(Comentário sobre o livro Uma breve história da igualdade, de autoria de Thomas Piketty)
Thomas Piketty publicou, em duas décadas, três obras muito importantes sobre a desumanidade no capitalismo: As altas rendas na França do século XX; O capital no século XXI; Capital e ideologia. Cada uma delas contendo quase mil páginas. Em 2021, lançou Uma breve história da igualdade, com somente trezentas páginas. Atendeu pedidos dos leitores para que fosse conciso. “Apresento uma nova perspectiva acerca da história da igualdade, a partir de uma forte convicção forjada no decorrer de minhas pesquisas. A marcha rumo à igualdade é uma luta que vem de longe e pede que seja prosseguida. Observamos evoluções voltadas à igualdade de status, propriedade, renda, gênero e raça na maioria das regiões e sociedades do planeta”. O otimismo tem respaldo nos fatos.
O progresso é atestado pela Saúde. A expectativa de vida que na média era de escassos 26 anos em 1820, passou para 72 anos em 2020. A mortalidade infantil que, no mesmo período, atingia 20% dos recém-nascidos, alcança menos de 1% hoje. O Homo sapiens nunca sonhou com tanta longevidade. Raros sobreviviam por 50 anos. Wolfgang Mozart morreu com 35, de um edema que espalhou complicações no organismo, então a terceira causa de óbitos atrás da tuberculose e da desnutrição.
O acesso à Educação e à Cultura também aponta números alvissareiros. Há duzentos anos, só 10% da população mundial era alfabetizada, contra 85% atualmente. Os anos de alfabetização pularam, de um, para oito anos em nossos dias, chegando a mais de doze nos países desenvolvidos. Antigo privilégio das classes altas, as universidades de modo paulatino se abrem e, com a adoção do sistema de cotas, promovem a bem-vinda mobilidade etnorracial. Disparidades permanecem nos hemisférios Norte e Sul. Thomas Piketty, porém, enfatiza a démarche crescente de igualitarização.
Os avanços não correspondem a uma lei espontânea e linear. Resultam de mobilizações, revoltas e revoluções; e em simultâneo de dispositivos institucionais jurídicos, tributários, educacionais e eleitorais. Destaque para a igualdade formal, o sufrágio universal, a democracia parlamentar (que não se perca pelos eventuais defeitos, que são vários), a educação gratuita obrigatória, o seguro-saúde universal, o imposto progressivo sobre a renda, a herança e a propriedade, a cogestão nas administrações, a organização sindical, a liberdade de imprensa e o direito internacional. Isso tudo, num contexto global há quarenta anos hegemonizado pelo neoliberalismo e, em consequência, apoiado na circulação descontrolada de capitais sem objetivo social nem climático, o que evoca o neocolonialismo em prol dos abastados e a mentalidade típica do hiperindividualismo yuppie.
Para Thomas Piketty, lições devem ser tiradas da retrospectiva do movimento igualitarista. “Uma, consiste em negligenciar o papel das lutas e das relações de força na história da igualdade; outra, ao contrário, em sacralizá-las e negligenciar a importância das oportunidades políticas e institucionais e o papel das ideias e das ideologias em sua elaboração”. A posição de classe não basta para cunhar uma teoria da sociedade justa sobre a propriedade, o imposto, o salário, a educação e a democracia. A indeterminação sobre tais temas leva à recomendação habermasiana para um debate amplo.
Classes plurais e multidimensionais (renda, diploma, gênero, origem) cobram paciência da opinião pública. Sua plasticidade não autoriza definir, a priori, políticas para uma série de áreas. Até a proposta de alargamento dos direitos políticos, com a ampliação da participação social, precisa ser debatida para gerar uma metodologia com critérios na alocação de recursos. As carências não coincidem e nem se expressam com a mesma intensidade nas zonais de um território nacional.
A unificação de palavras de ordem no combate às políticas desigualitárias (neoliberais) não significa unidade automática de pensamento sobre as alternativas. Estas, exigem uma concertação de pontos de vista e respeito às experimentações e deliberações coletivas, para fechar consensos. A história ensina que propostas autoritárias de partido único, centralização burocrática, propriedade estatal hegemônica, proibição da propriedade cooperativa e suspensão das eleições não resolvem.
Oscilando entre Max Weber e Karl Marx, o premiado economista ora atribui às “elites” e ora às “classes dominantes” a relutância em estender os valores da civilização moderna socialmente. Um verdadeiro escárnio em tempos de bilionários transnacionais mais poderosos do que Estados. A posse de fortunas indecorosas (que na pandemia se divertiam fora da lei da gravidade) está em contraste com a penúria do povaréu, a exemplo do que ocorria à época das revoluções no mundo.
No Brasil, entre 2019 e 2022, moradores sem-teto em situação de rua cresceram 38%, empurrando mais de 280 mil excluídos ao relento, consentâneo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Na comparação com o levantamento inaugurado em 2012, a pobreza social disparou em 30,4% em 2020, abarcando cerca de 65 milhões de pessoas, acusa o Laboratório de Desigualdades, Pobreza e Mercado de Trabalho (PUC/RS). O padre Júlio Lancellotti costuma lembrar que praças, agora, assemelham-se a campos de refugiados onde pessoas acham-se na condição de subgente. O desafio está em avançar na direção de mais equanimidade, com o espírito do cristianismo primitivo.
Se hace camino al andar
A desigualdade é uma construção histórica, social e política, sendo as escolhas sempre reversíveis. As estruturas não igualitárias variam conforme as sociedades e o poderio das visões em disputa. A divisão internacional do trabalho e a utilização dos recursos da natureza, somada à acumulação de conhecimento, incidem no samba-enredo. Na caminhada da igualdade, as difíceis batalhas vencidas contra as injustiças permitiram “transformar a correlação de forças e derrubar as instituições fomentadas pelas classes dominantes para estruturar a desigualdade social em seu benefício, a fim de as substituir por novas instituições e regras sociais, econômicas e políticas mais justas e emancipadoras para o conjunto dos habitantes”. Como no belo elogio à práxis por mudanças do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminante, no hay camino / se hace camino al andar”.
Em todas as quadras da história, a malquerença mereceu análises e rendeu saberes. Em reflexões clássicas sobre a República e As leis, Platão recomendava que as diferenças entre ricos e pobres não ultrapassassem a proporção de um para quatro. Enquanto o filósofo iluminista, Jean-Jacques Rousseau, julgava que o surgimento da propriedade privada e sua acumulação desmedida seriam as parteiras da desigualdade e das discórdias sociais. Vale salientar que apenas depois da Primeira Revolução Industrial (máquina a vapor, na confecção têxtil) se passou a ter avaliações com dados e estatísticas, de relativa precisão e confiança, sobre os salários dos operários e seu padrão de vida.
Os acontecimentos da Revolução Francesa levaram à extinção dos privilégios da nobreza. Em 1791, a revolta dos escravizados em São Domingo que, com a derrota do exército francês e a Declaração de Independência se chamou Haiti, no retorno à denominação dos indígenas para a ilha, incentivou a abolição da opressão escravocrata atlântica. Sem as mobilizações sociais e sindicais não haveria conquistas do trabalho sobre o capital, para reduzir as discrepâncias através dos séculos. Inclusive, as duas guerras mundiais podem ser interpretadas como fruto das tensões e contradições ligadas aos despautérios sociais anteriores a 1914, no rol doméstico e internacional. Foram o preço a pagar.
Nos Estados Unidos, uma guerra civil sangrenta acabou com a crueldade escravista, em 1865. Em 1965, mobilizações afro-americanas eliminaram as discriminações raciais persistentes (ônibus, banheiros, bares, etc). Confrontos puseram abaixo o colonialismo europeu, nos anos 1950-1960. A existência da ex-URSS forçava concessões para um “capitalismo com rosto humano”. Idem, no que concerne ao apartheid sul-africano, em 1994. Com razão, o igualitarismo rima com um humanismo.
Afora as guerras, as revoltas e as revoluções, a eclosão de crises econômicas e financeiras (2008) e pandêmicas (2020-21) propiciaram uma percepção, sem preconceito, sobre o valor estratégico do Estado para a regulação da economia e a construção de políticas públicas. Foi um erro estimular a desindustrialização. O coronavírus escancarou a atroz problemática. Faltaram produtos elementares (insumos) na cadeia produtiva da indústria farmacêutica, qual os leitos hospitalares em UTIs, os respiradouros e, pasmem, as máscaras sanitárias. Entre nós, faltaram vacinas. Estocadas, 27 milhões de doses foram descartadas, causando prejuízo de R$ 2 bilhões aos cofres públicos. Obedeceram à necropolítica genocida da “imunização de rebanho”. Governantes neofascistas fizeram o ruim, pior.
O Ocidente ajudou a incrementar a industrialização da China, ao transferir as fábricas em nome da redução dos custos com a mão de obra. No sufoco, descobriu o erro geopolítico. A República Popular da China candidata-se ao pódio de potência econômica líder. A nação chinesa possui uma economia mista (não é realmente comunista). A propriedade pública corresponde a 30% do total, o suficiente para conferir a decisão sobre a localização dos investimentos e a geração de empregos.
O poder público detém 55% do capital total das empresas. As potências ocidentais, que teimam em insistir em cosmogonias ultrapassadas, não conseguirão limitar a influência do regime oriental. Se a China não é o socialismo que queremos, também não é o capitalismo que o Fórum Econômico Mundial celebra em Davos, nos Alpes. A aliança com a Rússia é insuportável aos intelectuais orgânicos de Washington que, desde o Vietnã, mais erram do que acertam nas previsões. A costura do Brics, com outros vinte países na fila de espera, é uma pá de cal na unipolaridade mundial.
Uma breve história da igualdade encerra com um capítulo intitulado “Rumo a um socialismo democrático, ecológico e diversificado”. E “participativo”, caracterizado por “formas de soberania com tendência universalista”, acrescenta o autor no correr do texto. Não restam dúvidas sobre a esperança intelecto-militante de Thomas Piketty. Lutas ideológicas vão acelerar os processos para um maior igualitarismo nas sociedades. A onda de governos progressistas na América Latina é um indicativo da audiência ganha, entre os povos do continente, das bandeiras por direitos iguais.
A par disso, a eclosão das catástrofes ambientais, o desgelo do Ártico e da Antártida, a elevação do nível dos mares, as estiagens e tempestades imprevistas e os deslizamentos de terra, em moradias de risco nas comunidades vulneráveis, já convocam protestos de massas. O futuro começou. A jovem sueca Greta Thunberg não está sozinha. Com ela, marcha a juventude com as mulheres na vanguarda da consciência da humanidade. A extrema-direita, retaguarda do atraso, obriga-se a atacar o “politicamente correto”, no plano linguístico, para não revelar sua opção pela devastação do meio ambiente e sua preferência pelas hierarquias de dominação e subordinação, no plano social. Nessas circunstâncias, “eles” tiram proveito do caos; “nós” a seiva rebelde para a emancipação.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.