda no País, em particular, a do nosso partido.

A gravidade da conjuntura vai muito além do processo eleitoral. Ocorre em um momento de grande ofensiva da direita com a conjunção do elitismo judiciário e do estado de exceção criado em torno da Operação Lava Jato, com a cumplicidade da mídia monopolizada que tudo justifica como medidas necessárias para combater a corrupção e retirar o país da crise que o paralisa.

A ofensiva da direita, o impeachment de Dilma e a derrota eleitoral não ocorreram apenas pela capacidade de articulação e mobilização dos partidos neoliberais e conservadores. Ocorreram também pelos erros cometidos por nossa ação partidária e pelos encaminhamentos feitos pelo governo após a vitória eleitoral apertada e difícil que logramos com a reeleição de Dilma em 2014.

Já vínhamos acumulando um forte desgaste desde o “mensalão“ em 2005. Com a Operação Lava Jato, fomos tragados pela vala comum da corrupção. O monopólio midiático encarregou-se de impor a versão da responsabilidade maior da corrupção na Petrobrás ao PT. Apesar da corrupção sistêmica e histórica do capitalismo brasileiro, a seletividade do judiciário e o massacre da mídia consagraram a versão da responsabilidade petista.

A outra razão que nos distanciou da base social que nos garantiu a vitória em 2014 foi a mudança na condução da política econômica e na rendição programática e ideológica ao cerco que a direita fazia na defesa do “ajuste fiscal” e da “austeridade dos gastos públicos”.

Em 2015, além da marca da corrupção pagamos o preço do afastamento da base social do governo, que não via nenhuma identidade com as políticas desenvolvidas pelo ministro Levy.

Estava aberto o caminho para a traição e o golpismo do PMDB. Na presidência da Câmara Federal, o deputado Eduardo Cunha (PMDB) encarregou-se de consolidar uma agenda de “pautas-bomba” que encurralavam crescentemente o governo e consolidavam um bloco majoritário e golpista. A “Ponte para o Futuro“ foi o instrumento programático para selar o acordo com o PSDB na direção da derrubada do governo Dilma. Atingido, também, pela Operação Lava Jato, o dep. Cunha desencadeia o processo de impedimento contando com o apoio aberto da mídia e a cumplicidade do Judiciário. Mesmo sem provas e com acusações casuísticas, prevaleceram as razões do “conjunto da obra” para garantir a consecução do golpe no Senado.

A derrota eleitoral foi o desfecho, o resultado previsível desse processo. O abandono do partido por um grande número de prefeitos e vereadores, aproveitando a “janela legal” da reforma eleitoral e a flagrante diminuição do número de candidatos eram sinais que apontavam na direção do fracasso eleitoral.

A crise que vivemos, no entanto, vai muito além da derrota eleitoral. Esta não é circunstancial, conjuntural ou passageira. Suas raízes são mais profundas e por isso exigem um duplo esforço partidário. Por um lado, manter a luta de oposição a esse governo ilegítimo e usurpador e as políticas neoliberais que vem aprofundando e, por outro, mas simultaneamente, realizarmos uma profunda reflexão e autocritica no partido para que possamos recuperar a confiança, o apoio e o protagonismo da nossa base social na reconstrução partidária. Essa é a maior e mais urgente tarefa que temos que enfrentar no Partido dos Trabalhadores.

  1. Um programa estratégico de luta democrática

O longo período de governo deixou-nos reféns do pragmatismo cotidiano dos mandatos e de alianças em busca de governabilidade que secundarizaram um projeto anticapitalista que afirmávamos nos documentos fundamentais e nas primeiras décadas de vida partidária.

A construção de experiências de democracia participativa que realizamos em prefeituras e Estados não foi continuada nem tentada no governo federal. Muito menos traduzida para novas formas de institucionalidade que fossem além da representação clássica com todos os seus vícios de burocratização e de privilégios, a serviço da reprodução do sistema.

A questão democrática deve ser o centro de uma estratégia da luta partidária numa visão de transição ao Socialismo. A participação popular permanente e crescente nos espaços dos orçamentos públicos, dos conselhos setoriais, das conferências na definição dos gastos e das políticas públicas é a via de construção desta estratégia. Estes são espaços que vão além da institucionalidade vigente e recolocam, permanentemente, novos desafios e avanços.

Essa luta não exclui a necessidade de uma profunda e radical reforma política no atual sistema político eleitoral: o voto em lista partidária com igualdade de gênero; o fim das coligações proporcionais; o financiamento público das campanhas; a representação com proporcionalidade idêntica para todo o país na Câmara Federal e o fim das vantagens e privilégios dos mandatos eleitorais (número de assessores, emendas parlamentares, aposentadorias especiais e planos de saúde, verbas de gabinete etc..).

A luta por democracia participativa estende-se ao conjunto dos entes federados, em suas instituições, secretarias, empresas públicas, universidades visando estimular o controle e a gestão democrática nas demais esferas da sociedade.

2. Uma nova política de alianças

O PT é herdeiro de uma esquerda que, nos anos 60 e 70, rompeu com a concepção de aliança de classes para superar o subdesenvolvimento e a dominação imperialista. Entretanto, ao chegar ao governo, rendeu-se à lógica da governabilidade congressual, determinada por um sistema eleitoral esquizofrênico que elege Executivo e Legislativo sem coerência e sustentabilidade entre eles.

Esses doze anos de experiências no governo federal e em muitos Estados e Municípios, por maior ou menor tempo, são suficientes para um balanço autocrítico. O recente golpe parlamentar demonstra, mais uma vez, o descompromisso dos partidos da classe dominante com a democracia. Da mesma forma, desde o fim da ditadura cívico-militar, esses partidos mantiveram o básico do sistema eleitoral (voto nominal, financiamento privado, coligações proporcionais, piso e teto na representação da Câmara) cada vez mais anacrônico e anti-democrático, num “presidencialismo de coalizão” que só interessa ao conservadorismo.

Essa experiência mostra-nos a necessidade, sem atalhos e oportunismos eleitorais, de trabalhar pela construção de unidade no campo da esquerda com os partidos e movimentos que lutam por uma alternativa socialista para o Brasil.

Essa unidade frentista não pode ser apenas eleitoral, mas precisa dar corpo, vertebração nacional, força política e orgânica de forma permanente nas lutas sociais que travamos cotidianamente.

Tem que ser permanente, pois é a forma mais correta de ir unificando na realidade da vida, das lutas sociais, a verdadeira unidade para sustentar um programa de governo e um projeto nacional de transformação do país.

No quadro atual, dezenas de partidos e suas esdrúxulas coalizões tornaram o processo eleitoral um “vale-tudo”, onde não há mais critérios claros e que sirvam para educação política dos eleitores e depois dos pleitos eleitorais para identificar qual a distinção dos programas.

Nesse “vale-tudo”, resta ao eleitor votar na “pessoa”, no “conhecido”; ou seja; no “indivíduo” que é a negação do princípio coletivo da representação democrática. Nesse sentido, o PT deve defender a construção de uma frente de esquerda com os demais partidos que se reivindicarem da luta anticapitalista e estão dispostos a construir esse instrumento unitário de luta política sem que seus membros percam sua identidade própria. O programa necessita ser consensual entre os componentes e este devem compor coordenação colegiada com base na sua representação objetiva nos movimentos sociais e na institucionalidade.

No quadro atual, pode parecer uma tarefa difícil, uma quimera inatingível. Mas, o risco da atomização, do isolamento, da incapacidade diante dos enormes desafios presentes, nos coloca a obrigação de tentar romper a inércia, de não abdicar da grande disputa.

Os resultados eleitorais permitem a leitura de uma derrota do campo de esquerda mas apontam também para abstenções recordes, para a soma de nulos, brancos e abstenções vitoriosa em várias capitais.

O voto positivo nos partidos do campo popular expressa um contingente acima de 20% em muitas capitais e cidades grandes do país. Portanto, temos uma história, uma base social e uma forte referência a organizar.

As experiências recentes com a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo, ainda que em outra dimensão, revelam a audiência e a capacidade mobilizadora e organizadora dos movimentos sociais no país.

Essa é uma das condições básicas para recuperarmos a capacidade de luta e de aglutinação do Partido dos Trabalhadores. Mais que isso, é a condição necessária para reconstruir sua coesão interna e seu projeto histórico.

O diálogo deve ser aberto com os partidos que se afirmam nesse campo, que se denominam socialistas e comunistas e, inclusive, o trabalhismo que se filia a Internacional Socialista, como é o caso do PDT.

3. Combate sem tréguas ao governo golpista e usurpador​    

O governo golpista e usurpador de Temer deve ter nossa oposição permanente. As mudanças que pratica em todas as políticas públicas do nosso governo são marcadamente antipopulares e antinacionais.

Vivemos um estado de exceção em que a cada dia ocorre mais um ataque, mais uma violência contra o povo, contra a juventude e os interesses nacionais. Essas medidas vão da liquidação da EBC por Medida Provisória – primeira experiência de criação de um veículo de comunicação público não governamental que garantisse alguma alternativa ao monopólio que controla a mídia no país – aos ataques à Petrobrás, retirando dessa e do país o controle sobre a exploração do Pré-sal, vendendo a preço vil áreas riquíssimas como o Reserva de Carcará e liquidando a área de distribuição e dos oleodutos da empresa.

O golpe maior contra o povo é o congelamento dos gastos públicos nas áreas sociais (educação, saúde) no limite da inflação do ano anterior, mas garantindo, sem limite, a remuneração do rentismo financeiro que já saqueia o país através da dívida pública. A reação crescente da população faz com que o governo e seus aliados nos Estados desencadeiem uma repressão brutal aos sindicatos, à juventude e aos movimentos sociais do campo, ultrapassando todos os limites do Estado de Direito. O PT, através de seus filiados e militantes, deve estar engajado e na linha de frente dessas resistências e lutas dos trabalhadores. Junto com as frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, assim como com as ocupações de escolas e universidades que hoje se expressam contra a PEC 241, já no Senado sob nº 55/16.

Todos os filiados, vereadores, deputados, dirigentes sindicais e militantes sociais tem o dever de estarem engajados em alguma frente de luta contra esse governo golpista e usurpador. Não há melhor espaço para a reconstrução do nosso projeto do que a presença ativa, militante, em todas as frentes, inclusive nas áreas da Cultura, na resistência aos golpistas e entreguistas do governo Temer.

4. O PT não pode abdicar da luta anti-corrupção

Entre as principais causas da derrota política eleitoral que vivemos está a acusação construída e escancarada pela mídia de que o PT é o maior responsável pela corrupção na Petrobrás e no governo.

Não basta mostrar o caráter sistêmico da corrupção no capitalismo brasileiro e sua relação com os governos, nem a hipocrisia de um sistema eleitoral que permitiu, legalmente, em 2014, doações aos candidatos e partidos pelas empresas em valores superiores a 5 bilhões de reais, conforme os dados registrados no TSE. Nem a seletividade do juiz Moro e sua equipe são capazes de distinguir nos 5 bilhões de reais de 2014 o que é “doação” e o que é “propina” pois para os empresários isso é um investimento em busca de favores e vantagens.

A esmagadora maioria dos presos e condenados na Lava Jato são mega-empresários, seus diretores e gerentes, a tecnoburocracia da Petrobrás e os doleiros e intermediários responsáveis para a corrupção fluir aos paraísos fiscais.

Esses argumentos já são suficientes para, objetivamente, questionar e relativizar a afirmação de que o “PT é o maior responsável pela corrupção…”. Prevaleceu a tese da mídia e da seletividade do judiciário política e eleitoralmente. Este é o fato e o resultado concretos. É o preço pago pela pessoa jurídica – o PT – e seus milhões de filiados, sem praticarem ou decidirem qualquer ato ilícito ou forma criminosa de campanha eleitoral ou em benefício próprio, como consequência da versão predominante na mídia.

Impedir a ação dos inimigos é muito difícil. O que não é aceitável é ficarmos inertes e não termos iniciativas que impeçam ou minimizem os ataques dos que querem nos destruir.

Desde a experiência da Ação Penal 470, o partido, pela maioria de sua direção, não respondeu a altura e conforme nosso estatuto para salvaguardar o coletivo, a imagem da sigla partidária.

Afastar os envolvidos para resguardar o Partido não é um pré-julgamento, nem falta de solidariedade, mas é garantir o direito de defesa, sem pairar dúvida sobre o comportamento do coletivo e do caráter simbólico da denominação partidária. No caso mais recente da Operação lava jato, esse comportamento foi semelhante. Conciliação e atraso na tomada de decisões em situações onde a evidência, a quebra de decoro ou fidelidade partidária exigiam ação exemplar e simbólica perante a opinião pública.

O partido foi abdicando de observar o Estatuto e o Código de Ética nos casos de voto em benefício próprio, em conciliar com práticas clientelísticas e corruptoras como as emendas parlamentares, a aceitação de privilégios como as aposentadorias especiais. Esse afrouxamento passou a ocorrer também com as enormes desigualdades nos financiamentos das campanhas eleitorais e daí para o lobbysmo com as grandes empresas.

Mesmo nos casos em que as informações, os números e as denúncias nos processos judiciais em curso apontam para o benefício próprio, o enriquecimento pessoal que nada tem a ver com a busca de apoio às campanhas eleitorais ou partidárias, a direção reluta ou delibera pela não aplicação da norma estatutária que indica claramente, nesses casos, do afastamento liminar do acusado.

Neste congresso extraordinário, impõe-se uma normativa mais clara e efetiva para que situações como a que vivemos não recaiam sobre o conjunto do partido ou de sua impessoal sigla jurídica.

Denúncias, combate aos privilégios e vantagens em todas as esferas públicas (dos três poderes) e iniciativas legislativas para proibi-las são as formas concretas que vão permitir uma recuperação de imagem e de sentido na nossa luta contra a corrupção.

5. Uma nova forma de financiamento

Independente da necessária reforma estatutária, precisamos pactuar, urgentemente, mudanças no financiamento orgânico do partido que recuperem o protagonismo da base nos rumos partidários como, por exemplo, o processo amplo de debate das teses e propostas concomitante como os processos de delegação que qualifiquem e permitem o debate na formação de unidades e consenso nos espaços estaduais e nacional de deliberação.

Da mesma forma, urge outro comportamento na decisão sobre o uso dos recursos partidários. Não há controle democrático, nem no DN nem na Executiva Nacional sobre os critérios e a aplicação dos recursos, nem sobre a prioridade dos gastos do partido.

A centralização absoluta das contribuições partidárias no SACE não ampliaram a arrecadação e desresponsabilizaram as direções estaduais e municipais na busca permanente de novas fontes e dos rigorosos controles das contribuições ordinárias. O caráter individual e declaratório da contribuição nacional não tem criado o comprometimento coletivo da sustentação nem o controle e a cobrança permanente de todos os filiados. O fim das contribuições empresariais aos candidatos e partidos recoloca, com mais radicalidade, a necessidade de uma política autônoma junto aos filiados e simpatizantes da sustentação material do partido.

A educação política para a contribuição individual de todos os filiados, com regularidade e critérios de correspondência aos salários e ganhos, é uma cultura a ser recuperada pelo partido, após anos e anos de busca de recursos nas empresas e no Estado com todas as distorções e deseducação política que isso acarreta.

Por fim, mas não por último, sem prejuízo da necessidade de continuarmos num debate mais profundo sobre as questões internacionais em curso (integração da América Latina e a crise dos governos progressistas); a situação mundial com a eleição dos EUA, o Brics etc.), assim como os temas nacionais (recessão, liquidação dos instrumentos do Estado como o BNDES, a Petrobras, a desindustrialização etc.), os itens elencados anteriormente são uma pré condição para que possamos recuperar um novo pacto de funcionamento interno do partido e que o habilita a pensar a totalidade da conjuntura e suas contradições.

Porto Alegre, novembro de 2016