A nova Lei do Estágio, sancionada pelo presidente Lula no dia 26 de setembro, traz alguns avanços no combate à utilização de estudantes como forma de precarização da força de trabalho juvenil. Porém, a aplicação da nova lei e a necessidade de avançarmos na regulação pública e na valorização do trabalho somente será possível se houver a unificação dos movimentos sindical e estudantil.
ANDERSON CAMPOS
A precarização do trabalho juvenil
Antes de discutirmos a nova Lei de Estágios, é imprescindível recuperar o contexto no qual se aprofundou o uso do estágio como mecanismo de contratação de mão-de-obra barata e descartável em nosso país.
A juventude brasileira é majoritariamente oriunda de famílias de baixa renda. Em 2006, quase 60% dos brasileiros(as) com idade entre 16 e 24 anos viviam com renda familiar per capita de até 1 salário mínimo, de acordo com a PNAD/IBGE. A alternativa de sobrevivência para a maioria da população juvenil é a entrada cada vez mais precoce no mercado de trabalho, aceitando as piores condições de trabalho.
A década de 1990, período do auge do neoliberalismo, foi marcada pelos recordes de desemprego juvenil. A quantidade de jovens que foram, na prática, obrigados a abandonar os estudos para procurar uma ocupação foi superior ao número de vagas ofertadas pelo mercado de trabalho.
Para os que conseguem alguma ocupação, esta ainda é submetida a altos índices de rotatividade – os empresários utilizam a facilidade para demitir como forma de barateamento da força de trabalho – e apresentam as mais baixas remunerações. O resultado da falta de alternativas é o fato de que 1/3 dos(as) trabalhadores(as) jovens no Brasil são assalariados formais (com carteira de trabalho assinada), significando que a imensa maioria (cerca de 60%) não tem proteção social dos direitos do trabalho e passam longe da organização sindical.
O negócio do estágio
O assustador índice de informalidade é o aspecto central da precarização do trabalho juvenil. Nesse contexto, cresceu vertiginosamente o uso de contratação de estagiários como forma de reduzir os custos com mão-de-obra. A idéia neoliberal de flexibilizar as relações de trabalho encontrou um público extremamente fragilizado: a juventude inserida precocemente no mercado de trabalho.
A intermediação de contratos de estágios tornou-se um grande negócio. Empresas e associações empresariais como o CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola), O NUBE (Núcleo Brasileiro de Estágios) e a ABRES (Associação Brasileira de Estágios), dentre outras, possuem hoje cadastros impressionantes, com milhares de empresas e de instituições de ensino em sua lista de intermediação. O NUBE comemora, em seu sítio eletrônico, a marca de mais de 100 mil estagiários inseridos no mercado de trabalho por seu intermédio. Possui um banco de dados com mais de 1,3 milhão de estudantes cadastrados.
Na prática, houve desvinculação entre o exercício do estágio e o projeto pedagógico das instituições de ensino. Dada a precarização das relações de trabalho, que atingiu ferozmente a juventude, em um contexto de alto desemprego juvenil, a busca por essa atividade tornou-se alternativa para empresas e para estudantes. Por um lado, as empresas barateiam os custos de contratação, não precisam prestar contas com o aprendizado profissional e têm mais facilidades para contratar e demitir. Por outro lado, os estudantes observam o estágio como a única alternativa de inserir-se no mercado de trabalho, independente se a tarefa executada tenha alguma relação com o que está aprendendo na instituição de ensino.
É assim que vemos estudantes de direito exercerem a função de office boys em escritórios de advocacia e estudantes do ensino médio operando máquinas copiadoras. Não consigo imaginar uma escola de ensino médio que tenha em seu projeto pedagógico o aprendizado na operação de pagamentos bancários ou a prática de protocolar documentos.
Criando (alguns) limites
A Lei do Estágio nº 11.788/08, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Lula traz alguns mecanismos de controle sobre a prática do estágio, procurando reforçar seu caráter educacional. Dentre os avanços, destacam-se:
Reforço ao caráter pedagógico do estágio: Impõe a obrigatoriedade de um acompanhamento pela instituição de ensino com um orientador educacional e a responsabilização da empresa em destacar um profissional para supervisão. A empresa terá que fornecer relatórios que comprovem a relação entre a atividade exercida e o projeto pedagógico da instituição de ensino. O não cumprimento de tal exigência pode acarretar em punição para ambos: a empresa terá que arcar com os custos empregatícios do trabalhador, conforme estabelecido pela CLT, e a instituição de ensino pode ter suspenso seu credenciamento ou mesmo sua renovação.
Regularização da jornada de trabalho do(a) estagiário(a): A jornada não pode superar as 6 horas diárias e 30 horas semanais. Por ocasião de avaliações escolares ou acadêmicas, a jornada será reduzida à metade. O(A) estagiário(a) gozará de férias de 30 dias – remuneradas, caso receba bolsa – ou proporcional se o estágio for inferior a 1 ano. Conforme análise feita pela Subseção do DIEESE da CUT, é um passo importante para o reconhecimento do estágio como ato educacional, mas também como trabalho. Por isso a necessidade de descanso.
Controle sobre a contração de estagiários(as): é criada uma proporcionalidade entre o número possível de estagiários(as) contratados(as) e o número total de empregados(as) na empresa. Esse é um mecanismo importante para diminuir a substituição de empregados(as) por estagiários(as). A proporção exigida é a seguinte:
I – de 1 a 5 empregados(as): 1 estagiário(a);
II – de 6 a 10 empregados(as): até 2 estagiários(as);
III – de 11 a 25 empregados(as): até 5 estagiários(as);
IV – acima de 25 empregados(as): até 20% de estagiários(as).
Porém, essas cotas não têm validade para estudantes do ensino superior e de nível médio profissional. De acordo com a ABRES, existem 1,1 milhão de estagiários no país, sendo que cerca de 715 mil estão no ensino superior. Isso quer dizer que o estabelecimento de cotas para evitar a substituição de trabalhadores(as) formais por estagiários(as) é uma medida que atinge uma parcela muito pequena do total de estágios do país.
Liberdade empresarial
Mas os empresários também celebram a nova lei, pois ela não altera alguns pontos importantes para eles. A Abres comemorou a possibilidade aumentar a comercialização de estudantes através da intermediação de estágios. Pela legislação anterior, apenas poderiam estagiar alunos do ensino médio, médio técnico e superior. A nova Lei insere a possibilidade de explorar a força de trabalho de estudantes dos anos finais do ensino fundamental (na modalidade de educação de jovens e adultos) através de contratos de estágio.
Tal ampliação se dá, também, pela possibilidade de profissionais liberais de nível superior como advogados, engenheiros, arquitetos e outros contratarem estagiários(as). Não satisfeita, a Abres lamenta a diminuição no ensino médio, por conta da restrição imposta a 20% do total de funcionários da empresa. O CIEE, por sua vez, ao ressaltar que teve participação ativa na elaboração do texto sancionado, comemorou a autorização explícita para o estágio de alunos do ensino médio. Essa é uma das maiores empresas de intermediação de estágios no Brasil, com cerca de 28 mil empresas e de 21 mil escolas cadastradas.
Apesar dos limites impostos pela nova lei, os empresários permanecem com bastante liberdade para usar o estágio como precarização do trabalho juvenil. Por exemplo, os donos de instituições privadas de ensino, que tratam a educação como comércio, não são obrigados a definir seus projetos pedagógicos com a participação democrática da comunidade escolar. Tais instituições não são espaços democráticos. Nas universidades públicas, os conselhos universitários definem os projetos pedagógicos dos cursos, que podem instituir ou não o estágio como ato educacional. As participação dos trabalhadores(as) e dos estudantes em espaços como esses é fundamental para evitar arranjos fraudulentos para facilitar a intermediação de mão-de-obra barata de estagiários(as).
O estágio precisa ser considerado como educação, mas também como trabalho. É o exercício prático do que se aprende, portanto, é parte do processo educacional. Porém, ao submeter-se às regras do local de trabalho e ao acrescentar valor ao que é produzido socialmente, o estágio também é trabalho. As empresas que tem estagiários(as) de forma permanente em seu quadro de funcionários, contam com eles para a sua produção. Não é à toa que alguns empresários têm lamentado o fato de que terão de contratar dois estagiários, reduzindo o valor da sua bolsa, para poder adaptar-se à nova lei.
No entanto, os benefícios trabalhistas disponíveis para o conjunto dos empregados de uma empresa somente serão estendidos aos estagiários se assim desejarem os empresários. Hoje, podemos encontrar casos de estagiários que não podem utilizar o mesmo transporte que leva os funcionários a determinada empresa. Ele poderá trabalhar por até dois anos para o mesmo patrão, contribuindo para a sua produtividade, e esse tempo não contará para sua seguridade social, como defende a CUT.
Esses são limites que a lei não supera. Podem compor as pautas das negociações coletivas dos sindicatos e, nas instituições de ensino, podem retomar para o movimento estudantil a discussão sobre a relação entre educação e trabalho.
Aliança sindical e estudantil
A nova Lei do Estágio traz avanços significativos, que somente serão efetivados através da luta e da pressão. Para isso, é urgente que a militância sindical e o movimento estudantil assumam, de forma unitária e coordenada, uma plataforma de combate à precarização do trabalho juvenil.
A aplicação efetiva da nova Lei do Estágio e a superação dos limites que ainda existem são bandeiras importantes. A aliança entre o sindicalismo e o movimento estudantil pode possibilitar que a CUT e suas entidades filiadas (CNTE, FASUBRA, CONTEE, PROIFES) construa juntamente com a UNE e a UBES uma agenda de mobilizações que vá desde a luta pela democratização e desmercantilização da educação, passando pela atualização do debate sobre projetos de educação em nosso país.
Na luta unificada entre trabalhadores(as) e estudantes, precisamos continuar cobrando crescimento econômico que seja acompanhado de distribuição de renda e a valorização do trabalho. A CUT, maior central sindical da América Latina, aprovou um Plano de Lutas e Mobilizações que culminará na Marcha da Classe Trabalhadora em Brasília, no mês de dezembro de 2008. Bandeiras como a redução da jornada de trabalho sem redução de salários e a ratificação da Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (que limita o poder dos empresários para demitir em massa), dentre outras, quando conquistadas, influenciarão fundamentalmente a vida laboral de milhões de jovens brasileiros(as).
Essa unidade de ação pode ser um primeiro passo para construir outras bandeiras que serão agitadas por trabalhadores, trabalhadoras e estudantes, nas ruas, nas escolas e nos locais de trabalho. O contexto de um governo democrático e popular abre esse tempo de possibilidades.
Anderson Campos, sociólogo, Especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo, pelo Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) da Unicamp, é assessor da CUT Nacional.