Na data dos 50 anos da Revolução dos Cravos fica a sugestão de leitura do livro “A penúltima revolução da Europa: da revolução dos cravos à contrarrevolução neoliberal”, de autoria de Fernando Rosas e Francisco Louçã. Para instigar a leitura, reproduzimos, abaixo, parte da apresentação da obra, de autoria de Brais Fernandez. A versão em espanhol do livro pode ser acessada aqui.
O conceito de “revolução” é, sem dúvida, um dos mais importantes e mais polêmicos. Banalizado pela ideologia do “senso comum”, que o associa a mudanças superficiais, a gestos teatrais ligados ao aspecto midiático de representação. Para além dessas concepções, o termo revolução também está associado às mudanças estruturais, duradouras, que modificam irreversivelmente a história. Este é o significado mais comum na Sociologia. Do ponto de vista político, no entanto, é mais útil associar a revolução a uma conjuntura em que se concentram as contradições sociais, em que atores até então ausentes irromperam na História. Vamos pensar na revolução como uma ópera.
Em determinado momento, os atores interpretam a peça silenciosamente, rotineiramente, enquanto a plateia, enfeitada e com gestos imponentes, desfruta passivamente. Nessa cena, há apenas o público e os atores. Mas, de repente, inesperadamente, os trabalhadores do teatro sobem ao palco e começam sua parcela de mérito na obra: “Sem nós não podemos fazer esse trabalho!” Ninguém lhes faz caso, os miram com desdém, parte do público vaia. Os trabalhadores abrem as portas do teatro. Entra muita gente que nunca havia assistido à obra. Num dado momento, público e atores precisam se retirar da cena e os trabalhadores começam a interpretar sua própria versão da ópera. No entanto, na revolução, como nas estreias do jogo, ninguém sabe o fim. A revolução, então, é o processo de entrada na política daqueles que fazem história diariamente, com seu esforço e seu trabalho, mas que não desfrutam da riqueza (econômica, culturais, sociais) que eles mesmos geram.
Aquela visão da revolução como um momento de bifurcação, como “política concentrada”, em que a história pode ir para um lado ou para o outro, também aceito por historiadores burgueses como Furet. E sim, dizemos conscientemente “burgueses”, mesmo com um certo desejo de provocar aqueles que se escandalizam com essa palavra: Furet, como boa parte da historiografia das classes dominantes, vê a história a partir de um prisma positivista, com um desenvolvimento inevitável, linear até o progresso. lineal, hacia el progreso. Contudo, quando em 1989 se celebrava o 200º aniversário da Revolução Francesa, a historiografia burguesa se viu obrigada a responder ao fenômeno: O que havia se passado? Por que as Ruínas, as Guilhotinas, os Sans-Culottes, as guerras, os jacobinos? A ideologia dominante, quando se torna dominante, deixa de ser revolucionária. Assim, é forçada a negar suas próprias origens: para permanecer no poder, esquece suas origens revolucionárias, cheio de barricadas e ondas plebeias. As revoluções são momentos desconfortáveis para as classes dominantes. Mesmo quando permitem preservar ou reformular seu próprio poder, são sentidas como anomalias repletas da barbárie que interrompe desnecessariamente o curso caracterizada por uma desigualdade natural na esfera econômica, mas compensada por uma tendência teleológica para uma igualdade político-representativa encarnada pela democracia liberal.
A Revolução dos Cravos não está isenta de julgamentos paradoxais. Era vivida pela burguesia portuguesa com medo, mas ao mesmo tempo sentia a necessidade de intervir para inviabilizá-la. Todos os partidos ou facções se referiram ao “socialismo”, mas enquanto a social-democracia e os partidos ligados às elites viram na revolução uma maneira de se livrar da velha ditadura, anacrônica e disfuncional para as novas formas de dominação de que o Capital necessita, um setor da população, dentre as quais se destacaram uma porcentagem significativa da classe trabalhadora e do exército, praticava formas de democracia e poder popular que colocam em risco, não só o aparato político da ditadura de Salazar (“o regime”), mas as relações de exploração e opressão em que se baseava o poder da oligarquia.
A Revolução Portuguesa não teve fim escrito: tanto a tomada do poder pela classe trabalhadora como a contrarrevolução neoliberal com formas democráticas estavam potencialmente presentes na situação. A revolução abriu um campo de disputa que não estava presente apenas no “político”, entendido como a esfera da representação, na forma de uma luta entre partidos e notável, mas também no “social”, na forma de luta nos espaços da sociedade civil que regem a vida cotidiana, nas comunidades vivas atravessadas por contradições de classe, nas quais as relações sociais são geradas: nas fábricas, nos bairros e nos setores do aparato estatal, como os militares.
Essa força da revolução, da irrupção do povo na cena política, teve consequências na configuração da política portuguesa pós-25 Abril. Não só na constituição do regime, que em sua origem, em seu aspecto formal, refletiu parcialmente a condensação de forças produzida pela mobilização a partir de baixo, embora sem tocar nos nós fundamentais do poder capitalista. Também, por exemplo, na configuração de mapa representativo, com um partido forte comunista português pró-soviético, que desenha a sua força e sua capacidade para resistir ao esmagamento dos partidos “marxistas-leninistas” pela história de uma identificação geracionalmente transmitida com o “evento” dos Cravos. O Bloco de Esquerda, uma das formações radicais mais importantes da Europa, que provém dos grupos maoístas e trotskistas que iniciaram sua jornada no calor da onda revolucionária.
Por fim, a política portuguesa expressa-se, muitas vezes, como uma disputa sobre o “evento” da revolução: Ninguém nega, porque é o acontecimento fundador do Portugal moderno, mas cada um lhe dá um significado diferente: alguns o vêem como uma obra inacabada, que temos que retomar e concluir. Outros, os que estão no topo, como um momento constrangedor, que finalmente venceram e agora eles podem assimilar. Daquela tensão entre a revolução e a contrarrevolução vai este livro.
Antes de comentarmos sobre isso, Vamos relembrar alguns fatos.
1.1. A (pen)última revolução da Europa Em 25 de abril de 1974, um levante militar pôs fim à ditadura de direita que governou Portugal por 48 anos sob o nome de Estado Novo. O governo de Marcello Caetano (que se exilou no Brasil, onde morreu em 1980 sem ser julgado), sucessor do eterno Salazar, foi expulso do poder ao ritmo da agora famosa “Grândola Vila Morena”. Isso marcou o início do período conhecido como a “Revolução dos Cravos”.
1.2 – E depois…a contrarrevolução neoliberal. Precisamente, os textos deste livro, além de extrair lições sobre a revolução portuguesa e indagar a relação entre a conjuntura e a tática revolucionária, também tratam do que ocorreu depois do processo revolucionário em curso, que não foi capaz de consolidar as rupturas anticapitalistas.
Os escritos de Fernando Rosas e Francisco Louçã, ambos dirigentes do Bloco de Esquerda e intelectuais marxistas, analisam o significado da revolução portuguesa, as potências que desatou e os momentos de ruptura que gerou, mas também quais foram os mecanismos políticos e econômicos em que se fundou a contrarrevolução neoliberal, com as políticas de austeridade, de ataque ao salário, assim como o processo de subdesenvolvimento da formação social lusa.